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O amor de um casal que adotou menino 'rejeitado' por ter deficiência 

Dados da Justiça mostram que muitos jovens com deficiência nos abrigos do Brasil estão fadados a nunca conseguirem uma família; apenas um em cada dez interessados em adotar aceitam crianças com limitações físicas e mentais

9 mar 2019 - 07h11
(atualizado em 11/3/2019 às 12h59)
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Diego (à esquerda) e Leandro (à direita) são pais do Daniel, menino adotado por eles há pouco mais de dois anos.
Diego (à esquerda) e Leandro (à direita) são pais do Daniel, menino adotado por eles há pouco mais de dois anos.
Foto: Facebook / Diego Oliveira / Estadão

Era 2014 quando Maria** deu à luz Daniel com a surpresa de que o filho nasceu com hidrocefalia e mielomeningocele - quando parte da medula espinhal se desenvolve fora do corpo. O diagnóstico levou a mulher a desistir de criar o garoto e entregá-lo para a adoção, em Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

A decisão da mãe biológica fez o bebê vivenciar a rejeição com menos de um mês de vida: ele foi recusado por 90 casais e entrou para o grupo de meninos e meninas fadados a ficarem para sempre nos abrigos do Brasil. Segundo dados atualizados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas um em cada dez interessados em adotar aceita crianças de até seis anos com deficiências físicas ou mentais. Quando ultrapassam essa idade, a adoção se torna praticamente impossível.

Diante disso, já não havia muita esperança de encontrar um lar para Daniel, até que Diego Oliveira e seu marido Leandro apareceram em sua vida em outubro de 2016, quando ele tinha um ano e cinco meses de idade. O casal já queria conhecê-lo antes de visitar a casa de acolhimento e, ao chegar no local, tiveram o sentimento de paternidade assim que viram o garoto. "Chamamos o Dani pelo nome e ele veio engatinhando em nossa direção pedindo colo. Naquele momento, sabíamos que ele tinha nos escolhido. Senti que a nossa família estava completa", recorda Diego.

Diego e Leandro brincando com o filho na Associação de Assistência à Criança com Deficiência (AACD), onde menino recebe cuidados médicos.
Diego e Leandro brincando com o filho na Associação de Assistência à Criança com Deficiência (AACD), onde menino recebe cuidados médicos.
Foto: AACD / Divulgação / Estadão

'Quem é a mãe? Quem é o pai?'

Os dois sonhavam em ter um filho e não viam problema com as características de Daniel. No entanto, o ato de amor não impediu que o preconceito surgisse. "Não teríamos como escolher se fosse biológico, mas as pessoas entendiam nossa adoção como caridade e achavam que tínhamos feito isso por pena", afirma Diego. "Alguns sequer pararam para pensar que era uma escolha de vida nossa movida pelo afeto", completa.

O pai revela também que ele e Leandro lidaram com comentários homofóbicos por constituírem família sem a imagem feminina. "Alguns olhavam para nós e perguntavam quem era a mãe e o pai. Quem dava banho e cortava unha, por exemplo, era visto como 'a mulher da relação'. Existe a preocupação da sociedade em inventar papéis de gênero na criação de uma criança, mas com a gente não é assim. Os dois cuidam do mesmo jeito", critica.

Com quatro anos, colegas da escola de Daniel já perguntaram a ele quem é sua mãe, mas o casal explica desde cedo ao pequeno a normalidade em ser filho de um casal gay. "Sentamos com ele e falamos que há amiguinhos criados pela mãe e a avó, outros com duas mães e por aí vai", afirma. "O que importa é quem cuida. Construir a fé, a cidadania e o caráter dele independe da minha orientação sexual", diz.

A ignorância alheia, contudo, não chegou aos parentes. As famílias dos dois sempre aceitaram bem a chegada de Daniel, ao ponto da mãe de cada um se mudar para o mesmo prédio que o casal para acompanhar o desenvolvimento do neto.

Vale ressaltar que a adoção do garoto por dois homens vai na contramão da realidade brasileira, em que mais de um milhão de pais abandonaram suas parceiras com os filhos entre 2005 e 2015, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Laudo 'insensível' foca nos problemas de saúde e pode dificultar a adoção

Daniel não conseguia ficar em pé e apresentava limitações cognitivas, o que levou os médicos a acreditarem que ele teria sérios problemas de mobilidade e não seria capaz sequer ficar sentado quando crescesse. Assim, o diagnóstico o definiu como uma criança com deficiência severa - característica pouco aceita pelos casais interessados em adotar no Brasil.

"O laudo médico só mostrava os problemas de saúde e focava no que ele não poderia fazer. Era um documento, frio, desesperançoso e que não dava perspectiva de futuro para ele.", critica Diego. "Em nenhum momento estava escrito ali as qualidades dele", complementa.

