'O karaokê do pequeno expediente': quando a Câmara dos Deputados vira mural de recados

Pesquisa inédita analisou mais de 120 mil discursos da primeira parte das sessões do plenário, e encontrou poucos sinais do embate político que marca outros momentos da Casa.

27 mai 2017 - 10h07
(atualizado às 15h26)

Enquanto o clima esquenta no Congresso com o agravamento da crise política, há um momento no cotidiano da Câmara dos Deputados em que disputas entre oposição e governo ficam em segundo plano. É o pequeno expediente, ocasião em que parlamentares podem discursar sobre assuntos livres por até cinco minutos.

Foto: BBC News Brasil

O cientista político Davi Moreira analisou 127.782 pronunciamentos entre 2000 e 2015, e mostrou que a tribuna nesses momentos vira um grande "mural de recados" para bases eleitorais - uma espécie de karaokê político, eclético e sem música.

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É recado para amigo ex-jogador de futebol, citação a datas comemorativas, homenagem a empresários e políticos locais e até aos próprios pais. Até então pouco se sabia sobre o volume de discursos, o padrão de uso dessas situações e o conteúdo das falas.

"Quero aqui usar um pouquinho da minha cota de proselitismo, como muitos deputados aqui usam", disse o deputado Alfredo Kaefer (ex-PSDB, atual PSL-PR) em abril de 2013, antes de parabenizar os pais pelos 65 anos de casamento.

"Muitos deputados passam o mandato inteiro sem falar, nas votações e comissões, mas no pequeno expediente quase todos discursam", afirma Moreira.

Ao todo, 2.579 deputados federais diferentes ocuparam cadeiras nas legislaturas analisadas (51ª a 54ª). Desses, 2.262 (88%) realizaram ao menos um discurso no pequeno expediente - a uma média de 59 falas por deputado federal.

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No repertório do pequeno expediente, segundo o levantamento, predominam intervenções sobre datas profissionais e homenagens, além de temas municipais e regionais.

"O chamado baixo clero (deputados com pouca influência na Câmara) usa os discursos para citar lideranças de sua região, como um prefeito, pastor, empresário, e faz questão de pedir que esses discursos sejam veiculados na Voz do Brasil depois", diz o pesquisador.

A pesquisa de Moreira, que integrou tese de doutorado na USP, mostra que a posição do deputado no xadrez político pouco importa nessas ocasiões.

"Fora as situações de polêmicas (como escândalos de corrupção), os deputados falam o que querem. A ligação com governo ou oposição fica bem mais restrita a discursos em votações e comissões", afirma o autor.

Na tribuna

O estudo procurou ainda verificar se há fatores que explicam por que alguns deputados usam mais a tribuna do pequeno expediente do que outros.

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Descobriu, por exemplo, que siglas associadas à esquerda, como PSOL, PT e PC do B, tendem a usar mais esse espaço.

O número de discursos também tende a crescer quando o deputado tem mais votos e mais experiência, ou seja, mais mandatos. "Ser mulher, por exemplo, não interferiu na quantidade de discursos proferidos em qualquer uma das legislaturas analisadas", acrescenta.

O deputado Luiz Couto (PT-PB) foi um dos "campeões" do pequeno expediente na legislatura passada (2011-2015) - com 882 discursos, ficou em terceiro lugar.

Ele reconhece que essa primeira parte das sessões ordinárias do Plenário, com duração máxima de uma hora, não prima pela alta temperatura dos debates, mas ressalta ser um espaço "mais aberto e amplo".

"Tenho falado de temas como direitos humanos, violência, racismo, educação e saúde. Os embates entre oposição e governo ficam mais para o grande expediente", afirma, citando o período com mais tempo de fala (25 minutos) mas sujeito a sorteio para definição de oradores.

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Discurso como estratégia

Para o cientista político Ricardo Braga, professor no Cefor (Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento) da Câmara dos Deputados, ainda que o público nas sessões do pequeno expediente possa escasso, a participação é fundamental para a comunicação com o eleitor.

"Hoje, com as várias possibilidades de transmissão do discurso, estar na tribuna é valioso para falar com o eleitor. E a grande maioria dos parlamentares tem base em municípios específicos, em região localizada. É preciso manter esse vínculo", comenta.

Nem sempre, contudo, a participação no pequeno expediente se traduz em votos.

Campeão de discursos na legislatura passada, com 1.190 intervenções em quatro anos, o ex-deputado Amauri Teixeira (PT-BA) não conseguiu se reeleger em 2014.

Em seu primeiro mandato, Teixeira era conhecido pela busca por visibilidade - chegou a presidir mais de cem sessões da Câmara, mesmo sem integrar a Mesa Diretora. Em entrevista ao jornal O Globo em 2013, ele dizia contabilizar todas suas horas no posto, aparições na Voz do Brasil e nos meios de comunicação da Casa.

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"Estive na Voz do Brasil de quinta a quinta semana passada", disse orgulhoso o ex-deputado ao jornal na ocasião.

Davi Moreira, o cientista político responsável pelo estudo dos discursos do pequeno expediente, análise que usou softwares estatísticos e levou oito meses, diz que essas intervenções podem ainda revelar outros tipos de dados sobre o funcionamento do Congresso.

"Com a pesquisa científica é possível ir atrás de outras questões, como o cruzamento de dados entre temas de discurso do pequeno expediente e financiadores de campanha dos deputados, ou como votam depois", afirma, sugerindo caminhos para novos estudos.

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