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ONG indica subnotificação de covid-19 em favelas do RJ

Redes da Maré estima 193% mais casos e 65% mais óbitos; diz que considera só pacientes testados e afirma desconhecer metodologia do trabalho

26 mai 2020 - 15h10
(atualizado às 15h19)
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RIO - Um levantamento feito pela ONG Redes da Maré apontou indícios de subnotificação de infecções e mortes causadas pelo novo coronavirus na comunidade da zona norte carioca, onde vivem mais de 140 mil pessoas. Segundo o terceiro número do Boletim De Olho no Corona!, editado pela organização, até 18 de maio foram registrados na região, que tem mais de 140 mil moradores, 193% mais doentes e 65% mais óbitos do que na contagem da prefeitura.

A Secretaria de Saúde do município afirmou desconhecer a metodologia do trabalho e ressaltou que considera em sua contagem (divulgada no Painel Rio Covid-19) só casos confirmados em exames de laboratório. Os números da Redes, porém, reforçam a suspeita de que nas áreas mais pobres do Rio a doença tem tido dinâmica peculiar. Impulsionada por más condições sanitárias e pela descrença da população, pode ter avançado mais do que se supõe oficialmente.

"Não existe testagem", disse ao Estadão Eliana Sousa, diretora e fundadora da ONG. "A testagem serviria para ver o quanto a população está se contaminando ou não. Pode ser que algumas pessoas estejam morrendo, e o diagnóstico não seja conclusivo. Como a gente vê na Maré, muitas pessoas mostram (o atestado de óbito e dizem): 'Olha, não está dito que foi covid, porque não houve testagem, mas está dizendo que a pessoa morreu por complicação respiratória'." Essa causa mortis disparou no Brasil desde o início da pandemia, provavelmente por causa do novo coronavírus, que ataca os pulmões.

O Painel Rio Covid-19 assinalou que na Maré, até à segunda-feira da semana passada, havia 89 infectados e 23 mortos pela doença. A essa estatística oficial, a Redes contrapôs a contagem que apurou até então no bairro: 261 infectados e 38 mortos. Nos dois casos, considerou tanto confirmados por testagem como aqueles apenas suspeitos de ter a doença. Seu levantamento apontou que 47% dos óbitos estavam sob investigação, e 80% dos pacientes com sintomas não foram testados. Os dados foram compilados a partir de informações inicialmente passadas via redes sociais e checadas por equipes da Redes, que foram às casas de pessoas sintomáticas.

"Os moradores acompanhados pelo "De Olho no Corona!" que não tiveram acesso a testes específicos de Covid-19 afirmam que os médicos realizaram procedimentos como radiografia ou tomografia para auxiliar o diagnóstico e indicaram o isolamento social", diz o boletim. "Alguns moradores que também apresentaram sintomas sequer buscaram atendimento em unidades de saúde, pois foram orientados a ficar em isolamento em caso de sintomas leves."

Moradora da Comunidade Marcílio Dias, uma das dezesseis da Maré, Valdineide Bernardo foi uma das pacientes sinntomáticas a buscarem ajuda médica e receberem orientação para voltar para casa. Em depoimento em vídeo ao Redes da Maré, ela contou que os primeiro sua filha Gabriela, grávida e com 17 anos, teve tosse por três dias. No terceiro, quem começou a tossir foi Valdineide, diabética. Vieram febre, dor de garganta. Mais alguns dias, ela foi ao Centro Municipal de Saúde João Cândido, onde a médica lhe receitou amoxicilina. Ela melhorou, mas os problemas voltaram. Não houve encaminhamento para exame. Na pequena residência, o pai de Valdineide também adoeceu.

"Aqui é um cubículo: um quarto, uma sala, um banheiro. Então, provavelmente deve ser (covid-19). E não mandaram fazer o teste. ", queixou-se. Ele reclamou que levou o pai, idoso e diabético, que tinha sintomas, três vezes para ser examinado. Mas lhe disseram que ele estava bem, sem nada na garganta. "E meu pai piorando." Sem ambulância, levou-o em um carro de aplicativo ao Hospital Getúlio Vargas, onde foi imediatamente internado e aguarda resultado do teste.

Eliana Sousa diz que orientações sobre o covid-19 - como ficar em casa se os sintomas forem leves, como a recebida por Valdineide - foram inadequadas para moradores de comunidades. "Os profissionais de saúde relatam que as pessoas (moradores de comunidades) já chegam em estado muito ruim", disse. Ela também reclamou do que chamou de "sucateamento" das unidades de saúde, além da falta de recursos. "Não tem oxímetro (aparelho que mede oxigenação no sangue) nas Clínicas da Família", afirmou.

