UE minimiza alerta dos EUA sobre "extinção civilizacional" na Europa
Chefe da diplomacia do bloco diz que EUA são maior aliado da Europa e que continente "subestima seu próprio poder". Em estratégia de segurança, Washington critica europeus e visa reafirmar domínio americano no Ocidente.A chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Kaja Kallas, afirmou neste sábado (06/12) que os Estados Unidos continuam sendo o maior aliado da Europa, após o governo do presidente Donald Trump ter declarado em um importante documento estratégico que o continente enfrenta a ameaça de uma "extinção civilizacional" e pode um dia perder seu status de aliado confiável.
A nova estratégia de segurança nacional da Casa Branca, divulgada nesta sexta-feira, retrata os aliados europeus como enfraquecidos e visa reafirmar o domínio americano no Hemisfério Ocidental, além de aumentar sua influência na América Latina .
As declarações fazem parte do que Washington definiu como "um 'corolário Trump' à Doutrina Monroe" para "restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental". A Doutrina Monroe de 1823, formulada pelo presidente americano James Monroe, que visava originalmente se opor a qualquer interferência europeia no Hemisfério Ocidental, acabou sendo usada para justificar as intervenções militares dos EUA na América Latina.
A divulgação da nova estratégia de segurança gerou incômodo entre os aliados de longa data dos EUA na Europa por suas críticas contundentes às suas políticas de imigração e medidas associadas ao tema da liberdade de expressão, como o combate ao discurso de ódio e à disseminação de notícias falsas, que Washington interpreta como "censura".
Kallas: Europa "subestima seu próprio poder"
"Há muitas críticas, mas acho que algumas delas também são verdadeiras. Se você observar a Europa, ela tem subestimado seu próprio poder em relação à Rússia", disse Kallas em um painel no Fórum de Doha, no Catar.
"Deveríamos ter mais autoconfiança", disse, acrescentando que "os EUA ainda são nosso maior aliado". "Acho que nem sempre concordamos em todos os assuntos, mas o princípio geral permanece o mesmo. Somos os maiores aliados e devemos permanecer unidos", disse Kallas.
"A Europa tem subestimado seu próprio poder. Em relação à Rússia , por exemplo [...] deveríamos ter mais autoconfiança", disse a diplomata.
Ela, porém, criticou o papel dos EUA nas negociações de paz sobre a guerra na Ucrânia , no momento em que autoridades ucranianas e americanas iniciam o terceiro dia consecutivo de negociações em Miami, que visam pôr fim a mais de três anos de guerra com a Rússia.
O plano anunciado recentemente por Washington implica na cessão de territórios que a Rússia não conseguiu conquistar da Ucrânia no campo de batalha, em troca de promessas de segurança que não atendem às aspirações de Kiev de ingressar na Otan .
"Impor limitações e pressão à Ucrânia, na verdade, não nos traz uma paz duradoura", disse Kallas neste sábado. "Se a agressão for recompensada, veremos isso acontecer novamente, e não apenas na Ucrânia ou [na Faixa de] Gaza , mas em todo o mundo", acrescentou.
O que diz a estratégia de segurança dos EUA
A retórica utilizada na nova estratégia de segurança nacional é motivada pela filosofia "América em primeiro lugar" de Trump, que questiona décadas de relações estratégicas e prioriza os interesses dos americanos.
O documento sugere que os europeus enfrentam uma "perspectiva de extinção civilizacional" e levanta dúvidas sobre sua confiabilidade a longo prazo como parceiros dos americanos.
Ao mesmo tempo em que critica duramente as democracias da Europa e realiza uma campanha agressiva de ataques a embarcações supostamente criminosas na América Latina, Washington repreende os esforços de governos anteriores para exercer influência ou criticar nações do Oriente Médio e tenta desencorajar tentativas de mudanças nos governos e nas políticas desses países.
A primeira estratégia de segurança nacional do segundo mandato de Trump - cuja divulgação é obrigatória por lei - promove uma ruptura drástica com o curso estabelecido por seu antecessor, o democrata Joe Biden , que buscou revitalizar as alianças depois dos abalos sofridos por muitas delas no primeiro mandato do republicano na Casa Branca, e conter uma Rússia cada vez mais assertiva no cenário internacional.
"Perda de identidade" na Europa
O fim da guerra entre Ucrânia e Rússia , que já dura quase quatro anos, é um objetivo que a estratégia de segurança nacional dos EUA diz ser de vital interesse para o país.
