ATENÇÃO: Esse texto traz relatos de violência sexual.
Marina Lacerda veio a público em setembro deste ano para relatar ter sido vítima de violência sexual por Jeffrey Epstein. Agora, em entrevista à BBC News Brasil, ela conta que muitas outras brasileiras como ela teriam estado na mansão do bilionário e que teriam sido abusadas por ele.
"Pelo menos umas 50 brasileiras, eu acho. Eu levei algumas dessas meninas, e elas levaram outras meninas", diz Marina.
Epstein morreu em uma cela de prisão em Nova York em agosto de 2019, enquanto aguardava, sem possibilidade de fiança, seu julgamento por acusações de tráfico sexual, mais de uma década após sua condenação por contratar serviços de prostituição de uma menor de idade, pelo qual ficou registrado como agressor sexual.
Na época dos abusos, Lacerda conta que morava em Astoria, bairro do distrito de Queens, em Nova York, conhecido por ter uma grande comunidade de brasileiros.
A BBC News Brasil revelou o elo do caso de Epstein com o Brasil a partir de um documento divulgado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, tornado público na última semana, o qual falava em um "grande grupo brasileiro", mas os nomes e detalhes que poderiam dar maior contexto das informações estão tarjados.
Marina é de Belo Horizonte (MG) e conta que foi para os Estados Unidos quando tinha 8 anos, para acompanhar a mãe. Ela diz que, ainda adolescente, trabalhou em vários empregos diferentes, mas que o dinheiro não era suficiente para se sustentar. "Eu era imigrante e menor de idade", afirma.
Foi aí que ela descobriu um grupo de jovens, vinculado a uma igreja em Astoria, com outras brasileiras. Até que uma delas chegou com um convite.
"Essa menina falou: sei que você está passando uma dificuldade imensa na sua casa e queria te ajudar. Tem um cara super-rico, poderoso, que mora em Manhattan, e gosta de pegar massagem de menina nova."
Ela conta que já tinha trabalhado temporariamente como recepcionista em um spa em Koreatown, um bairro de Manhattan, e que teria aprendido o básico sobre como fazer uma massagem. "É claro que eu não tinha formação, né? Mas falei para essa amiga que sabia fazer."
A amiga então a alertou: "Você tem que usar um biquíni por baixo, porque ele gosta de menina que faz massagem com biquíni, de sutiã".
'Você nunca fez 300 dólares em 40 minutos'
Marina conta à BBC News Brasil que achou o convite da amiga muito estranho, mas decidiu ir mesmo assim. Ela tinha 14 anos.
Quando chegou ao local, viu que as coisas seriam muito diferentes do que a colega contou. "Eu estava muito nervosa e ansiosa, mas essa amiga disse que ele era super gente boa", diz.
"Uma empregada me pegou, pegou essa amiga, colocou num elevador, e fomos até o terceiro andar. Então, abriu uma porta, com um corredor. Andamos até um quarto de massagem com tudo escuro. A janela estava tampada."
Epstein então teria se apresentado pela primeira vez. "Ele perguntou de onde eu era, quantos anos eu tinha, se eu ia para a escola."
Marina relata que Epstein passava boa parte do tempo ao telefone e dava a impressão de estar falando com pessoas importantes. Segundo ela, ao encerrar uma das ligações, ele se virou e começou a tocá-la.
Ela afirma que pediram para que tirasse a blusa. Diz que Epstein, tentando se mostrar gentil, quis tocá-la. "Eu falei: 'não'. Eu disse que não me sentia confortável."
Em seguida, conta que percebeu uma mudança no clima. A jovem que estava com ela teria reagido com irritação. "Ela me olhou com raiva. Eu achei que aquilo não fazia parte", relata.
Segundo Marina, Epstein então tentou minimizar a situação. "Ele disse: 'dá um tempo que ela vai se sentir confortável comigo'. Nisso, eu troquei de lugar com minha amiga, e ele começou a tocar nela."
Ela diz que a postura de Epstein mudou com a colega brasileira. "Ele foi super agressivo."
Marina afirma que a situação se intensificou rapidamente e que ficou em choque. "Foi uma coisa muito intensa. Não sabia que isso ia acontecer."
Quando Epstein terminou, elas se vestiram, receberam o dinheiro e saíram. "Ele disse que me veria de novo. Eu fiquei calada, pensando que nunca mais veria esse cara."
Quando saíram, Marina diz ter reclamado com a amiga da situação. Essa colega rebateu: "Você nunca ganhou 300 dólares em 40 minutos".
"Discutimos, ela jogou o dinheiro na minha cara e falou para eu parar de reclamar, que eu precisava desse dinheiro e que ia me ajudar muito."
Ela conta que a amiga a convenceu, e ela voltou ao local outras vezes. "Você mora em Astoria, é imigrante, não conhece ninguém. Esse cara vai te ajudar."
'Levamos várias brasileiras, infelizmente'
Marina Lacerda afirma que, após algumas visitas, a situação "escalou".
"Começou a virar uma bagunça. Ele [Epstein] começou a pedir para eu levar meninas. Eu não queria que minhas amigas soubessem disso. Mas tinha uma amiga que estava passando por abuso pelo irmão dela e morou comigo por um tempo." A amiga topou.
