Em 'Frankenstein', sensibilidade de del Toro dá nova camada ao debate sobre a identidade do monstro

Cineasta mexicano transforma história de Mary Shelley em um espetáculo visual; filme estreia no streaming

8 nov 2025 - 12h10

Embora seja muito reconhecido por seus trabalhos no terror, Guillermo del Toro é um dos cineastas mais prolíficos da Hollywood atual. Estrangeiro numa indústria extremamente bairrista, o mexicano tem grande apreço pelo diferente e pelo bizarro, algo que permeia todas os seus trabalhos. De grandes blockbusters de ação como Círculo de Fogo a vencedores do Oscar como Pinóquio e A Forma da Água, o diretor tenta depositar o máximo de humanidade possível em seus personagens, ao mesmo tempo em que questiona a monstruosidade inerente do Homem. Até por isso, era natural que, eventualmente, ele trabalhasse em sua própria versão de Frankenstein, história clássica de Mary Shelley pautada exatamente nesse debate sobre a natureza humana.

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Ainda que a questão "quem é o verdadeiro monstro?" não seja nenhuma novidade em adaptações do título, estando presente até em sátiras da história como O Jovem Frankenstein de Mel Brooks, del Toro transforma a complexidade de seus personagens em algo além da ambição. Mais do que um médico tentando superar a morte, seu Victor Frankenstein (um ótimo Oscar Isaac) é um artista, perturbado pela incompreensão do público e obstinado em provar sua genialidade num meio que o vê seu trabalho como uma piada megalomaníaca. Ao mesmo tempo, sua Criatura (Jacob Elordi) vive em um autoexílio forçado por quase toda a sua existência, buscando afeto e compreensão num mundo despreparado para entender o que sua chegada pode significar para a humanidade.

Fugindo de outras adaptações do clássico de Shelley, del Toro rejeita o terror, preferindo focar sua trama no drama existencial que abate seus personagens. Nessa abordagem, o diretor mais uma vez evidencia a beleza no horror, transformando uma história originalmente sobre ódio e vingança em um surpreendente conto de amor e esperança.

Mesmo sob maquiagem pesada, Jacob Elordi brilha como a Criatura em 'Frankenstein'
Mesmo sob maquiagem pesada, Jacob Elordi brilha como a Criatura em 'Frankenstein'
Foto: Netflix/Divulgação / Estadão

Completando-se como duas faces de uma mesma moeda, Criador e Criatura passam anos se perseguindo, se estudando e se antagonizando, correndo atrás de objetivos inalcançáveis que transformaram suas vidas em tragédias solitárias. Contando suas histórias de seus próprio pontos de vista, a dupla protagonista divide seu conto como uma fábula, refletindo sobre seus desejos e suas falhas.

De certa forma, ambos os personagens são ainda crianças, presas em traumas que estilhaçaram sua visão de mundo. A obsessão de Victor em vencer a morte nasce em sua infância, quando ele perdeu a mãe (Mia Goth), tendo que passar o resto da juventude sob o olhar julgador e abusivo do pai (Charles Dance). A Criatura, por sua vez, é uma espécie de recém-nascido, cujo fascínio pelo mundo só é superado pelo ódio à violência a que foi submetido desde que abriu os olhos pela primeira vez. Nas mãos de del Toro, no entanto, essas personalidades não se tornam infantilizadas, mas sim pontos de conexão entre personagens impossíveis e o público. Afinal, quem de nós nunca sentiu que tinha algo a provar para nossos pais?

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Espetáculo gótico

A sensibilidade de del Toro para contar histórias de excluídos talvez seja apenas superada pela sua habilidade na construção de um espetáculo visual. Aliado a velhos parceiros — o compositor Alexandre Desplat (Pinóquio), o diretor de fotografia Dan Laustsen (A Forma da Água), o diretor de arte Brandt Gordon (A Colina Escarlate) e a figurinista Kate Hawley (Círculo de Fogo) —, o cineasta faz de Frankenstein um maravilhoso jogo de cores, luzes e sombras. Nenhuma escolha é aleatória, com cada acessório usado pelos personagens refletindo seus destinos e personalidades com o mesmo preciosismo do roteiro. Victor, por exemplo, está sempre enfeitado com algum adereço vermelho escarlate, um símbolo de sua paixão cega por seu trabalho, enquanto seu irmão, o inocente William (Felix Kammerer), porta um apagado azul, símbolo de sua falta de agência e tendência a aceitar ordens.

