"Tirei tudo o que julguei ultrapassado", diz autor de 'Saramandaia'

4 ago 2013 - 08h30
(atualizado às 08h34)

Ricardo Linhares é do tipo que, quando coloca uma coisa na cabeça, dificilmente desiste. Foi assim com seu projeto de adaptação da mítica Saramandaia, de 1976, proposto para o horário das 18h e engavetado pela Globo em 2005. "Era o único horário de 'remakes' da emissora na época e seria uma novela baseada no lado mágico da história", relembra. Com a abertura de mais um horário de teledramaturgia, às 23h, Linhares viu a possibilidade de levar ao ar a metáfora política e social assinada pelo saudoso Dias Gomes em 57 capítulos e com toda a liberdade que a faixa assegura.

E é com notável satisfação que ele fala sobre sua versão da trama. "Foi uma novela que marcou a juventude da minha geração. Dessa vez, a Globo aprovou na hora. Mostrar essa história de forma moderna e com os efeitos visuais dos dias de hoje me estimula muito", valoriza. Carioca e jornalista por formação, Linhares chegou à TV no início dos anos 1980, quando começou a estagiar na antiga TVE Brasil, hoje TV Brasil.

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Em um curso de roteiro, chamou a atenção do autor Doc Comparato e foi para a Globo, onde escreveu episódios do Caso Verdade e passou a fazer roteiros e esquetes cômicas no programa Viva O Gordo, de 1983. "Fiquei alguns anos escrevendo para o humorístico do Jô. Aprendi muito ali, mas chegou um momento onde o interesse e a vontade de fazer novelas falou mais alto", conta Linhares, que, depois de participar de oficinas de teledramaturgia promovidas pela emissora, foi convidado a ser colaborador de Aguinaldo Silva em O Outro, de 1987.

A partir dessa parceria, tornou-se coautor de tramas de sucesso como Tieta, Pedra Sobre Pedra e A Indomada. Curiosamente, todas flertaram com o realismo fantástico inaugurado por Dias Gomes. "As novelas que escrevi com Aguinaldo eram muito divertidas. Muito por esse uso da metáfora da fantasia", analisa. Além de Aguinaldo, outra parceria profissional frequente de Linhares é com Gilberto Braga.

A dupla criou novelas do quilate de O Dono do Mundo e tropeços como Insensato Coração. "Meu trabalho com o Gilberto é mais urbano e realista. É bom passear por mundos tão diversos", ressalta.

A influência do realismo fantástico de Dias Gomes é muito forte no seu trabalho, sobretudo nas tramas que você dividiu com Aguinaldo Silva. O que o motivou a revisitar Saramandaia, uma das obras mais míticas de Dias?

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Eu tinha 14 anos quando a novela foi exibida. Não acompanhava sempre porque, naquela época, a novela das 22h era para os adultos e eu tinha de acordar muito cedo no dia seguinte. Sou filho de militar e na minha casa ver TV era bem complicado. Tinha uma marcação muito rígida. O pouco que vi de Saramandaia mexeu muito comigo. Na verdade, com toda a minha geração, pois era o assunto da turma no dia seguinte. Hoje em dia, o público que não acompanhou a primeira versão sabe que houve uma novela que tinha uma cara que colocava formiga pelo nariz e uma mulher que explodiu, mas não associam isso a Saramandaia. É um resgate.

Assim como aconteceu com a sua geração, você acredita que a nova versão possa atrair também um público mais jovem?

Hoje a garotada faz e assiste ao que bem entende. E acho que o lado lúdico de Saramandaia é um atrativo. Mas é bom deixar claro que, embora tenha muitas brincadeiras e personagens mágicos, não é uma trama jovem e muito menos infantil. Apesar de tudo ser entremeando pela graça e pela comédia, tanto a versão original quanto esta são baseadas em tramas políticas e contundentes, que debatem respeito, intolerância, corrupção e sexo.

Em 2005, você apresentou à Globo um "remake" de Saramandaia para o horário das 18h. Como você abordaria os assuntos polêmicos do folhetim com as limitações dessa faixa ?

Os personagens fantásticos me motivaram a refazer Saramandaia baseada no que há de mágico na trama. Mas, na época, foi complicado desenvolver essa ideia porque, suprimindo as polêmicas, o material original não teria uma história com fôlego para ficar tanto tempo no ar. Hoje em dia, uma novela precisa ter muitas "viradas" para garantir o interesse do telespectador. Fora isso, depois que o projeto foi engavetado, vi que o tipo de realismo fantástico usado pelo Dias não se adequava a um horário convencional de novelas.

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Por quê?

O público atual é ávido por realismo. Isso se comprova com o sucesso e a criação em massa de "reality shows" sob as formas mais bizarras. E Saramandaia é comédia satírica e magia. Não sei se o público do horário das 18h, que já é difícil, conseguiria embarcar nessa fantasia. Acredito que, até para as 23h, revisitar a cidade e os moradores de Bole-Bole é uma ousadia da Globo. Tudo em Saramandaia é diferente e o público está cada vez mais crítico, cobrando das telenovelas uma postura mais próxima do cotidiano.