Diferente do que o laudo médico apontava, menino leva uma vida normal mesmo com as limitações da deficiência e até viaja com os pais. Na foto, ele está em Porto Seguro, na Bahia.
Diferente do que o laudo médico apontava, menino leva uma vida normal mesmo com as limitações da deficiência e até viaja com os pais. Na foto, ele está em Porto Seguro, na Bahia.
Foto: Facebook / Diego Oliveira / Estadão

Diante disso, o casal acredita que essa maneira dura de descrever as crianças com deficiência dificulta a aceitação delas no processo de adoção, uma vez que não mostra as conquistas que ela pode alcançar. Daniel, por exemplo, contradisse a visão negativa dos médicos e, com suas idas ao fisioterapeuta e ao fonoaudiólogo, ganhou equilíbrio do corpo, fala normalmente e há a expectativa de ele andar de muletas no futuro, sem sequelas do descaso da mãe biológica.

O juiz da Vara da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Iberê de Castro, avalia que é importante que o laudo indique todas as possibilidades positivas da criança - e não só as negativas - a fim de aumentar a conscientização dos casais. Entretanto, ele alerta que a equipe técnica de adoção precisa equilibrar as expectativas com a realidade muitas vezes difícil que os pais vão encarar.

A dor dos que não são escolhidos

Daniel Oliveira é um caso raro no Brasil. Isso porque o CNJ calcula que apenas 155 (14%) das 1.112 crianças com deficiência ou doenças nas filas de adoção de todo o País estão vinculadas, ou seja, criando laços afetivos com casais interessados nelas. Por outro lado, há 3.244 (40%) das 8.263 em condições normais de saúde também nesse processo - uma proporção três vezes maior do que a primeira.

Segundo a assistente social Grace Kelly, que lida com esse público na Vara da Infância e da Juventude da comarca de Guarulhos, muitas crianças não têm compreensão de que são colocadas em segundo plano pelos casais. "O que percebemos é a falta que algumas sentem de pessoas que eram próximas e depois se afastam, como um cuidador da casa, um coleguinha que foi adotado ou um parente que a visitava e deixou de visitar", afirma.

Iberê de Castro explica ainda que essa rejeição afeta o psicológicos dos jovens. "Isso mexe com a forma como eles vão desenvolver a autoestima, a autoimagem, a percepção deles como cidadãos e a ideia de que eles não são piores do que ninguém. As marcas emocionais ficarão para sempre", conta.

'Gosto de ser abraçado e retribuo com um grande sorriso'

Para tentar reverter essa realidade, a campanha Adote Um Boa Noite, do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi criada em outubro de 2017 para conscientizar os pretendentes sobre a adoção de crianças com mais de sete anos ou com deficiências em qualquer idade.

Segundo Castro, que coordena a iniciativa, a compreensão sobre o tema tem se ampliado, mas ainda é mínimo o número de casais que adotam crianças ou adolescentes com limitações físicas e cognitivas dentre os 30 casos que passaram pelo projeto.

Fotos de crianças e adolescentes são divulgadas no site do Adote Um Boa Noite, a fim de conscientizar casais sobre o quão carinhosas e amáveis elas são.
Fotos de crianças e adolescentes são divulgadas no site do Adote Um Boa Noite, a fim de conscientizar casais sobre o quão carinhosas e amáveis elas são.
Foto: Adote Um Boa Noite / Divulgação / Estadão

O site do Adote Um Boa Noite tem uma lista de 60 meninos e meninas cadastrados, dos quais quatro são cadeirantes. Diogo, de 13 anos, é um deles. Em sua descrição, ele afirma que é muito especial, gosta de ser abraçado e retribui com um grande sorriso. Já o pequeno Victor Hugo, de cinco anos, diz que gosta de cantar, conversar e "sonha em ser feliz".

O juiz responsável destaca que muitas dessas crianças vieram de famílias pobres, da periferia, desestruturadas socialmente ou que moram em municípios pequenos do interior que não oferecem estrutura suficiente para cuidar da deficiência. "A criança fica em risco e cabe à Justiça tirá-la dos pais em último momento, após tentativas frustradas de mudar essa situação de vulnerabilidade", explica. "Isso é perverso, porque a família acaba sendo punida pela falta de apoio do governo", critica.

Após uma vida de 'nãos', chega a hora de dizer adeus ao abrigo

A Justiça calcula que cerca de 650 adolescentes das casas de acolhimento do Estado de São Paulo atingem a maioridade todo ano sem conseguirem uma família. Assim, deixam de ter a tutela da Vara da Infância e da Juventude, e os com problemas mais severos viram responsabilidade do Poder Executivo.

Os com limitações cognitivas ganham um benefício vitalício de prestação continuada do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e são acolhidos por ONGs religiosas como a BomPar e o Lar André Luiz, que recebem pessoas em risco ou situação de vulnerabilidade. Enquanto isso, os jovens capazes de ter independência - com e sem deficiência física - começam a ser preparados para a vida adulta desde os seus 14 anos.

"A partir dessa idade, os direcionamos para vagas de celetistas [assinadas na carteira de trabalho] ou de jovem aprendiz. Tentamos elevar o grau de instrução deles ao máximo", diz Iberê de Castro.

O futuro de Daniel, recusado por 90 casais no abrigo de Osasco, não será assim. Nestes quase três anos ao lado de Diego e Leandro Oliveira, o menino viveu momentos que qualquer outra criança poderia vivenciar: viaja com os pais, passeia no parque, ganhou festa de aniversário, vai para a escola e, acima de tudo, recebe o amor que todo filho deve receber.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

**Nome fictício. História de Daniel com a família biológica corre em segredo de Justiça

Estadão
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