Victor (Oscar Isaac) prepara seu experimento em cena de 'Frankenstein'
Foto: Netflix/Divulgação / Estadão

Mesmo as cicatrizes da Criatura têm um propósito narrativo. Diferentemente de outras adaptações, em que as costuras em sua pele verde basicamente indicam a quantidade de corpos mutilados para sua criação, os cortes desta versão do personagem representam não só sua complexidade, mas a visão artística de Victor, que queria criar o espécime humano perfeito em seu experimento.

Não é exagero dizer que del Toro enxerga Frankenstein (assim como todos os seus outros filmes) como uma peça de teatro, em que cada canto do cenário e cada peça do figurino é parte importante de sua trama. Assim sendo, o cineasta segue indo na direção contrária ao restante de Hollywood, que cada vez mais escurece seus filmes para esconder o uso de dublês e efeitos digitais mal-acabados. Aqui, toda a ação é visível nos mínimos detalhes e mesmo as cenas noturnas são iluminadas o bastante para ver cada expressão, cicatriz ou detalhe do figurino que tenha importância na história. As raras vezes que o filme mergulha na escuridão são extremamente propositais, seja para preparar um susto ou indicar o estado emocional dos personagens.

Visual de 'Frankenstein' de Guillermo del Toro proporciona espetáculo
Foto: Netflix/Divulgação / Estadão

As atuações seguem a mesma linha teatral. Isaac interpreta Victor Frankenstein de forma exagerada, mas nunca caricatural. É esse exagero que revela a megalomania do médico e cientista, cuja personalidade abrasiva é uma tentativa de sair da sombra do pai e impressionar seus colegas e críticos. O ator enuncia cada palavra com uma clareza dramática, colocando-se como um artista entre cínicos, um gênio cuja voz deve ser ouvida em um meio que ele acredita estar dominado pela mediocridade.

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A extravagância de Victor espelha a timidez e a delicadeza da Criatura. Ao contrário de seu criador, o "monstro" vive seus dias tentando escapar dos olhares julgadores. Apesar de seu tamanho e força intimidadores, seu desejo é apenas ser mais uma pessoa em meio à multidão, abençoada com as dádivas do amor e da morte. Se destacar, para ele, acarreta apenas em sofrimento, independentemente de suas intenções. Mais do que nunca, Elordi consegue, mesmo por baixo da pesada maquiagem, expor seu talento artístico, mostrando um alcance emocional que jamais foi visto em trabalhos anteriores como Euphoria ou mesmo Saltburn.

O elenco coadjuvante também encara a direção teatral à risca. Enquanto Christoph Waltz dá ao patrocinador de Victor toda a pompa e arrogância esperada de um nobre europeu, Mia Goth (que além da mãe de Frankenstein vive também seu interesse amoroso, Elizabeth) mostra que é mais do que a scream queen de Ti West, dando à sua personagem toda a profundidade que o roteiro de del Toro merece.

Mais do que um ótimo trabalho, o elenco de Frankenstein mostra confiança total na visão de del Toro. Ao mesmo tempo, o diretor permite que seus atores se apoiem em seus instintos criativos e exercitem músculos artísticos pouco explorados em seus trabalhos mais recentes. O resultado é um leque de atuações dinâmicas que aproveitam ao máximo o palco gótico construído pelo cineasta e sua equipe.

Encaixando todas as peças desse grandioso quebra-cabeça, del Toro faz uma versão do conto de Shelley diferente de todas as adaptações já lançadas em Hollywood. Mais do que uma reedição de uma história já contada dezenas de vezes em todas as mídias possíveis, o cineasta transforma uma trama originalmente horripilante numa jornada emocionante sobre amor, responsabilidade e esperança.

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Produzido pela Netflix, Frankenstein foi claramente planejado e executado para ser exibido na tela grande. Infelizmente, o streaming proporcionou apenas uma curta temporada nos cinemas para a produção antes de levá-la ao seu volumoso catálogo, onde, como Victor, está destinado a se tornar um exemplo de genialidade em meio a um mar de mediocridade.

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