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Ex-pacientes de câncer relatam dificuldades e discriminação no mercado de trabalho

Advogada que teve câncer em fase inicial há mais de dois anos precisou entrar na Justiça para tomar posse em concurso público; especialista atribui frequência de relatos à 'questão cultural' e legislação 'frágil'

31 jul 2020 - 14h10
(atualizado às 14h54)
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As dificuldades enfrentadas por uma pessoa que teve câncer não terminam junto com a cura da doença. Relatos de pacientes recuperados citam estigmas e desconhecimento em um cenário no qual se busca a reinserção social e profissional. O resultado algumas vezes é o oposto, com a demissão ou revogação de nomeação em cargo público.

A advogada Marília Biscuola, de 33 anos, vive situação semelhante. Ela teve a nomeação em um concurso público estadual revogada em junho por ter enfrentado um câncer em estágio inicial há mais de dois anos, logo após prestar a seleção. "Era um nódulo muito pequeno, tinha menos de um centímetro, nem precisei fazer quimioterapia", explica.

Depois da doença, a advogada fez entrevistas e exerceu serviços de assessoria jurídica normalmente em outro órgão público paulista, do qual se demitiu com a nomeação. Ela fez, então, os exames para assumir o novo cargo, no qual teve de informar o histórico de saúde. "Aí saiu no Diário Oficial, 'não apta'", recorda.

Marília entrou com uma ação e conseguiu uma liminar, mas lamenta que o processo possa se arrastar por anos. "As pessoas acham que só o tratamento é difícil. Difícil também é depois", desabafa. "Se com 33 anos eu não posso trabalhar, o que eu vou fazer da vida? Foi revoltante." Ela diz perceber um estigma. Fala da expressão de "luto" que já viu de pessoas ao contar que já teve a doença. "Cada caso precisa ser analisado individualmente", destaca. "O trabalho é um direito fundamental. A gente sem trabalho não é nada nessa vida."

Em nota, o Governo do Estado justificou utilizar como base o Manual de Perícia Médica do Servidor Público Federal, "que somente considera a pessoa como não portadora de neoplasia maligna quando após 5 anos de acompanhamento clínico não apresentar evidência de doença ativa". "Avaliações de candidatos são realizadas por médicos especialistas da área da patologia ou por médico especialista em Perícia Médica e Medicina Legal que está habilitado a avaliar todas as situações. Foi o que ocorreu no caso da candidata."

Atualização. Situações desse tipo estão espalhadas pelo País, e parte delas vai parar nos tribunais. Na Justiça, enfrentam decisões variadas: tanto reconhecem a discriminação dos profissionais com histórico de câncer quanto também tomam o lado oposto, ao dizer que se trata de uma doença não discriminatória.

Uma pesquisa de setembro feita pelo LinkedIn e a Fundação Laço Rosa apontou, por exemplo, que 31% das pessoas que têm ou já tiveram a doença continuaram trabalhando durante o tratamento. Além disso, outras 18% afirmaram ter sofrido dispensa discriminatória, enquanto 26% desconheciam o termo.

Em 2019, decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) aplicou a súmula de dispensa discriminatória para determinar a readmissão de um executivo de uma grande empresa que teve câncer de próstata. Na ocasião, o ministro Cláudio Brandão chegou a destacar que "no meio social do Brasil de hoje, o câncer ainda causa estigma, a começar pela possibilidade de morte, muitas vezes iminente."

Diretor de Advocacy do Instituto Oncoguia, Tiago Matos atribui a frequência de relatos de discriminação a uma "questão cultural" e a uma legislação "frágil". "É uma reclamação constante", diz. "Quando você tem uma quantidade muito grande de ações judiciais é porque a legislação está falha ou falhou na fiscalização do cumprimento."

"Isso acontece muitas vezes, por uma falsa impressão de que a pessoa que teve câncer não vai produzir como antes", ressalta. "Na prática, a gente ainda vê muita gente sendo mandada embora no dia seguinte que volta do auxílio-doença."

Para o advogado, uma possível discriminação precisa de análise individual, para compreender as circunstâncias da demissão ou da revogação da nomeação. Dentre os elementos que sinalizam isso, estão o período de tempo que ocorreu após o retorno da licença e as características do câncer a que a pessoa foi acometida. "Cada caso precisa ser analisado individualmente, no contexto. O câncer é doença em que as pessoas podem viver cronicamente durante anos."

Licença. Situação oposta vive a professora de educação física Suany Ataides, de 35 anos, que está em tratamento para o câncer e ficou com sequelas no braço esquerdo após uma cirurgia reconstrutiva. Entre o segundo semestre de 2019 e o início de 2020, antes da pandemia, teve de realizar atividades programáticas nas escolas em que trabalha mesmo quando essas lhe causavam fortes dores.

Por causa das dores, ela chegou a deixar a fisioterapia e focar apenas em tratamentos para aliviar a situação, como massagens e acupuntura. "Sinto muito dor e, quanto mais mexo, pior fica. O acompanhamento médico ajuda aliviar, mas não é suficiente quando se está mexendo o braço", relata.

A sequela também dificulta os movimentos e a impede de levantar peso. Quando exercia as atividades profissionais presenciais, antes da pandemia, precisava pedir ajuda a outras professoras ou aos próprios alunos para instalar equipamentos e ensinar determinados movimentos.

Ela narra ter adaptado algumas atividades, mas que as sequelas a impedem de cumprir todo o conteúdo programático. No ensino fundamental, por exemplo, precisa demonstrar e ajudar as crianças a darem cambalhotas. Se for cumprir essa atividade, terá de realizar diversas vezes um movimento que lhe causa dores. "Como não posso carregar com o braço esquerdo, estou fazendo tudo com o lado direito e machucando esse lado também. É horrível."

Em nota, o Governo do Estado de São Paulo disse que a professora tem contrato temporário e que a avaliação não é competência do Departamento de Perícias Médicas do Estado (DPME).

Estadão
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