O documento, porém, deixa claro que os EUA querem melhorar seu relacionamento com a Rússia depois de anos em que Moscou foi tratado como um pária global e que o fim da guerra seria um meio para "restabelecer a estabilidade estratégica com a Rússia".
Washington acusa seus aliados europeus, que muitas vezes divergem de Trump em relação à guerra na Ucrânia , de estarem diante não apenas de desafios econômicos internos, mas também de uma crise existencial.
Segundo o texto, a estagnação econômica na Europa "é ofuscada pela perspectiva real e mais sombria de um apagamento civilizacional". "Caso as tendências atuais continuem, o continente estará irreconhecível em 20 anos ou menos. Assim, está longe de ser óbvio se certos países europeus terão economias e Forças Armadas suficientemente fortes para permanecerem aliados confiáveis", diz o texto.
O documento também menciona a ascensão de partidos políticos de ultradireita na Europa - os quais Washington vê como aliados - que têm se manifestado abertamente a contra a imigração irregular e as políticas climáticas .
"Os Estados Unidos incentivam seus aliados políticos na Europa a promoverem esse renascimento de espírito, e a crescente influência de partidos patrióticos europeus realmente dá motivos para grande otimismo", diz o documento americano.
Trump "soa como Putin"
A Comissão Europeia rejeitou veementemente as acusações contra a UE contidas na nova estratégia de segurança nacional.
A principal porta-voz da Comissão, Paula Pinho, rejeitou nesta sexta-feira as alusões de que a UE mina a liberdade política e a soberania, prejudica o continente com sua política migratória e dificulta a liberdade de expressão.
Ela, porém, não quis aprofundar os comentários sobre o posicionamento de Washington. "Ainda não tivemos tempo de analisá-la, avaliá-la, então não estamos em posição de comentar", disse a porta-voz.
O ministro do Exterior da Alemanha, Johann Wadephul , reconheceu que os EUA são "nosso aliado mais importante" na Otan , mas disse que questões sobre liberdade de expressão ou "a organização de nossas sociedades livres" não fazem parte das discussões da aliança.
"Também não achamos que alguém precise nos dar conselhos sobre isso", disse Wadephul.
Jürgen Hardt, porta-voz de política externa da coalizão conservadora entre a União Democrata Cristã (CDU) , do chanceler federal Friedrich Merz , e União Social Cristã (CSU) , comparou o tom da estratégia americana ao utilizado pelo presidente russo Vladimir Putin .
"A avaliação do presidente dos EUA sobre a Europa é muito tendenciosa, talvez devido a informações que ele recebeu de fontes equivocadas, como partidos radicais de direita na Europa, ou às vezes soa como Putin falando sobre a Europa."
Markus Frohnmaier, parlamentar do partido de ultradireita e anti-imigração Alternativa para a Alemanha (AfD) , descreveu a estratégia dos EUA como "um choque de realidade na política externa da Europa e, particularmente, da Alemanha".
América Latina
Enquanto planeja aumentar sua influência nas Américas, o governo Trump vem realizando uma série de ataques militares contra supostos barcos do narcotráfico no Mar do Caribe e no leste do Oceano Pacífico, ao mesmo tempo em que avalia uma possível ação militar na Venezuela contra o regime do presidente Nicolás Maduro .
O documento estratégico de Trump afirma que seu objetivo é combater o narcotráfico e controlar a migração . Os EUA também estão repensando sua presença militar na região. Isso significa, por exemplo, "desdobramentos direcionados para garantir a segurança da fronteira e derrotar os cartéis, incluindo, quando necessário, o uso de força letal para substituir a estratégia fracassada das últimas décadas de apenas aplicar a lei", diz o documento.
Oriente Médio e China
Segundo a estratégia, os EUA devem abandonar o "experimento equivocado dos EUA de importunar" nações do Oriente Médio , especialmente as monarquias no Golfo, sobre suas tradições e formas de governo.
Trump fortaleceu os laços com as nações da região e vê os países do Oriente Médio como terreno fértil para oportunidades econômicas. As nações árabes, segundo o documento, estão "emergindo como um local de parceria, amizade e investimento".
Em relação à China , os EUA sob Trump devem buscar "reequilibrar" as relações bilaterais , ao mesmo tempo em que combatem a postura agressiva de Pequim em relação à província autogovernada de Taiwan .
rc (AP, DPA, Reuters, AFP, DW)