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Nova estratégia de segurança nacional dos EUA reconfigura o conceito de soberania no século XXI

Nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos deixa de tratar a América Latina como espaço de cooperação estratégica e passa a enquadrá-la como área direta de contenção, controle e possível intervenção

15 dez 2025 - 12h51
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A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, apresentada por Donald Trump no dia 5 de dezembro, marca uma inflexão profunda na arquitetura de poder do continente americano.

Sob o slogan "Estados Unidos Primeiro", o documento deixa de tratar a América Latina como espaço de cooperação estratégica e passa a enquadrá-la como área direta de contenção, controle e possível intervenção. Para o Brasil e para o Mercosul, essa mudança reconfigura o ambiente de segurança regional em termos militares, econômicos e jurídicos.

Pela primeira vez em décadas, um documento oficial norte-americano autoriza explicitamente o uso de força letal fora do próprio território com base em critérios como migração, narcotráfico e "ameaças transnacionais". Essa autorização, ainda que formulada em linguagem estratégica, rompe com pilares centrais do Direito Internacional e com o próprio sistema interamericano de segurança coletiva. A fronteira entre política externa, política comercial e ação militar praticamente deixa de existir.

Impactos imediatos para o Mercosul

Na prática, o Hemisfério Ocidental passa a ser tratado como um espaço de segurança interna expandida dos Estados Unidos. O conceito de soberania dos Estados latino-americanos se torna funcional, subordinado às prioridades de Washington. O Brasil, por sua posição geográfica, peso econômico e liderança regional, ocupa um lugar sensível nesse novo tabuleiro.

Para o Mercosul, o impacto é imediato. O bloco nasce como um projeto de integração econômica voltado à estabilidade regional, à interdependência produtiva e à construção de confiança política entre antigos rivais estratégicos. A nova doutrina norte-americana opera na direção oposta: fragmenta, pressiona bilateralmente e submete cada país a testes de alinhamento político e comercial.

A segurança brasileira entra nesse cenário de forma indireta, porém decisiva. O documento norte-americano associa migração, crime organizado e instabilidade política como ameaças de natureza estratégica. Essa leitura tende a deslocar o foco das políticas de segurança para as fronteiras da Amazônia, do Caribe sul-americano e do eixo andino-atlântico. O resultado prático tende a ser oaumento da militarização indireta, por meio de cooperação seletiva, acordos de interoperabilidade e pressão por alinhamentos militares.

Itamaraty pode ter influência reduzida

No caso do Brasil, essa lógica tensiona três pilares históricos da política externa: a não intervenção, a solução pacífica de controvérsias e a autonomia estratégica. Ao tratar o continente como "zona de controle hemisférico", Washington relativiza o papel do Itamaraty, da OEA e até dos mecanismos de integração regional, substituindo a diplomacia multilateral por relações de tutela.

O Mercosul aparece como um obstáculo indireto a essa lógica. Blocos regionais ampliam a capacidade de barganha coletiva e reduzem a dependência bilateral. Por isso, a nova estratégia norte-americana valoriza acordos comerciais fragmentados, pressões regulatórias seletivas e incentivos econômicos direcionados a governos politicamente alinhados.

No plano da segurança energética e dos minerais críticos, o risco se amplia. Brasil, Argentina e Paraguai integram áreas de interesse estratégico em cadeias de transição energética, lítio, nióbio, terras raras, água doce e biodiversidade. A nova doutrina assume abertamente que investimentos, ajuda econômica e parcerias passam a operar como instrumentos diretos de segurança nacional dos Estados Unidos. A separação entre capital privado, política comercial e interesse militar simplesmente desaparece.

Isso cria um ambiente no qual disputas por recursos no Mercosul tendem a se tornar disputas geopolíticas. A pressão sobre marcos regulatórios, licenciamento ambiental, infraestrutura logística e regimes tributários torna-se estratégica. A autonomia decisória dos Estados da região passa a sofrer constrangimentos permanentes.

Há ainda um risco sistêmico pouco debatido: a erosão do sistema de resolução pacífica de controvérsias. Ao legitimar o uso de força preventiva fora de seu território, os Estados Unidos estimulam um efeito dominó. Outros atores passam a reivindicar o mesmo direito em nome de sua própria segurança. O resultado é a desestruturação progressiva das normas que sustentaram a estabilidade relativa do continente desde o fim das ditaduras militares.

No Brasil, dilema estrutural

Para o Brasil, isso produz um dilema estrutural. A manutenção da autonomia estratégica exige preservar o Mercosul como espaço de coordenação política, produtiva e diplomática. Ao mesmo tempo, a nova estratégia norte-americana introduz incentivos econômicos altamente assimétricos para minar essa coesão, premiando governos que aceitem relações bilaterais subordinadas.

No plano militar, o documento também desloca expectativas. A pressão para aumento de gastos em defesa, alinhamento tecnológico, cooperação em vigilância digital e uso de inteligência artificial para controle territorial passa a ser apresentada como "responsabilidade compartilhada". Trata-se de uma transferência indireta de encargos estratégicos para países periféricos do sistema.

O discurso de estabilidade que acompanha essa doutrina é enganoso. A normalização do uso de força, a instrumentalização do comércio como ferramenta de coerção e a subordinação das agendas regionais a prioridades externas produzem exatamente o contrário: mais instabilidade, mais fragmentação e mais risco de conflitos localizados.

O Brasil, em particular, enfrenta uma encruzilhada histórica. A preservação de sua segurança passa menos pelo alinhamento automático e mais pela reconstrução de capacidades regionais de coordenação política. Sem um Mercosul funcional, sem canais de diálogo estruturado com a América do Sul e sem autonomia tecnológica mínima, a segurança nacional se torna dependente de interesses externos.

A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos sinaliza uma ruptura com a ordem baseada em regras e a substituição por uma lógica de poder direto, esferas de influência e coerção aberta. Para o Brasil e para o Mercosul, o risco não é abstrato: trata-se da reconfiguração do próprio espaço de soberania no século XXI.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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