Entre amor e a dor: o que o caso Hytalo Santos revela sobre traumas invisíveis
Caso Hytalo Santos repercutiu no país durante a última semana; em sua coluna, Jéssica Martani comenta sobre o assunto
Nos últimos dias, o depoimento de Kamylinha, a menina que defendeu publicamente Hytalo Santos, acusado de exploração de menores, repercutiu no país. Em suas falas, ela dizia que o enxergava como um pai alguém que teria a resgatado de uma infância difícil, marcada por um pai violento, que batia na mãe. A confusão entre gratidão, afeto e dor não é rara. Pelo contrário, ela escancara como funcionam os traumas invisíveis, aqueles que moldam emoções, escolhas e relações sem que a gente perceba.
Quando ouvimos a palavra trauma, quase sempre pensamos em algo grandioso e trágico: um acidente, uma perda súbita, uma violência explícita. E sim, isso é trauma. Mas há também os traumas silenciosos, que não ganham manchetes e que, muitas vezes, nem reconhecemos como tal. Eles se escondem em frases repetidas na infância, em gestos de descaso, em ausências que nunca tiveram nome.
Muita gente atravessa a vida inteira sem imaginar que certas inseguranças, medos ou reações exageradas estão enraizadas em feridas antigas. O trauma nem sempre aparece em lembranças claras. Às vezes, se revela no corpo que treme sem motivo aparente, no coração que dispara em situações banais, na dificuldade crônica de confiar em alguém.
Quando o trauma não é óbvio
Na Psicologia, costumamos dividir os traumas em categorias:
- Trauma agudo, fruto de um evento único e marcante, como um assalto ou um acidente;
- Trauma crônico, resultado da repetição de violências, humilhações, bullying;
- Trauma complexo, aquele que nasce dentro de vínculos afetivos muitas vezes na infância, quando amor e dor se misturam. Esse é o mais traiçoeiro, porque pode se mascarar de cuidado. Foi isso que vimos nas palavras de Kamylinha: a mesma figura que acolhia também machucava, criando uma teia de confusão emocional;
- E há ainda os microtraumas. Pequenas dores, aparentemente banais, mas que se acumulam. É o "engole o choro", é ser constantemente comparado ao irmão, é o olhar de indiferença justamente na hora em que a criança mais precisava ser vista. Gotas de desvalorização que, repetidas, formam um rio de insegurança.
As marcas disfarçadas de normalidade
Talvez você já tenha se perguntado por que uma crítica simples pode derrubar seu humor por dias. Ou por que o medo da rejeição te paralisa, mesmo sem motivo real. Muitas dessas reações nascem de memórias emocionais antigas, de feridas que o tempo não cicatrizou.
Lembro de uma paciente que me contou: quando criança, sempre que chorava, escutava "para com isso, você está fazendo drama". Hoje, adulta, não consegue chorar nem diante de grandes perdas. É como se tivesse aprendido que sentir era proibido. Outro exemplo: um rapaz que foi comparado a vida inteira com o irmão mais velho. Tornou-se um profissional brilhante, coleciona conquistas, mas vive atormentado pela sensação de que nunca é o bastante. Histórias assim se repetem. E justamente por parecerem corriqueiras, passam despercebidas como traumas.
Como perceber o que ficou escondido
Nem sempre é fácil dar nome às feridas invisíveis. Mas alguns sinais podem indicar que algo não foi resolvido:
- Reações intensas e desproporcionais a situações pequenas;
- Dificuldade em confiar ou em se entregar em relacionamentos;
- A sensação persistente de não ser bom o bastante;
- Medos irracionais que se repetem;
- A necessidade constante de agradar, mesmo às custas de si mesmo.
Nada disso soa como "grande tragédia". Mas são rastros de experiências passadas que continuam a ecoar.
E o que fazer com essas marcas?
Não existe receita pronta. Cada pessoa tem um caminho singular. Ainda assim, alguns movimentos ajudam a abrir espaço para a cura:
- Dar nome à experiência. Escrever, falar, reconhecer ainda que pareça pequeno;
- Observar padrões. Perguntar-se: por que sempre reajo assim?
- Buscar apoio. A terapia é um espaço potente, mas conversas honestas com pessoas de confiança também podem aliviar;
- Cuidar do corpo. O corpo guarda traumas. Movimento, respiração, sono e alimentação equilibrada ajudam na regulação emocional;
- Permitir-se sentir. Em vez de censurar a emoção, acolhê-la.
Trauma não é apenas o que aconteceu. Trauma é o que ficou. É aquilo que se repete dentro de nós, mesmo quando não lembramos de onde veio. Às vezes é uma ferida aberta, evidente. Outras vezes, uma cicatriz discreta, esquecida à margem da consciência.
O caso de Kamylinha expõe com clareza dolorosa essa confusão: a possibilidade de defender quem machucou, justamente porque o afeto e a proteção se misturaram à dor. É isso que chamamos de trauma invisível aquele que se disfarça, confunde e nos acompanha em silêncio.
E talvez a lição mais importante seja esta: ninguém passa pela vida ileso. Todos carregamos marcas. Reconhecê-las não nos enfraquece é, na verdade, o único caminho para que elas deixem de nos comandar.
Sobre a autora
Jéssica Martani é médica psiquiatra, especialista em TDAH, saúde mental e regulação emocional. Coordena a pós-graduação em TDAH do Instituto TDAH, reconhecida pelo MEC, em parceria com a Universidade Anhanguera. É colunista da Bons Fluidos (Editora Caras) e criadora do canal Brilhantemente, onde traduz temas complexos e reflexões acessíveis para quem busca equilíbrio emocional e transformação pessoal. Saiba mais em Instagram e YouTube: @dra.jessicamartani