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Sem Lula, acordos bilaterais são adiados e Joesley Batista é tietado na China

Após cancelamento de viagem por pneumonia do presidente brasileiro, negociações entre Brasil e China entram em compasso de espera e executivo da JBS rouba a cena em Pequim

26 mar 2023 - 11h50
(atualizado às 14h24)
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Os irmãos Joesley e Wesley Batista tietados por empresrio
Os irmãos Joesley e Wesley Batista tietados por empresrio
Foto: Mariana Sanches/BBC / BBC News Brasil

Com o cancelamento da viagem do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva à China, a assinatura de ao menos 20 acordos bilaterais já negociados entre os dois países ficará adiada por tempo indeterminado.

"Contratempos acontecem, como aconteceu. De qualquer forma, quando o presidente estiver restabelecido, nós ficamos aguardando o governo chinês. Quando o governo chinês tiver preparado e estiver com a agenda disponível, certamente será remarcado e vamos assinar todos os acordos e memorandos", afirmou o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o único do primeiro escalão do Executivo brasileiro a ir ao país asiático.

De acordo com Fávaro, entre os acordos acertados há avanços importantes em novos protocolos sanitários para o agronegócio, a cooperação para o lançamento do satélite de monitoramento territorial Cbers 6 e a criação de um mecanismo bilateral para avançar agendas de meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

O ministro da Agricultura se adiantou à comitiva presidencial porque pretendia negociar a queda do embargo chinês à carne bovina brasileira, ocorrida há quase um mês em decorrência de um caso da doença da vaca louca. O embargo caiu e outros quatro novos frigoríficos brasileiros receberam licença para exportar para a China.

A visita de Lula ao presidente Xi Jinping havia sido anunciada há meses, deveria durar cinco dias e incluir um jantar com o líder chinês, uma visita à Assembleia Popular Nacional da China e um ato cerimonial na Praça da Paz Celestial. Lula seria o primeiro aliado estrangeiro convidado por Xi a visitar o país desde sua recondução a um terceiro mandato, uma deferência da diplomacia chinesa.

Havia ainda a expectativa de que o presidente brasileiros participasse de um fórum de negócios com os cerca de 200 empresários que compunham a comitiva, além de uma visita à sede do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos BRICS, em Shangai, a ser presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff. Segundo o Itamaraty, a visita tinha a pretensão de "refundar" as relações entre os dois países.

Porém, a viagem que ocorreria entre os dias 26 e 31 de março, acabou cancelada depois que o presidente Lula foi diagnosticado com uma broncopneumonia causada por bactérias e pelo vírus da gripe A. Diante do risco de transmissão para outras pessoas e de um agravamento de seu quadro clínico - dada a longa viagem de avião em cabine pressurizada - a equipe médica do Planalto recomendou o cancelamento do compromisso.

Na manhã deste domingo em Pequim, o governo chinês se pronunciou sobre o cancelamento. "A parte chinesa manifesta compreensão e respeito, expressa cumprimentos ao presidente Lula e deseja sua rápida recuperação", afirmou o porta-voz, sem, no entanto, fazer qualquer menção a uma nova data para o compromisso.

O cancelamento é um desfecho frustrante para uma agenda diplomática cercada por expectativas altas tanto do Brasil quanto da China. Prova disso é que, horas antes do anúncio do cancelamento, o jornal oficial China's Daily publicou um artigo do chanceler brasileiro Mauro Vieira em que ele prometia que o encontro levaria as duas nações a um novo patamar na sua chamada "parceria estratégica".

Questionado sobre os prejuízos da ausência de Lula, Fávaro tentou minimizar.

"Todos os acordos que seriam assinados na terça-feira (quando Lula e Xi se encontrariam) serão (firmados) em poucos dias, logo na sequência. Não vejo grandes problemas. Claro que a gente ficaria muito feliz de, antes dos 100 dias (de governo), já estar com tudo isso anunciado, mas vai ser muito em breve. E não vai deixar de ter bons resultados agora", disse Fávaro.

Segundo ele, as centenas de empresários brasileiros que vieram à China agora serão novamente convidados quando o encontro entre Xi e Lula se concretizar.

Parte do empresariado expressou frustração com a ausência de Lula - mas é muito provável que a maioria deles volte a atravessar o mundo nas próximas semanas, quando uma nova visita for agendada. Isso porque o capitalismo chinês é fortemente dependente do Estado e os negócios com executivos daquele país tendem a ser facilitados quando Pequim chancela politicamente a liderança estrangeira e sua entourage empresarial.

Além disso, no caso do agronegócio, é o Ministério da Agricultura do Brasil quem envia à China uma lista dos frigoríficos cujos negócios cumprem os requisitos técnicos para acessar o mercado consumidor chinês. Segundo Fávaro, a lista é enviada por ordem cronológica de pedidos, mas o governo de Xi pode escolher a quem franquear acesso sem cumprir a ordem.

