Número 14 ofusca tradição da camisa 10 e impõe respeito no futebol brasileiro
Arrascaeta e Scarpa lideram Flamengo e Palmeiras, respectivamente; Cano comanda artilharia no Brasileirão e na Copa do Brasil. Ela já foi do grande Cruyff
Imortalizada mundialmente por Pelé, a 10 sempre foi sinônimo de habilidade, categoria e protagonismo. No Brasil, muitos foram os nomes que seguiram a trilha deixada pelo Rei do futebol e ajudaram a consolidar tal número como o mais nobre entre as onze peças distribuídas no vestiário pelo treinador. Ademir da Guia, Rivellino e Zico foram alguns dos discípulos que, não só encantaram os torcedores brasileiros, mas que também se tornaram legítimos herdeiros do Rei. No Brasileirão deste ano, porém, essa ordem que determina a grandeza dos jogadores teve um desvio. Destaques na temporada por Flamengo, Palmeiras e Fluminense, Giorgian De Arrascaeta, Gustavo Scarpa e Germán Cano, respectivamente, colocaram o 14, número imortalizado por Johan Cruyff, um dos maiores jogadores da história, na prateleira mais alta dessa estante.
Em tempos de numeração fixa, o talentoso trio fez ainda mais. Antes relegada ao banco de reservas quando a escalação ia do tradicional "um ao onze", o número que hoje aparece em evidência tem cheiro de gol e esbanja criatividade e técnica na armação. Arrascaeta talvez seja o melhor jogador do futebol brasileiro. Sua camisa é uma das mais procuradas.
Mais velho da turma e com sangue argentino nas veias, Cano, de 32 anos, já marcou 31 vezes neste ano. Oportunista e implacável na área, o camisa 14 do Fluminense comanda a artilharia dos dois principais campeonatos de âmbito nacional. No Brasileirão, já são 13 bolas nas redes. Na Copa do Brasil, também aparece isolado no topo entre os goleadores com cinco gols.
A camisa 14 vem marcando território igualmente no Ninho do Urubu e na Academia de Futebol, em São Paulo. Número dez no Cruzeiro, o uruguaio Arrascaeta trocou de camisa ao desembarcar no Rio e vem se consolidando como um dos craques do Flamengo. Neste ano, ainda é líder em assistências no Brasil (19 passes) e tem 16 gols.
Negociado com o West Ham, da Inglaterra, Gustavo Scarpa vem fazendo valer cada minuto que resta em campo para o torcedor palmeirense. Camisa dez nos tempos de Fluminense, o armador canhoto mostra versatilidade, equilíbrio e precisão nos passes com o número 14 às costas. Não à toa, é um dos responsáveis pela boa fase do Palmeiras no Brasileiro e também na busca pelo título da Libertadores. O time sente sua falta quando está fora.
Giorgian De Arrascaeta é um dos destaques do Flamengo na temporada Foto: Carla Carniel / Reuters
A opção por números que no passado não tinham tradição nenhuma acaba sendo reflexo de uma nova tendência do produto futebol. De acordo com Armênio Neto, executivo em novos negócios do esporte, essa vertente ajuda a valorizar e personalizar a paixão pelo clube.
"Alguns números têm peso e significado. O 9 é artilheiro. O 10, liderança técnica. Dão significado aos jogadores que os usam. Mas também vivemos a era em que "players are the new players". É uma era onde o ídolo tem cada vez mais valor," diz Armênio ao Estadão.
Esse novo mecanismo, segundo Neto, tem um poderoso foco mercadológico fortalecendo a identificação do atleta com o torcedor. "Some isso à possibilidade de inserir nomes e números nas camisas e também aumentar as vendas. O resultado é que muitos jogadores acabam dando significado esses números de camisa não tão usuais", completou. Os números se tornam relevantes quando os jogadores que os usam fazem temporadas de valor. Isso vale para todas as modalidades.
ZICO DEFENDE GLAMOUR DA CAMISA 10
Comparado por muitos como o jogador brasileiro que mais se aproximou do estilo de Pelé, Zico acha que, apesar da camisa 14 estar em evidência, o número consagrado pelo Rei do futebol jamais perderá a sua grandeza. "Olha, acho que isso é apenas uma coincidência. Desses três jogadores, dois são estrangeiros. O camisa 14 que eu vi brilhar no mundo foi o Cruyff que era fantástico e fez uma Copa (de 74, na Alemanha), fabulosa. Mas a camisa 10 jamais vai perder o seu glamour. A 10 vai ser sempre valorizada por ter sido eternizada por Pelé", afirmou Zico ao Estadão.
O maior jogador da história do Flamengo, que usava a 10, disse ainda ser contra essa modernidade de escolher numeração aleatória. "Não concordo mesmo. Eu gosto do tradicional. Do goleiro camisa 1 ao ponta-esquerda número 11. Sou torcedor raiz mesmo", completou.
