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México: o amigo morreu sem os olhos. Ele escapou e conta

Familiares de 43 estudantes desaparecidos falaram, no Brasil, sobre os fatos da noite de 26 de setembro passado e da busca por sobreviventes

2 jun 2015 - 22h39
(atualizado em 3/6/2015 às 07h52)
Francisco é acompanhado do casal Mário César González Contreras e Hilda Hernández Rivera, além da mãe Hilda Legideño Vargas em coletiva
Francisco é acompanhado do casal Mário César González Contreras e Hilda Hernández Rivera, além da mãe Hilda Legideño Vargas em coletiva
Foto: Ana Lis Soares / Especial para Terra

Era 26 de setembro de 2014, 19h. Cidade de Iguala, Estado de Guerrero, México. Cinquenta e sete estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa estão na estrada arrecadando dinheiro para comprar recursos do colégio e para uma viagem à Cidade do México, onde participariam da marcha nacional pela matança de estudantes em 2 de outubro de 1968. Divididos em três ônibus, encerraram a atividade e se colocaram a caminho de casa. “Teríamos de passar por Iguala para chegarmos ao nosso destino final. Em certo momento, uma patrulha da polícia nos parou, mas nós afirmamos que éramos estudantes normalistas e nos deixaram partir”.

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Às 20h30, os ônibus são parados novamente por policiais que os atacam e deixam dois jovens feridos. “Estavam feridos gravemente e nós gritávamos que éramos estudantes. Pedíamos para que parassem. Mas não adiantou. Então, pedimos para que nos arrumassem uma ambulância, que chamassem  socorro, porque nossos companheiros estavam feridos. Pediram que a gente ‘negociasse’, mas não havia nada a negociar. Um dos nossos colegas conseguiu então chamar a ambulância por conta própria."

“Só pedimos nossos filhos. Queremos saber seu paradeiro. Só isso. Oito meses de espera é um tempo grande, mas não podemos ficar sentados”, afirma Hilda
Foto: Ana Lis Soares / Especial para Terra

Alguns estudantes, às 2h30, chamaram a imprensa para o local onde havia acontecido o primeiro incidente. Antes dos jornalistas, chegaram alguns policiais. Outro ataque aconteceu, deixando mortos e feridos. “Um de nossos companheiros se feriu gravemente, estava sangrando. Eu e um grupo de oito colegas saímos de lá com ele para buscar ajuda. Tocávamos nas casas, chegamos a um consultório médico particular que não quis atendê-lo. Porém, nos deixaram entrar e, quando percebemos, haviam chamado a polícia. Pensamos em subir ao segundo pavimento, deixá-lo lá e nos entregarmos para os oficiais.”

Um dos estudantes feridos morre. Eram 6h da manhã. “Falaram para a gente que nosso colega estava morto, que o haviam torturado, arrancado seus olhos e que precisávamos ir reconhecê-lo. Também tivemos que dar depoimentos e declarações sobre nossa noite e madrugada”. O morto é Julio Cesar Mondragón, encontrado nas imediações sem os glóbulos oculares, a calça enrolada até debaixo dos glúteos, sem marcas de tiros.

Francisco em manifestação na Argentina da Caravana 43
Foto: Facebook / Reprodução

Parte dessa história é contada por Francisco Sánchez Nava, 19 anos, normalista mexicano e sobrevivente da noite de 26 de setembro, quando seus colegas, os 43 estudantes desapareceram e ao menos três morreram. Oito meses depois da madrugada do dia 26, Francesco está acompanhado do casal Mário César González Contreras e Hilda Hernández Rivera, pais do estudante desaparecido César Manuel Gonzáles Hernández, e de Hilda Legideño Vargas, mãe do também desaparecido Jorge Antonio Tizapa.

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Familiares de mortos acusam autoridades mexicanas de massacre
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Eles participaram de uma entrevista em São Paulo, promovida por um conjunto de organizações independentes do Brasil, Uruguai e Argentina chamada “Caravana 43”, que tem o objetivo de divulgar a noite de 26 e a manhã de 27 de setembro que, pelo menos para essas famílias, ainda não terminou.

Os quatro já passaram pela Argentina e pelo Uruguai nessa caminhada em busca de visibilidade e apoio ao caso, e agora estão no Brasil, onde vão passar por três cidades, pedindo apoio pelo fim da impunidade. “Queremos que as pessoas saibam o que passamos. São 43 vidas, de seres humanos que deixaram um vazio em suas casas”, afirmaram.

O depoimento do jovem é enfático e firme, ele fala convencido de sua versão dos fatos. “Cabrón, somos estudantes humildes, mas nós vimos os policiais, as patrulhas. Somos estudantes querendo estudar”, disse na tarde dessa terça-feira no Centro de São Paulo, cidade a milhares de quilômetros da sua. “Sabemos o Estado em que vivemos. A violência é diária. Nos acostumamos a abrir as portas e ver cabeças rolando. É um Estado de narcotráfico. Mas se vivemos num mundo globalizado, acredito que a luta também deverá ser”, enfatizou.

