Nova estratégia de segurança nacional dos EUA reconfigura o conceito de soberania no século XXI
Nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos deixa de tratar a América Latina como espaço de cooperação estratégica e passa a enquadrá-la como área direta de contenção, controle e possível intervenção
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, apresentada por Donald Trump no dia 5 de dezembro, marca uma inflexão profunda na arquitetura de poder do continente americano.
Sob o slogan "Estados Unidos Primeiro", o documento deixa de tratar a América Latina como espaço de cooperação estratégica e passa a enquadrá-la como área direta de contenção, controle e possível intervenção. Para o Brasil e para o Mercosul, essa mudança reconfigura o ambiente de segurança regional em termos militares, econômicos e jurídicos.
Pela primeira vez em décadas, um documento oficial norte-americano autoriza explicitamente o uso de força letal fora do próprio território com base em critérios como migração, narcotráfico e "ameaças transnacionais". Essa autorização, ainda que formulada em linguagem estratégica, rompe com pilares centrais do Direito Internacional e com o próprio sistema interamericano de segurança coletiva. A fronteira entre política externa, política comercial e ação militar praticamente deixa de existir.
Impactos imediatos para o Mercosul
Na prática, o Hemisfério Ocidental passa a ser tratado como um espaço de segurança interna expandida dos Estados Unidos. O conceito de soberania dos Estados latino-americanos se torna funcional, subordinado às prioridades de Washington. O Brasil, por sua posição geográfica, peso econômico e liderança regional, ocupa um lugar sensível nesse novo tabuleiro.
Para o Mercosul, o impacto é imediato. O bloco nasce como um projeto de integração econômica voltado à estabilidade regional, à interdependência produtiva e à construção de confiança política entre antigos rivais estratégicos. A nova doutrina norte-americana opera na direção oposta: fragmenta, pressiona bilateralmente e submete cada país a testes de alinhamento político e comercial.
A segurança brasileira entra nesse cenário de forma indireta, porém decisiva. O documento norte-americano associa migração, crime organizado e instabilidade política como ameaças de natureza estratégica. Essa leitura tende a deslocar o foco das políticas de segurança para as fronteiras da Amazônia, do Caribe sul-americano e do eixo andino-atlântico. O resultado prático tende a ser oaumento da militarização indireta, por meio de cooperação seletiva, acordos de interoperabilidade e pressão por alinhamentos militares.
Itamaraty pode ter influência reduzida
No caso do Brasil, essa lógica tensiona três pilares históricos da política externa: a não intervenção, a solução pacífica de controvérsias e a autonomia estratégica. Ao tratar o continente como "zona de controle hemisférico", Washington relativiza o papel do Itamaraty, da OEA e até dos mecanismos de integração regional, substituindo a diplomacia multilateral por relações de tutela.
O Mercosul aparece como um obstáculo indireto a essa lógica. Blocos regionais ampliam a capacidade de barganha coletiva e reduzem a dependência bilateral. Por isso, a nova estratégia norte-americana valoriza acordos comerciais fragmentados, pressões regulatórias seletivas e incentivos econômicos direcionados a governos politicamente alinhados.
No plano da segurança energética e dos minerais críticos, o risco se amplia. Brasil, Argentina e Paraguai integram áreas de interesse estratégico em cadeias de transição energética, lítio, nióbio, terras raras, água doce e biodiversidade. A nova doutrina assume abertamente que investimentos, ajuda econômica e parcerias passam a operar como instrumentos diretos de segurança nacional dos Estados Unidos. A separação entre capital privado, política comercial e interesse militar simplesmente desaparece.
Isso cria um ambiente no qual disputas por recursos no Mercosul tendem a se tornar disputas geopolíticas. A pressão sobre marcos regulatórios, licenciamento ambiental, infraestrutura logística e regimes tributários torna-se estratégica. A autonomia decisória dos Estados da região passa a sofrer constrangimentos permanentes.
Há ainda um risco sistêmico pouco debatido: a erosão do sistema de resolução pacífica de controvérsias. Ao legitimar o uso de força preventiva fora de seu território, os Estados Unidos estimulam um efeito dominó. Outros atores passam a reivindicar o mesmo direito em nome de sua própria segurança. O resultado é a desestruturação progressiva das normas que sustentaram a estabilidade relativa do continente desde o fim das ditaduras militares.
No Brasil, dilema estrutural
Para o Brasil, isso produz um dilema estrutural. A manutenção da autonomia estratégica exige preservar o Mercosul como espaço de coordenação política, produtiva e diplomática. Ao mesmo tempo, a nova estratégia norte-americana introduz incentivos econômicos altamente assimétricos para minar essa coesão, premiando governos que aceitem relações bilaterais subordinadas.
No plano militar, o documento também desloca expectativas. A pressão para aumento de gastos em defesa, alinhamento tecnológico, cooperação em vigilância digital e uso de inteligência artificial para controle territorial passa a ser apresentada como "responsabilidade compartilhada". Trata-se de uma transferência indireta de encargos estratégicos para países periféricos do sistema.
O discurso de estabilidade que acompanha essa doutrina é enganoso. A normalização do uso de força, a instrumentalização do comércio como ferramenta de coerção e a subordinação das agendas regionais a prioridades externas produzem exatamente o contrário: mais instabilidade, mais fragmentação e mais risco de conflitos localizados.
O Brasil, em particular, enfrenta uma encruzilhada histórica. A preservação de sua segurança passa menos pelo alinhamento automático e mais pela reconstrução de capacidades regionais de coordenação política. Sem um Mercosul funcional, sem canais de diálogo estruturado com a América do Sul e sem autonomia tecnológica mínima, a segurança nacional se torna dependente de interesses externos.
A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos sinaliza uma ruptura com a ordem baseada em regras e a substituição por uma lógica de poder direto, esferas de influência e coerção aberta. Para o Brasil e para o Mercosul, o risco não é abstrato: trata-se da reconfiguração do próprio espaço de soberania no século XXI.
Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.