Indígenas enfrentam baixa representatividade no mercado de trabalho brasileiro, com apenas 0,9% de participação, recebendo salários inferiores e lidando com preconceitos relacionados à cultura, aparência e origem.
“Eu tinha uma baixa autoestima tão grande, tanto medo, que eu tinha certeza de que ia ser rejeitada. Que não iriam me contratar por causa da minha aparência. Então, eu preferi ficar quieta, cuidar da casa”, diz Maura Akã Mbareté, de 47 anos.
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O relato de Maura é o reflexo do cenário atual do mercado de trabalho no Brasil. De acordo com o relatório Panorama da população indígena no mercado de trabalho formal brasileiro, realizado pela startup Diversitera, a população indígena ocupa apenas 0,9% da força de trabalho no País.
Segundo Maura, a forma dela olhar para o mercado de trabalho é resultado de uma construção em que a rejeição começa ainda na infância. Ela narra que desde pequena sofria com situações de preconceito. Os colegas e professores a julgavam por sua aparência e por sua forma de falar.
“Eu era maltratada na escola. Tinha uma professora que me maltratou muito quando eu era criança, me colocava na parede na frente da sala inteira. Era só eu. E eu não entendia porquê. Falavam que eu era feia, muitas coisas assim”, contou ela.
Com a morte da mãe e a idade avançada do pai, Mbareté começou a trabalhar aos 15 anos. Formada no antigo Magistério, um curso profissionalizante feito junto ao ensino médio, ela atuou como professora do ensino básico, mas recebia pouco.
Mesmo depois de passar em primeiro lugar em um concurso para trabalhar em um hospital, a realidade não mudou. A forma como foi tratada no mercado a desencorajou a tentar novas oportunidades fora dos espaços que já conhecia, como conta ela, que enfrentou uma depressão severa que durou até os 45 anos, quando descobriu mais detalhes de suas origens indígenas.
“Me protegi ficando em casa, cuidando da casa. Por isso, comecei a fazer artesanato, fazia crochê. Porque a perseguição que eu sofria era muito absurda”, contou.
Atualmente, trabalha como artesã, vendendo suas peças em feiras e eventos. No entanto, até mesmo nos espaços direcionados para pessoas como ela, Mbareté vivenciava situações de preconceito. “As pessoas passavam no meio da feira fazendo gestos preconceituosos. Assim (batendo na boca), e falando coisas diminuindo o nosso artesanato e a nós”, contou.
“[Muitas vezes] o preconceito é tão sutil que, muitas vezes, quando você percebe, ele já aconteceu e você não pode fazer nada”.
Exclusão no mercado de trabalho
Além de apontar a baixa inserção das pessoas indígenas no mercado de trabalho, a pesquisa da Diversitera, aponta uma concentração desses profissionais em funções operacionais (61%). Segundo o estudo, 0,4% estão em cargos de média liderança, contra 72,6% de pessoas brancas. Apenas 0,3% estão na alta liderança, enquanto 85,2% destas vagas são ocupadas por pessoas brancas.
Um número discrepante levando em consideração que a população indígena no Brasil, que representa 0,83% dos brasileiros, com mais de 250 etnias, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O relatório aponta ainda que a grande maioria deste número enfrenta situações de preconceito no ambiente corporativo. Cerca de 22% dos profissionais já foram alvo ou testemunharam manifestações de preconceito no cotidiano, sendo 66% dos casos relacionados a questões como origem, práticas religiosas e características fenotípicas. Além de baixos salários --ganhando, em média, 23% a menos que os brancos para desempenharem as mesmas funções.
Para chegar ao resultado, a startup, que é dedicada à promoção da equidade social e econômica, se baseou em pesquisas realizadas entre julho de 2022 e março de 2025, com uma amostra de 112.947 pessoas em 53 empresas de médio e grande porte, de mais de 17 segmentos de mercado, em diversas regiões do país.
Apagamento cultural nos centros urbanos
A socióloga e liderança indígena do povo Guayana-Muiramomi, nativos do ABC Paulista, Silvia Muiramomi, conta que os membros de sua aldeia enfrentam diversas resistências com características que fazem parte da cultura deles quando tentam integrar espaços urbanos de modo geral.