Dali em diante, a dupla teria começado a buscar outras meninas para Epstein, conta Marina.
"Meninas que estavam necessitando trabalhar porque eram imigrantes, não tinham documentos de imigração, não tinham família. Um montão de brasileiras, russa, hispânicas. Levamos várias brasileiras, infelizmente", diz ela.
"Brasileiro chega aqui [nos EUA] e não tem documentos. Não tem como dar um jeito na vida. É muito difícil ser imigrante aqui, ainda mais brasileira quando vem sozinha."
Ela diz que, com o tempo, começou a ter mais liberdade na casa, e que novas meninas pediam para ir com ela ao local. "Ele nunca falava que éramos menores. Dizia que estava ganhando massagem de menina bonita, nova."
Contou também que ia ao escritório de Epstein e que ele dava dinheiro quando ela precisava. "Ele foi muito manipulador. Sempre falava para a gente que era dono de governo, de banco."
Ela relatou também um suposto episódio de racismo, quando teria levado uma brasileira negra para a casa. "Ele ficou puto comigo. Falou que tinha que parar de trazer menina escura. Acho que não a pagaram."
Com o tempo, Lacerda diz que Epstein passou a reclamar que ela só estava levando meninas "velhas" e que ela deveria buscar garotas mais jovens. "Eu já estava me sentindo muito mal de levar meninas de 15, 16 anos."
Ao lembrar da situação, ela reclama da falta de apoio de familiares com adolescentes como ela.
"Eu saía para clubes brasileiros e via meninas com 14, 15, 16 anos, sem identidade. Cadê nossas mães? Acho que minha mãe errou muito. Se ela tivesse me dado uma estrada legal, tivesse feito um jeito de não me deixar solta, não iria fazer as coisas que ia fazer. Eu levei as meninas e as meninas levaram outras meninas. Fui abusada lá dos 14 até os 17 anos."
Depoimentos ao FBI
Marina conta que foi procurada pelo FBI, a polícia federal americana, para contar o que sabia sobre Epstein ainda em 2008, mas, naquela época, ela teve medo de falar. Ela relata que morava então com outras brasileiras em uma casa, também em Astoria.
"Eles foram muito agressivos comigo. Chegaram pedindo para falar comigo, que eu tinha que falar com eles, que havia um caso com Epstein. Eu não tinha ideia do que estava acontecendo."
Lacerda diz que ligou para uma secretária de Epstein à época para perguntar o que estava acontecendo e que ele teria prometido enviar um advogado para ajudar. Ela foi orientada a nunca mais ligar para aquele número.
"Fiquei com muito medo, não contei tudo. O advogado não era para mim, era para o Epstein, para proteger ele."
Em 2019, o FBI buscou Marina de novo. Dessa vez, ela decidiu falar em mais detalhes. Epstein morreria no mesmo ano, em julho, em uma prisão.
"Queriam saber quem eu levei lá [na casa]. Quando dei depoimento, não lembrava de muita coisa até então. O trauma acaba com você. Estava muito nervosa."
Ataques após decisão de vir a público
Em setembro deste ano, Marina Lacerda veio a público contar sua história pela primeira vez.
Deu uma entrevista à rede de TV americana ABC News e também participou de uma entrevista coletiva com outras oito mulheres que acusam Epstein de abusos.
O ato, que pediu a revelação de todos os documentos sobre o caso, aconteceu em frente ao Congresso americano, em Washington.
Dali em diante, ela decidiu que deveria falar mais sobre o caso: criou páginas no Instagram e no TikTok e contratou uma pessoa para ajudá-la com os conteúdos. Seu objetivo, conta, é conscientizar mais pessoas sobre abusos físicos e psicológicos.
"Depois que quebrei meu silêncio, eu não tenho parado. Abrir plataformas e comecei a falar em podcasts. Falo de como ensinar nossas crianças a falar não. O abuso sexual, emocional, financeiro, físico, começa com a gente. O que você deixa acontecer. Muitos pais não têm esse conhecimento."
Desde que começou a dar entrevistas, lamenta que tem sido criticada nas redes sociais.
"As pessoas atacam, falando que fiquei, que eu voltei [na casa]. Por que acha que outras brasileiras [vítimas de Epstein] não querem falar nada? A família vai atacar. Quando falei no Brasil, minha família caiu em cima de mim feio. E olha que minha família no Brasil nunca entrou no meio de nada que aconteceu aqui."
Ela diz que a família acreditava que seus relatos tinham algum objetivo político.
"Pensaram que tinha alguma coisa a ver com o Lula ou o Bolsonaro. Falei, gente, não ligo para Lula e o Bolsonaro. Não ligo para o Trump aqui. Tem pessoas que me perguntam sobre o Lula. Não estou nem aí. Não sei nada do Brasil."
Ela conta que lê alguns dos comentários das publicações sobre ela e muitos são ofensivos, o que pode desestimular outras vítimas de contar suas histórias.
Marina diz que recebe relatos constantes de outras latinas que foram abusadas, mas que não querem vir a público por medo de críticas.
"É só ver os ataques que eu recebo. Seria mais do que certo falarem alguma coisa, mas não posso pedir isso a ninguém."