Retrato de Jorge Antonio Tizapa Legideño, um dos estudantes desaparecidos
Foto: Facebook / Reprodução

'Não acreditamos no governo. Queremos nossos filhos vivos.'

Hilda e Mário apareceram tímidos no teatro onde aconteceu a entrevista à imprensa brasileira. Jornalistas e suas câmeras disputavam espaço para o melhor ângulo. Naquele momento, parados na porta de vidro, aguardavam o momento em que entrariam para responder, mesmo que, na verdade, só haja perguntas. “Só pedimos nossos filhos. Queremos saber seu paradeiro. Só isso. Oito meses de espera é um tempo grande, mas não podemos ficar sentados”, afirmou Hilda Vargas.  

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Assim como todos os familiares dos estudantes sumidos, os três não acreditam na versão dada pelo governo sobre o paradeiro de seus filhos. “O governo, desde o começo, afirmava que eles estavam todos mortos, que tinham sido queimados em um aterro sanitário. Mas, não acreditamos nessa versão, pois não há provas ou evidências de que nossos filhos estão mortos. Os peritos argentinos negaram que seriam restos deles. Além disso, não acreditamos no governo historicamente”, disse a mãe de Jorge.

“Sou pai e acho que qualquer pai iria até o fim do mundo caso fosse necessário. E nós vamos”, diz Mário
Foto: Ana Lis Soares / Especial para Terra

Hilda se referiu ao relatório da Equipe Argentina de Antropologia Forense que realizou análises em cerca de 30 corpos encontrados em valas clandestinas na cidade de Iguala, determinando que os restos não eram dos estudantes desaparecidos. Instituições internacionais, tais como a Human Right Watch, também rejeitaram a investigação do caso baseada em depoimentos de assassinos.

“Perdemos a noção do tempo. Vivemos para isso”, contou Hilda. Para estes pais, que são uma mistura sentimentos de esperança, fragilidade e perseverança, o caso será encerrado apenas quando os jovens forem devolvidos com vida aos seus lares. E isso lhes custa muito. Andar por países da América do Sul e divulgar o caso de seus filhos lhe custaram deixar suas casas, seus outros filhos, seus trabalhos.

Retrato de César Manuel González Hernández, um dos estudantes desaparecidos
Foto: Facebook / Reprodução

“Recebemos apoio de organizações, das outras famílias que estão no México fazendo outras atividades relacionadas ao caso. Só não aceitamos dinheiro do governo... Somos humildes, então tivemos de vender tudo o que tínhamos, juntamos recursos necessários para poder lutar pelos nossos filhos. Essa busca nos custa muito, mas somos pais e como pais vamos perseverar. Não sossegaremos”, disse Hilda. “Sou pai e acho que qualquer pai iria até o fim do mundo caso fosse necessário. E nós vamos”, completou Mário.  

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Relembre o caso

Em 26 de setembro de 2014, um grupo de 43 estudantes mexicanos  desapareceu, após ação policial na cidade de Iguala, no Sul do México. O fato levou o governo do presidente do país, Enrique Peña Nieto, à pior crise de seu governo, chamando a atenção da mídia internacional e desencadeando grandes protestos por todo o país.

Alunos de uma escola normalista rural para rapazes, a maioria dos desaparecidos tem entre 18 e 21 anos, de Ayotzinapa, cidade a cerca de 125 quilômetros de Iguala.

México: CIDH inicia investigação sobre estudantes desaparecidos
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Os jovens haviam viajado para a cidade de Iguala, em 26 de setembro, a fim de arrecadar fundos para sua escola. O grupo usava ônibus, que, segundo alguns, teriam sido tomados à força.

Em 27 de janeiro, o procurador mexicano Jesus Murillo disse que havia provas científicas  suficientes para concluir que os estudantes foram assassinados e incinerados por membros do cartel Guerreros Unidos em uma lixeira do município de Cocula, e as cinzas lançadas no rio.

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As autoridades mexicanas acreditam que os 43 estudantes universitários de uma faculdade de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero, foram mortos depois que a polícia de Iguala, a 200 quilômetros ao sul da capital mexicana, os perseguiu e os rendeu em 26 de setembro.

Protestos são realizados no Uruguai durante visita de familiares e sobreviventes
Foto: Facebook / Reprodução

De acordo com suspeitos que foram presos, os estudantes foram então entregues ao cartel Guerreros Unidos e, em seguida, assassinados por membros da gangue. Os corpos teriam sido queimados e as cinzas jogadas num rio, na crença de que os alunos eram membros de uma gangue rival. Apenas um conjunto de restos mortais foi identificado.

Cerca de cem pessoas foram detidas, incluindo o ex-prefeito de Iguala, José Luis Abarca, acusado de sequestro. Autoridades acreditam que ele ordenou à polícia para reprimir uma manifestação estudantil na cidade antes do desaparecimento. Sua esposa também foi presa.

O desparecimento dos estudantes acabou gerando manifestações violentas em todo o país. O Conselho Coordenador Empresarial (CCE) de Guerrero informou que os prejuízos causados pelos protestos foram superiores a 55 milhões de pesos (R$ 12 milhões). 

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Fonte: Terra
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