Ela narrou um episódio em que um homem de seu povo estava com pinturas de jenipapo no rosto após ter passado por um processo de cura e foi impedido de entrar em um banco. “Quer dizer que pode entrar com tatuagem, pode entrar com maquiagem, mas não com um grafismo étnico, pois é um perigo para a agência bancária? A gente entende que isso é racismo. [Dizem] a cidade não é lugar do indígena ficar, e isso eles deixam claro”, destaca.
“Também tem a questão da língua. Quando você conversa com uma pessoa aldeana, o português dela é 'travado' (sic.) porque a língua nativa dela é Guarani-Mbya.[...] Eles têm dificuldade, inclusive as crianças, nas escolas de educação formal. Tive que mudar as crianças da aldeia três vezes de escola porque elas apanhavam das outras crianças. As professoras não acolhiam, elas não entendiam o modo de alimentação. Então, tudo isso dificulta a colocação dessas pessoas que vivem em aldeias no mercado de trabalho”, pontuou Muiramomi.
Outro ponto abordado por ela é a locomoção para chegar até os centros urbanos, onde são oferecidos o maior número de vagas de emprego. “As aldeias ficam mais dentro de zonas rurais de mata fechada e, via de regra, as estradas para chegar à cidade são péssimas. Não tem infraestrutura que permita isso [chegar às cidades]”, destaca.
Ela explica que se tiverem que abandonar suas raízes para ocupar esses espaços, os indígenas preferem não ocupar. “Isso faz com que eles não queiram buscar empregos nesses locais, porque foge muito da cultura. Eu já tive parentes aqui, jovens, que a Universidade foi buscar na aldeia para preencher vagas e cotas de pessoas indígenas e eles se recusaram porque a forma de viver é deslocá-los da cultura deles”, diz.
“Essa é uma queixa dos mais velhos. Quando os jovens voltam das universidades, eles ficam completamente inadequados para o que era a cultura deles”, conta. “O mercado de trabalho precisa se adequar ao bem viver e às culturas desses povos indígenas. É uma inversão. Então, você vai encontrar pouquíssimos indígenas de contexto de aldeia tentando vagas fora”.
Para não sofrer situações de preconceito, muitos preferem não se declarar como indígenas, segundo Muiramomi. “Ele se declara como pardo, como branco, mas não se declara indígena por medo de sofrer retaliação e racismo dentro do próprio ambiente de trabalho”, diz.
“É uma estatística que subestima o número de indígenas. Porque não temos essa segurança de nos declararmos indígenas, mas a gente está participando de vários segmentos de força de trabalho sem ser contabilizado como indígena”, lamenta.
A especialista em Raça e Etnia da Diversitera Tamiris Hilário lamenta a falta de inclusão de indígenas no mercado de trabalho. “Soa óbvio, mas é preciso dizer: a presença mais ou menos expressiva de indígenas nas organizações não quer dizer que eles não existam, tampouco que as empresas não devam apoiar essa população. Pelo contrário. É um compromisso ético e cidadão visibilizá-la e incluí-la e os dados podem ajudar”, afirma.
“Precisamos arquitetar novas práticas de inclusão de pessoas indígenas. As organizações têm condições de melhorar esses números fazendo-se perguntas chave: Já realizamos um censo de diversidade para constatar a presença ou ausência de indígenas na empresa? Estamos situados em regiões com alto índice populacional de autodeclarados indígenas, consciente dessa característica do contexto? Promovemos conversas sobre raça e etnia, incluindo indígenas na pauta e colaborando com o processo de autodeclaração dos colaboradores? Temos como escopo de trabalho áreas que podem impactar comunidades indígenas diretamente, como o agronegócio, a mineração e os químicos? Apresentamos políticas de preservação que incluam o combate ao racismo ambiental? Investimos em desenvolvimento local, apoiando empreendedores e trabalhadores informais indígenas? Apostamos em talentos indígenas e apoiamos cotas raciais?”, finaliza Tamiris.