Quando você estreou na Globo, em 1983, Dias Gomes já era um dos mais prestigiados autores da emissora. Chegou a conhecê-lo ou a se tornar amigo do autor?

Não nos tornamos amigos próximos, mas o pouco contato que tivemos foi bem interessante. Ele é um dos responsáveis por eu ter enveredado pelos folhetins.

Como assim?

Conheci o Dias em um lugar chamado Casa de Criação Janete Clair. Era um centro de convivência de criadores e foi uma das primeiras iniciativas da Globo em formar novos autores de teledramaturgia. O Dias era o diretor da casa e eu estava começando a minha carreira. Já estava na Globo, era da linha de shows e trabalhava como roteirista do Viva O Gordo. Fiz esse curso para escritores de novela e isso mudou o percurso da minha vida profissional. Foi lá que tive meu primeiro contato com Dias e onde eu conheci o Aguinaldo.

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No lançamento da novela, você disse que considera sua versão de Saramandaia mais como uma homenagem ao trabalho do Dias Gomes do que um "remake". Ter total liberdade autoral foi uma exigência sua para este trabalho?

Nem precisei fazer qualquer pedido especial para mexer na trama. Sem pudores, tirei tudo o que julguei ultrapassado e datado. É por isso que o núcleo capitaneado pelo Tenório Tavares, que era interpretado pelo Sebastião Vasconcellos, sumiu. Esse núcleo fazia oposição ao Zico Rosado, em uma trama política que só era interessante em meados dos anos 1970. Aproveitei alguns nomes e adicionei personagens novos, com histórias totalmente distintas. E caprichei na ação. Seria impensável fazer uma novela com os temas de Saramandaia de forma arrastada. Então, minha versão tem explosões, tiros e perseguições. Toda uma movimentação que não existia na primeira versão.

A estrutura mais ágil ajuda a condensar os 160 capítulos da primeira versão nos 57 previstos para o "remake"?

Também, mas é apenas uma adequação. Hoje, o público tem mesmo essa necessidade de ação e tramas ágeis. Por ter 160 capítulos, a novela original era considerada curta para os padrões da época. O tamanho dos capítulos e o número de cenas eram bem menores também. Mas não me preocupei em condensar a história. Fiz outra, totalmente diferente. Não reutilizo, por exemplo, nenhum diálogo feito pelo Dias.

Recriar a novela de forma tão diferente é um jeito de você, mesmo partindo de um texto alheio, manter um tom mais autoral no trabalho?

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Não é só isso. O fato é que os anos que separam a novela original e a nova versão revelam um jeito de fazer e apresentar teledramaturgia totalmente novo. Tive a preocupação de que cada capítulo tivesse uma "virada" interessante, que prendesse o telespectador para o dia seguinte. Não dava para repetir o que foi feito. É por isso que a novela tem muita novidade.

O que fica do trabalho do Dias Gomes?

Do excepcional trabalho do Dias, peguei os personagens emblemáticos e a cidadezinha que está passando por um plebiscito. Dias fez questão da novela original ser atemporal, eu trabalho em cima de uma história contemporânea. A trama vai abordar temas atuais ou que ainda continuam fortes, como as corrupções em Brasília, a permanência de velhos conhecidos no poder e a aceitação das diferenças.

A dinâmica e a trama de personagens conhecidos como Dona Redonda e João Gibão também mudam em sua versão?

Bastante. A Dona Redonda, por exemplo, explodia no capítulo 26 de uma novela de 160 capítulos. Exceto a excentricidade, ela não tinha importância alguma na trama criada pelo Dias. Na nova versão, não. Ela explode próximo do final e tem história própria, baseada nas relações dela com o marido e a filha. Ter bons atores ajuda muito o autor e, no caso, o fato de a intérprete ser a Vera Holtz me inspirou a dar mais espaço para a Dona Redonda. No caso do João Gibão, ele continua importante para a história, mas deixa de ser a figura central.

Os protagonistas agora são Zico e Vitória, de José Mayer e Lilia Cabral. Por que centralizar a novela em uma história de amor?

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Essa trama foi criada porque no original não existia história de amor. A Vitória foi escrita especialmente para a nova novela. Ela e Zico são o elo da rivalidade de duas famílias e a base de uma trama totalmente folhetinesca, que envolve segredos e amores mal resolvidos. É a partir deles que eu desenvolvo os desencontros amorosos e as brigas pelo poder de várias gerações.

Saramandaia é uma produção de menor duração e que abusa de efeitos especiais. Isso modificou o seu processo de trabalho na confecção dos textos?

