Grupos monetizam desinformação sobre autismo e vendem substância tóxica a quem busca cura

INVESTIGAÇÃO CONJUNTA DE QUATRO VEÍCULOS DE BRASIL, CHILE, COLÔMBIA E MÉXICO REVELA COMO COMUNIDADES ONLINE SÃO USADAS COMO PLATAFORMA DE COMÉRCIO DE FALSOS MEDICAMENTOS, CURSOS E CONSULTAS

5 dez 2025 - 05h45

Roberta encontrou em uma comunidade online a promessa de cura de seu filho de cinco anos, diagnosticado com autismo. Seguindo orientações, ela deu ao menino algumas doses de dióxido de cloro, e também ingeriu o mesmo líquido, para tratar outros problemas de saúde. O que os dois tomaram como medicamento alternativo é, na verdade, uma substância tóxica e corrosiva, usada na fabricação de produtos de limpeza. Após alguns dias, o efeito era devastador.

Mãe relata ter ido para o hospital com o filho após ambos tomarem dióxido de cloro.
Mãe relata ter ido para o hospital com o filho após ambos tomarem dióxido de cloro.
Foto: Reprodução/Telegram / Estadão

"Pensei que íamos morrer", relatou a mãe, no grupo de mensagens que a aconselhava. Mas ela não se queixava nem admitia ter sido iludida - queria saber o que tinha feito de errado. Outros usuários e administradores do grupo, que lucram com a venda do falso medicamento, a incentivaram a voltar a intoxicar a criança, com a falsa alegação de que isso iria curá-la. O "tratamento" tinha duração de três meses.

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A reportagem teve impacto antes mesmo de sua publicação. Depois que o Estadão Verifica questionou o governo brasileiro sobre a propagação de desinformação sobre saúde no Telegram, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou um pedido formal à empresa para remover grupos e canais que vendiam ilegalmente dióxido de cloro como suposta cura para doenças, do câncer ao autismo. Segundo o governo, 30 comunidades foram removidas em 19 de setembro. Grupos monitorados pelo Verifica, porém, continuam ativos.

No banco de dados da FGV estão cerca de 60 milhões de postagens publicadas em grupos do Telegram considerados conspiracionistas, em toda a América Latina e no Caribe. Foram identificadas cerca de 47 mil publicações que difundiram informações incorretas ou enganosas sobre autismo em aproximadamente 1.600 grupos e canais abertos ao público. Nessas comunidades há 4 milhões de usuários. Os pesquisadores mapearam menções a mais de cem diferentes substâncias ou procedimentos para tratar autismo nos grupos de Telegram, sendo que o dióxido de cloro é de longe a indicação mais citada. Os dados mostram que o número de mensagens enganosas sobre o transtorno aumentou mais de 150 vezes em cinco anos.

A amostra analisada revela que as comunidades se organizam majoritariamente por país, mas há também evidências de articulação internacional. Cerca de 15 mil posts idênticos, parte em espanhol e parte em português, circularam em comunidades colombianas e brasileiras. Já o Chile divide quase 4 mil conteúdos iguais com a Colômbia e 3 mil com o México, e esses dois últimos países têm 5,4 mil posts em comum.

A investigação identificou, por exemplo, um post que circulou em um grupo chileno em 2021 e, em 2023, passou por comunidades da Colômbia e do México. No ano seguinte, chegou aos brasileiros. A publicação é um compilado de links com orientações sobre como usar dióxido de cloro.

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A segunda mensagem, também em espanhol, afirma que uma criança desenvolveu autismo após receber 18 vacinas em um único dia, o que demonstraria a relação de causa e efeito. Esse boato, que também circula no Brasil, foi checado e desmentido pelo Estadão Verifica em 2024.

Riscos para a saúde

O neurocientista Bambini explica que o dióxido de cloro é um agente oxidante altamente tóxico. "Não existe cenário seguro para seu uso terapêutico", disse. A ingestão pode causar lesões severas no trato gastrointestinal, vômitos, diarreia intensa, queimaduras nas mucosas e desidratação, com impacto ainda maior em crianças.

Em mensagens monitoradas pelos checadores, é possível observar que sintomas como náusea, ardência, vômitos e diarreia são apresentados como sinais de "desintoxicação", o que acaba normalizando reações que indicam início de lesões. De acordo com Bambini, esses sintomas refletem os danos imediatos que o dióxido de cloro pode causar. O efeito oxidativo do produto pode destruir células da boca, do esôfago e do intestino, além de provocar sangramentos, inflamação aguda e perdas rápidas de líquido. "A agressão às mucosas ocorre logo nas primeiras exposições", afirmou.