Esse quadro estaria também se refletindo nas estatísticas da doença nas comunidades. Sabendo que não seriam testados para a doença e seriam orientados a voltar, muitos doentes prefeririam ficar em suas casas. Somadas à falta de testagem, essas seriam causas para a Maré, no dia 18, ter menos casos de covid-19 do que Copacabana (614 infectados) - pelo menos na contagem oficial. Isso apesar das vielas estreitas, casas pequenas, densidade habitacional alta e condições sanitárias precárias que caracterizam a comunidade da zona norte. Elas facilitariam o alastramento do vírus. Os erros de endereço - a Maré é bairro desde 1994 - também estariam engordando os números dos vizinhos Bonsucesso e Ramos. Vizinho de Bonsucesso, o Complexo do Alemão também tem indícios de subnotificação nos casos de infecção por covid-19.

Suspeita sobre registros é a mesma no Complexo do Alemão

Com tamanho equivalente à Maré e dezessete favelas, teria, até o dia 17 (último consultado pelo De Olho no Corona!) apenas quatro casos registrados da doença no Painel Rio Covid-19. Nesta segunda-feira, 25, chegara a dez ocorrências no mesmo indicador. O site do jornal Voz das Comunidades, que compila dados da prefeitura do Rio, governo estadual e unidades de saúde, conta 79 casos. Seus números incluem dados da prefeitura, governo estadual e unidades de saúde. Por esse monitoramento, as comunidades do Rio somavam, no domingo, 827 infectados e 201 mortos.

No Alemão, uma das pacientes oficialmente diagnosticadas com covid foi Lenita Oliveira, moradora do Morro da Baiana. Há um mês, ela apresentou sintomas, incluindo falta de ar. "Fiquei muito mal", contou , em vídeo enviado ao Estadão.Começou a se sentir mal em 13 de abril e no dia 17 procurou assistência médica. Foi à UPA na Avenida Itararé, em Ramos, onde foi "muito bem atendida". "Fiz raio-X e exame de sangue, aí o médico falou que eu estava com o vírus e era para ficar em casa por 14 dias",contou. "Se eu sentisse falta de ar, era para voltar." Agora, está melhor, após passar dias "tenebrosos", afirmou. "Esse vírus é cruel. É muita dor no corpo."

Moradores da comunidade do Santa Marta, zona sul do Rio de Janeiro, usando roupas de proteção, fazem higienização por conta própria na favela
Moradores da comunidade do Santa Marta, zona sul do Rio de Janeiro, usando roupas de proteção, fazem higienização por conta própria na favela
Foto: ELLAN LUSTOSA/CÓDIGO19 / Estadão Conteúdo

Secretaria divulga casos confirmados por exame, diz prefeitura

A Secretaria Municipal de Saúde afirmou desconhecer a metodologia usada pela Redes da Maré e pelo Voz das Comunidades nas respectivas contagens de casos de covid-19. Ressaltou ainda que "os dados que divulga são de casos confirmados por exames laboratoriais". E informou que o registro por bairros considera a notificação com o endereço informado pelo paciente. A pasta também negou sucateamento das unidades de atenção primária nas comunidades do Rio

"A Prefeitura fez a substituição de OSs (organizações sociais) pela RioSaúde- empresa municipal de Saúde— na gestão de clínicas da família e centros municipais de saúde, em várias partes da cidade, justamente para melhorar o atendimento prestado." A secretaria afirmou ainda que os pacientes internados com suspeita de Sindrome Respiratória Aguda Grave na rede municipal "são testados logo nas primeiras 24 horas da internação ou até antes" para covid-19. Conforme a nota, não "há fila para realizar testagem, pois ao internar o paciente, a unidade inicia o protocolo de investigação diagnóstica, realizando o exame PCR".

Segundo um dos textos enviados pela secretaria ao Estadão, a prefeitura recebeu 53 mil testes rápidos do Ministério da Saúde e do governo do Estado. "Além desses, cerca de 4.500 amostras do PCR (exame molecular, do tipo mais preciso) acolhidas foram enviadas para o Laboratório Noel Nutels (Lacen)", informou."A rede municipal de Saúde faz a coleta do material e encaminha para análise. Foram mais de 12.440 exames processados até o momento."

DIVERGÊNCIAS NOS NÚMEROS SOBRE COVID-19

COMPLEXO DA MARÉ

Mortos

Painel Rio Covid-19 (Prefeitura do Rio de Janeiro): 23

Boletim De Olho no Corona (ONG Redes da Maré): 38

Infectados

Painel Rio Covid-19 (Prefeitura do Rio de Janeiro): 89

Boletim de Olho no Corona (ONG Redes da Maré): 261

Fontes: Painel Rio Covid-19 e Boletim De Olho no Corona, nº 3

Nota: O Boletim de Olho no Corona considera casos já confirmados por exames e apenas suspeitos, por causa dos sintomas.

Dados de 18 de maio de 2020

Estadão
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