Bastante. O trabalho de pesquisa e de como essa versão iria se apresentar ao público foi longo. Passado isso, me concentrei em escrever, já que por exigir muito da equipe técnica e de efeitos visuais, eu deveria entregar o texto no tempo certo para ser gravado e receber a pós-produção. Já escrevi mais de 70% dos capítulos e continuo em um ritmo forte. É uma forma de não prejudicar o trabalho nos bastidores com a novela já no ar.

Na missão

Ricardo Linhares tem a necessidade de estar sempre envolvido em algum projeto de teledramaturgia. Seja como autor, coautor ou supervisor, ao longo dos anos, ele demonstra versatilidade no passeio pelas três funções. E, ao contrário da usual vaidade artística dos autores, ele se diz bem satisfeito com sua trajetória dentro da Globo e não liga se é escalado para fazer novelas em parceira ou tramas solos.

"Assinando o texto sozinho ou não, não existe diferença no meu entusiasmo e entrega ao projeto. E cada trabalho tem uma característica. Amanhã, posso supervisionar, ou voltar a escrever com Gilberto ou Aguinaldo", conta o autor, cuja carreira conta com apenas três tramas solos: O Campeão, exibida em 1996 pela Band, e as globais Meu Bem Querer, de 1998, e Agora é que São Elas, de 2003.

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Nos últimos anos, cresceu a participação de Linhares como supervisor de novelas assinadas por autores iniciantes. Com resultados oscilantes, ele deu sua consultoria dramatúrgica para a temporada 2011/2012 de Malhação, que, sob o texto de Ingrid Zaravezzi, obteve uma das audiências mais baixas em toda a história do folhetim. Assim como fez a supervisão de Cheias de Charme, maior sucesso recente da faixa das 19h. "É um trabalho muito pontual. Dou dicas e soluções para cenas complexas. Me envolvo no processo criativo, mas respeitando a ideia original dos autores", explica.

Em nome do novo

Ricardo Linhares se diz defensor de uma natural renovação da TV. É por isso que ele se preocupa tanto em auxiliar novos autores e lançar intérpretes em suas tramas. Assim que ficou sabendo da aprovação do "remake" de Saramandaia, começou a pensar em atores que fazem pouco televisão e rostos não tão conhecidos do grande público para personagens-chave de sua trama. "Negociei e procurei com os diretores por atores que pudessem dar um frescor ao trabalho, como Fernando Belo, Sérgio Guizé e a Chandelly Braz, que teve um ótimo desempenho em Cheias de Charme e agora está em um papel de destaque", entrega o autor, que, mesmo preocupado com a renovação, não esquece dos "medalhões" que conquistou para o elenco de sua novela.

"Não é qualquer autor que pode se dar ao luxo de ter seu texto interpretado por gente tão competente. Escalei exatamente quem eu queria", exalta o autor, citando nomes como Fernanda Montenegro, José Mayer, Lilia Cabral, Matheus Nachtergaele, Marcos Palmeira e Leandra Leal.

Trajetória televisiva

- Caso Verdade (Globo, 1982) - Roteirista.

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- Viva O Gordo (Globo, 1983) - Roteirista.

- A Máfia no Brasil (Globo, 1984) - Colaborador.

- O Tempo e O Vento (Globo, 1985) - Colaborador.

- Teletema (Globo, 1986) - Autor.

O Outro (Globo, 1987) - Colaborador.

- Fera Radical (Globo, 1988) - Colaborador.

Tieta (Globo, 1989) - Autor (em parceria com Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretszohn).

Lua Cheia de Amor (Globo, 1990) - Autor (em parceria com Ana Maria Moretszohn e Maria Carmem Barbosa).

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- O Dono do Mundo (Globo, 1991) - Autor (em parceria com Gilberto Braga).

- Pedra Sobre Pedra (Globo, 1992) - Autor (em parceria com Aguinaldo Silva).

- Fera Ferida (Globo, 1994) -  Autor (em parceria com Aguinaldo Silva).

- Malhação (Globo, 1995) - Supervisor de texto.

- O Campeão (Band, 1996) - Autor.

- A Indomada (Globo, 1997) - Autor (em parceria com Aguinaldo Silva).

- Meu Bem Querer (Globo, 1998) - Autor.

- Porto dos Milagres (Globo, 2001) - Autor (em parceria com Aguinaldo Silva).

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- Agora É Que São Elas (Globo, 2003) - Autor.

- Celebridade (Globo, 2003) - Autor (em parceria com Gilberto Braga).

- Paraíso Tropical (Globo, 2007) - Autor (em parceria com Gilberto Braga).

- Insensato Coração (Globo, 2011) - Autor (em parceria com Gilberto Braga).

- Malhação Conectados (Globo, 2011) - Supervisor de texto.

- Cheias de Charme (Globo, 20012) - Supervisor de texto.

- Saramandaia (Globo, 2013) - Autor.

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Fonte: TV Press
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