Para o ex-meia Alex, que atualmente trabalha como técnico do sub-20 do São Paulo, o número 10 vai depender da qualidade do atleta que vai estar em campo. "A camisa 10 tem seu prestígio e vai continuar tendo. A questão está em quem a usa. Isso é o clube que tem de determinar. Mas a 10 de vários clubes brasileiros segue sendo glamorosa", disse o ex-jogador que brilhou no Palmeiras no fim dos anos 90 vestindo a peça consagrada por Ademir da Guia, maior nome da história palmeirense.
Aos 67 anos, Cláudio Adão vê essa mudança de status na numeração dos uniformes pelo viés histórico. "Como o brasileiro é colonizado, começou a copiar os europeus, que foram os primeiros a jogar com camisas acima de 11. Antes, o 9 era o goleador, o 10 organizava o time e os pontas eram o 7 e o 11 ", disse o ex-artilheiro em conversa por telefone.
Revelado pelo Santos, e centroavante de rara habilidade, ele foi um dos últimos parceiros de Pelé no ataque da Vila Belmiro no início dos anos 70. Andarilho do futebol, rodou por vários times e brilhou como atacante do Fluminense no título carioca de 1980.
HOMENAGEM À TORCIDA, TATUAGEM E VOLTA NO TEMPO
Sobre o trio que vem ganhando os holofotes por conta do futebol apresentado por aqui, a escolha pela camisa 14 nada teve a ver com a influência do holandês Cruyff, que tornou o número famoso por suas grandes atuações no Ajax e também pela seleção da Holanda.
Cria do Lanús, Cano se inspirou na torcida organizada La Barra 14 para ter uma marca própria em campo. Na chegada ao Vasco, em 2020, ele recebeu das mãos do então técnico Abel Braga a camisa cruzmaltina com seu número predileto. No Fluminense, o enredo se repetiu. O argentino "tirou" a 14 do então lateral Danilo Barcelos e vem dando sequência em sua história nas Laranjeiras com muitos gols importantes.
Atual camisa 10 da seleção uruguaia, Arrascaeta é o símbolo de liderança técnica do Flamengo. No início do ano, uma campanha chegou a ser feita para que ele passasse a usar o manto consagrado por Zico a partir desta temporada. Ledo engano. Perfeitamente adaptado, o uruguaio tratou de reforçar a sua identificação com o momento atual. Fez uma tatuagem de um urubu-rei na altura da panturrilha esquerda com o número 14 marcado na pele.
Fora dos campos, o número virou marca e o jogador, empreendedor. Entrou no mundo da moda e criou uma confecção de roupas batizada de "G14?. O logo da marca faz menção à inicial de seu primeiro nome (Giorgian) e o algarismo que virou seu talismã desde a chegada ao Rio.
Camisa 10 nos tempos de Fluminense, Scarpa trocou de número ao desembarcar no Palmeiras em 2018. À época, o dono da 10 era Moisés. No entanto, a escolha pela camisa que hoje se destaca sob o comando de Abel Ferreira acabou sendo uma decisão em conjunto com o pai. Numa viagem no tempo, Scarpa recordou que o seu início, na base do Guarani, ainda no futsal, foi com a 14.
Um dos pilares da equipe palmeirense, o atleta está longe de passar batido em campo. Foram nove gols e mais nove assistências, além de ser a referência técnica do time e também especialista na bola parada.
NA SELEÇÃO, 14 TEM DNA DEFENSIVO
Mas em se tratando de seleção brasileira em Copa do Mundo, ainda mais levando em conta somente as equipes que voltaram para casa com o título na mão, a camisa 14 só teve vez do meio-campo para trás. No ano do primeiro título Mundial, em 1958, quem envergou esse número foi o lateral-direito De Sordi, titular durante a campanha, mas ausente na final, contra os suecos. Quatro anos mais tarde, Jurandir, outro defensor, assistiu a Copa do Chile do banco.
Enquanto Pelé comandava o Brasil com a 10 no tricampeonato de 1970, no México, o zagueiro Baldocchi foi a bola da vez como camisa 14 e passou pela disputa como mero coadjuvante.
Passados 24 anos de jejum, o Brasil voltaria a ser campeão em 94, nos Estados Unidos. Reserva no time de Parreira, Cafu entrou durante o jogo contra os Estados Unidos, pelas oitavas de final, e também contra a Holanda, nas quartas. Na decisão, saiu do banco para substituir Jorginho, machucado, na final contra Itália. Em 2002, Anderson Polga fechou a lista de defensores que foram campeões do mundo com a seleção vestindo a camisa 14. Ele participou de dois jogos na fase de grupos.