Homologação da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana marcou avanço histórico para os povos indígenas na Amazônia
Homologação de terras indígenas pelo governo durante a COP 30 foi fruto de anos de pesquisa etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental na região, sempre em parceria com os povos originários
No dia 17 de novembro de 2025, o Brasil assistiu a um marco histórico: a posse permanente de 2.182.910 hectares destinados ao usufruto dos povos indígenas Kaxuyana, Tunayana, Kahyana, Katuena, Mawayana, Tikiyana, Xereu-Hixkaryana, Xereu-Katuena e grupos isolados, entre os estados do Pará e Amazonas. O decreto de homologação conclui um dos maiores e mais emblemáticos processos de demarcação física realizados na região nos últimos anos.
Desde o século 19, esses povos passaram por sucessivas ondas de deslocamento, provocadas pela expansão extrativista e pela presença missionária na região. Esse processo forçou a mobilidade e a dispersão de comunidades ao longo do tempo. A partir da década de 1980, inicia-se um movimento inverso: ocorre a reorganização social e territorial dos grupos indígenas, permitindo a rearticulação das aldeias e o fortalecimento de vínculos intercomunitários. Esse processo culmina no reconhecimento oficial da área como território tradicionalmente ocupado.
A demarcação física da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana consolidou uma rede de colaboração inédita entre Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Fundação Christiano Ottoni (FCO/UFMG), bem como lideranças das comunidades e representantes das associações indígenas Conselho Geral do Povo Hexkaryana (CGPH), Associação dos Povos Indígenas do Alto Rio Nhamundá (ASPIARIN), Associação dos Povos Indígenas do Mapuera (APIM) e Associação Indígena Katxuyana, Tunayana, Kahyana (AIKATUK), Associação dos Povos Indígenas Trombetas-Mapuera (APITMA) entre outras.
O trabalho de campo
Entre janeiro e dezembro de 2025, foram instalados e georreferenciados 122 marcos e 301 placas, cobrindo um perímetro de mais de um milhão e meio de metros.
São várias as etapas que antecedem a demarcação física. O Relatório de Identificação e Delimitação (RCID) se iniciou em 2008. Nesse ano, foi criado o primeiro Grupo de Trabalho que, conforme Decreto, realizou durante quatro anos estudos de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e levantamento fundiário, que levaram à comprovação de que os povos indígenas ocupam tradicionalmente e de forma permanente o território.
Essa evidência científica culminou na publicação da portaria declaratória 1.510/2018. A demarcação física foi realizada com base nesta portaria declaratória e foram executados procedimentos metodológicos, de alta precisão topográfica, em um rigoroso o trabalho de campo, que percorreu os limites da Terra Indígena georreferenciando as coordenadas com alta precisão.
O trabalho em campo aliou conhecimento tradicional e ciência. As equipes — que reuniam topógrafos credenciados, experientes na região Amazônica, e pesquisadores — contaram ainda com o conhecimento tradicional de proeiros que orientavam a navegação, pilotos que controlavam as embarcações e vigilantes indígenas, fundamentais para superar desafios logísticos impostos pela floresta, pelos rios e pela distância das comunidades.
O conhecimento do terreno dos proeiros e pilotos de embarcação indigenas e equipes de vigilantes indígenas, a sua familariedade com as condições climáticas, os seus ritos e costumes, os conhecimentos acerca dos locais sagrados e das regiões em onde poderiam existir povos isolados ainda sem contacto ,foram essenciais para que os protocolos legais formais da demarcação bem como as normas topograficas vigentes fossem cumpridas.
Em março de 2025, assembleias realizadas nas Aldeias Ayaramã, Tawanã e Matrinxã tornaram-se os principais espaços de decisão coletiva. Nesses encontros, foram validados os procedimentos técnicos, sociais e ambientais, respeitando manual da Funai, as especificações do Incra e, sobretudo, os princípios fundamentais dos povos indígenas: proteção de territórios ocupados por isolados, conservação dos marcos naturais e reconhecimento do conhecimento tradicional como base da delimitação territorial.
As expedições de campo começaram no Dia dos Povos Indígenas, em 19 de abril 2025. Entre abril e agosto, as equipes de topografia e indígenas enfrentaram desde emergências médicas e acidentes até o naufrágio de embarcações. Todas as adversidades foram respondidas de forma rápida e coletiva, reforçando a importância do protagonismo indígena e do trabalho das equipes de vigilância e das juventudes locais.
Em setembro de 2025, uma última assembleia em Matrinxã consolidou o encerramento das atividades em campo e aprovou formalmente a demarcação física da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana. O encontro encaminhou ainda recomendações à Funai para finalização das peças técnicas e do memorial descritivo, além de reforçar a importância da articulação com comunidades quilombolas e da manutenção das ações de proteção territorial.
O trabalho na UFMG foi desenvolvido pelo departamento de cartografia do Instituto de Geociências, o Centro de Sensoriamento Remoto, com participação de alunos de iniciação científica, e da pós-graduação em Análise e Modelagem de Sistemas Ambientais e Geografia.
A homologação, em novembro 2025, inaugurou uma nova fase: agora, sob a liderança das próprias comunidades, os próximos passos envolvem fortalecer as ações de educação, saúde, cultura, manejo territorial e proteção da biodiversidade — elementos inseparáveis dos modos de vida e da soberania desses povos.
Este resultado é fruto da luta incansável das comunidades Kaxuyana, Tunayana, Kahyana, Katuena, Mawayana, Tikiyana, Xereu-Hixkaryana, Xereu-Katuena e dos povos isolados. É também uma vitória para a Amazônia e para o Brasil. Celebramos e nos orgulhamos profundamente deste legado coletivo.
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