Neste domingo, um café da manhã promovido por Fávaro contou com a presença desde produtores médios a gigantes do agronegócio nacional, como os irmãos Joesley e Wesley Batista, executivos do grupo J&F, controlador do frigorífico JBS e Marcos Molina, da BRF.

Na ausência de Lula, os irmãos Batista, que, em 2017, delataram ter pago propina a centenas de políticos brasileiros, se tornaram alvo de tietagem dos pares de menor porte, sendo cercados para fotos no hotel.

Sorridentes, atenderam com paciência aos pedidos, mas se recusaram a comentar com a imprensa qualquer detalhe sobre a visita.

A China é atualmente o maior mercado consumidor da J&F. Em rara exposição pública, no fim da tarde, os irmãos Batista caminharam de seu hotel, na zona mais nobre da capital chinesa, até a Embaixada Brasileira em Pequim, para detalhar em reunião ao Embaixador Marcos Galvão seu plano de exportação para o país.

Agenda previa que Lula fosse recebido em jantar por Xi Jinping no Palácio do Povo
Agenda previa que Lula fosse recebido em jantar por Xi Jinping no Palácio do Povo
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Não é só commodity

Em termos geopolíticos, porém, a China de 2023 espera que o Brasil seja mais do que um exportador de commodities. E isso não deve mudar, a despeito do adiamento.

"A China mudou, é hoje um ator global muito mais ativo e propositivo, e o presidente Lula sabe disso", afirmou um assessor presidencial brasileiro.

Em 2004, quando Lula foi à China pela primeira vez como presidente do Brasil, acompanhado por mais de 400 empresários e políticos, Pequim via no Brasil um parceiro capaz de ajudar a viabilizar seu plano de desenvolvimento. Naquele momento, o governo chinês pretendia mover 300 milhões de seus habitantes do campo para as cidades até 2020 e se via diante do risco de escassez de alimentos.

"A gente pode prover a comida que a China não puder mais produzir por si mesma", disse à época o então ministro da Agricultura de Lula, Roberto Rodrigues.

Cinco anos mais tarde, a China passaria a ser o maior parceiro comercial do Brasil graças, em grande parte, à compra de cerca de 80% da produção de soja brasileira, cuja safra mais que dobrou desde então.

Muito mais poderosa economicamente do que em 2023, a China agora se vê mais isolada globalmente do que há duas décadas. "A China precisa dos amigos, está isolada no relacionamento com os grandes. Daí o Brasil ser relevante", afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru.

Preocupa aos chineses não só o fortalecimento da posição americana na Europa, com a coesão e a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ocorrida desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, como a expansão de sua influência na Ásia.

Em janeiro, americanos e japoneses expandiram sua cooperação militar para a área espacial. Em fevereiro, o presidente americano Joe Biden O presidente dos EUA Joe Biden anunciou um cronograma acelerado para a Austrália receber seus próprios submarinos movidos a energia nuclear no início da próxima década - apenas a segunda vez na história em que os americanos transferem sua tecnologia atômica. E ainda no mês passado, as Filipinas liberaram os EUA a utilizar quatro de suas bases militares. Todos movimentos para conter possíveis ações militares da China em relação à Taiwan, cuja autonomia os EUA reconhecem.

A China tem reagido a isso tentando exercer com mais assertividade o que tem sido chamado de "diplomacia transacional": o gigante se move com vistas a interesses pragmáticos, decidindo sua posição caso a caso, sem professar uma cartilha de princípios ou valores.

Na recém lançada Global Civilization Initiative, a China afirma que os países "devem se abster de impor seus próprios valores ou modelos aos demais e de alimentar confrontos ideológicos". Trata-se de uma crítica direta ao tipo de liderança global exercida pelos Estados Unidos, o principal antagonista da China no cenário global.

Nas últimas semanas, a China deu mostras de que pretende assumir um novo protagonismo no mundo.

O caso mais emblemático foi a mediação de Pequim para o restabelecimento de relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita, rompidas desde a revolução islâmica do primeiro, em 1979. Os EUA monitoravam com tensão a escalada de hostilidades entre os dois inimigos no Oriente Médio e já havia alertado para o risco de uma corrida armamentista nuclear. Ao levar sauditas e persas de volta à mesa, os chineses desarmaram a bomba - e podem argumentar que sua atuação diplomática tornou o mundo um lugar mais pacífico.

É também em torno da paz que gira o segundo exemplo de ação diplomática chinesa. Em sua primeira viagem internacional após a recondução ao terceiro mandato, Xi Jinping foi à Rússia com a alegada intenção de mediar a paz entre Putin e a Ucrânia.

As iniciativas chinesas são consideradas cinicas pelos EUA, mas se encaixam na multipolaridade e na cooperação sul-sul que o Brasil e, especialmente, o governo Lula defendem.

"Um Brasil mais independente e altivo, autor de suas decisões, é algo importante para a China", afirma um embaixador brasileiro.

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