O neurocientista ressalta que os riscos vão além do sistema digestivo. O dióxido de cloro compromete a capacidade do sangue de transportar oxigênio. Em níveis mais elevados, pode levar à perda de consciência e até à morte. Autoridades de saúde alertam ainda que o líquido pode afetar negativamente os rins e o fígado. Por isso, instituições como a Food and Drug Administration (FDA), a OMS, a European Medicines Agency (EMA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbem o uso terapêutico do composto.

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Pseudocientistas

Em geral, as figuras apresentadas como "especialistas" nas comunidades online não têm formação médica. Na Colômbia, o ColombiaCheck entrevistou um dos nomes mais citados nessas comunidades, Beyman Yepes Murillo, conhecido como Dr. Yepes. Ele admitiu não ser médico e alegou usar o título de "doutor" porque é "chamado assim pelas pessoas porque elas foram curadas".

Yepes disse atuar há quase duas décadas oferecendo consultas virtuais baseadas nos protocolos de Andreas Kalcker e Jim Humble, criadores do MMS. O falso "doutor" relatou prescrever dietas restritivas, desparasitação, enemas e uso contínuo do dióxido de cloro, que descreveu como "inofensivo".

Kerri Rivera, norte-americana que hoje vive no México, é uma figura de culto nos grupos que desinformam sobre o autismo. Em 2013, ela escreveu um livro que promove a alegada cura do transtorno com MMS e que foi removido de plataformas de venda por seu conteúdo enganoso. Rivera não é médica nem tem formação de cientista. Até monetizar a falsa cura com venda de livros, palestras e consultas, era corretora de imóveis.

Andreas Kalcker também é citado frequentemente nessas comunidades como fonte para respaldar as alegações. Ele foi mencionado como um dos maiores promotores do dióxido de cloro na América Latina na investigação A ciência que os promotores do dióxido de cloro realmente dominam, publicada por uma aliança de veículos, incluindo Colombiacheck, em 2022.

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Procurado pelo Estadão Verifica, Kalcker alegou não afirmar que existe cura para o autismo no sentido tradicional, mas que "existem abordagens biofísicas que podem melhorar significativamente a qualidade de vida de muitas pessoas". Kerri Rivera, Leo Araujo, Pri Gavazzi e o site Purifica o Brasil também foram procurados, mas não responderam.

No Brasil, vender dióxido de cloro é crime

No ano passado, o Ministério da Justiça no Brasil notificou dez sites de comércio eletrônico brasileiros que vendiam irregularmente dióxido de cloro como tratamento para o autismo e também para "inativar" vacinas - procedimento que só existe no mundo do charlatanismo. Mas alguns deles, como ClO2 e Purifica o Brasil, continuam no ar.

Apesar das proibições e de operações pontuais de fiscalização, o governo federal não sabe quantos produtos à base de dióxido de cloro circulam no país, quantas apreensões foram realizadas ou quantas notificações foram oficialmente abertas. As respostas enviadas por Anvisa, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) revelam um cenário fragmentado: cada órgão detém apenas parte do processo, e nenhum deles mantém um registro nacional sobre esse comércio ilegal.

A Anvisa informou que atos normativos proíbem o MMS e a comercialização e propaganda da solução, mas reconheceu não haver números consolidados sobre apreensões. Com a descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS), as ações de fiscalização e apreensão ficam a cargo das vigilâncias sanitárias municipais e estaduais, além de atuações do Procon e das polícias Civil ou Militar.

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Paralelamente, a Anvisa pode aplicar sanções administrativas, como multas e apreensões, independentemente do que aconteça na esfera penal. Na prática, porém, a maior parte das ações de campo é feita pelas vigilâncias sanitárias municipais, que lavram autos de infração e abrem processos administrativos, mas não investigam crimes. Em nota, o Ministério da Justiça destacou que as notificações são apenas administrativas.

"Nossa atuação não gera processo criminal; isso só ocorre quando trabalhamos junto com o Decon (Delegacia de Proteção ao Consumidor)", explicou Marcela Radaelli, fiscal da Vigilância Sanitária de Alvorada, no Rio Grande do Sul.

A Decon confirmou ao Verifica que o caráter criminal só se aplica quando a vigilância apreende o produto, identifica risco sanitário e encaminha o caso.

A Senacon, ligada ao Ministério da Justiça, que notificou as plataformas em 2024, também não possui dados específicos sobre denúncias relacionadas ao composto.

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O caso do Brasileo, um dos grupos brasileiros monitorados pela reportagem, evidencia as limitações das medidas administrativas. Mesmo após ser notificado no âmbito do programa Saúde com Ciência, do Ministério da Saúde, a rede permanece ativa, com canais no Telegram, sites de vendas e páginas alternativas.

O governo admite que as notificações dependem do cumprimento voluntário das plataformas ou dos vendedores. Quando isso não ocorre, o CNCP pode encaminhar o caso para a polícia ou o Ministério Público, mas não há atuação coordenada entre as diferentes esferas.

A AGU informou atuar em ações de remoção de canais e combate ao comércio irregular dentro do programa, mas, assim como os demais órgãos, não apresentou dados consolidados sobre quantos perfis, páginas ou grupos foram derrubados.

Em nota, ressaltou que vender produtos sem autorização sanitária no país é crime, o que pode exigir a atuação das autoridades policiais quando necessário.

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Na esfera penal brasileira, a venda de dióxido de cloro abre um leque de possíveis enquadramentos. O advogado criminalista Gelson Fassina afirma que os responsáveis podem responder por charlatanismo, curandeirismo e até crimes contra a saúde pública.

"Todos esses tipos penais podem ser aplicados, além de eventual associação criminosa", disse.

Segundo ele, a venda de um produto terapêutico sem registro na Anvisa já configura crime, independentemente de haver dano à saúde do consumidor.

A gravidade aumenta quando há promessa explícita de cura. A criminalista Eduarda Garcia ressalta que o artigo 273 do Código Penal, que trata da comercialização de produtos terapêuticos sem registro, costuma ser o enquadramento mais robusto.

"É um dos crimes com pena mais alta do Código Penal", apontou. Ela explicou que o charlatanismo (artigo 283) também pode ser aplicado quando alguém anuncia uma cura infalível.

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A responsabilidade não recai apenas sobre quem vende. Nos grupos monitorados, usuários que se apresentam como terapeutas, influenciadores ou pais "experientes" atuam estimulando o uso das substâncias. Segundo Eduarda, essas pessoas podem ser responsabilizadas como partícipes ou coautores.

"Se contribuem para a prática, seja instigando ou orientando, podem responder penalmente", disse.

No Brasil, os direitos das pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) são garantidos principalmente na Lei Berenice Piana. A advogada Pietra Gomes, especialista na defesa dos direitos das pessoas com autismo, alerta que o uso de tratamentos sem comprovação científica ou de medicamentos não aprovados pela Anvisa fere essas garantias previstas em lei.

"A legislação assegura que pessoas com autismo tenham acesso a cuidados de saúde seguros, como diagnóstico precoce, terapias com eficácia comprovada e acompanhamento multidisciplinar", afirmou.

Segundo ela, intervenções baseadas em evidências e o acompanhamento médico regular são fundamentais para garantir o desenvolvimento pleno das pessoas com TEA.

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No campo civil, a advogada Brunize Finger explica que a Lei Berenice Piana, combinada ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, assegura proteção contra práticas abusivas.

Além das pessoas que anunciam falsas curas, as plataformas que hospedam esses grupos também podem ser responsabilizadas. Após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2025, empresas como Telegram e sites de comércio eletrônico podem responder na Justiça se, após notificação extrajudicial, não removerem conteúdos manifestamente ilícitos.

"A omissão diante de risco concreto pode configurar negligência grave", alertou Eduarda Garcia.

Brunize Finger ressalta que, no caso de anúncios pagos, a responsabilidade das plataformas é ainda maior, já que a plataforma avaliou e aprovou o conteúdo patrocinado ou vinculado.

Para famílias que compraram os produtos ou cujos filhos adoeceram após o uso, especialistas recomendam agir sem demora. Prints de conversas, números de telefone, links, comprovantes de pagamento e laudos médicos são fundamentais para sustentar uma denúncia.

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A orientação é que a pessoa lesada procure a delegacia de crimes cibernéticos ou o Ministério Público, levando tudo que comprove a negociação e os danos. Informações sobre quem vendeu — como nome, CNPJ e endereço — também ajudam a acelerar as investigações.

A criminalista Eduarda aponta que ferramentas de captura certificadas, que garantem a autenticidade de conversas e anúncios, fortalecem o material probatório e evitam a contestação de prints simples.

Esta investigação, realizada pela LatamChequea, a rede de verificadores latino-americanos, faz parte de "Os Desinformantes", uma série de reportagens sobre grupos que espalham conteúdos enganosos na região. Foi realizada no âmbito do projeto "Promover informações confiáveis e combater a desinformação na América Latina", coordenado pelo Chequeado e financiado pela União Europeia. Seu conteúdo é de responsabilidade exclusiva do Estadão Verifica, do ColombiaCheck, do Verificado e do Mala Espina, e não reflete necessariamente os pontos de vista da União Europeia.

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