Editorial: do campinho ao desfile as chuteiras e o soccercore viraram moda global
Peças antes vistas como exclusivas da periferia ganham as vitrines de Paris e os selos de grife
Nunca imaginei ver uma chuteira com amortecimento Shox relançada como objeto de desejo fora dos campos, muito menos assinada pela Nike como parte de uma estratégia de moda. A Total 90 Sector Shox Magia, que surgiu originalmente no início dos anos 2000, era usada por moleques na várzea, no society, e também na quebrada. Mas agora aparece em editoriais, em posts de influenciadores europeus, e como peça-chave da estética soccercore. O mesmo vale para camisas de clubes, que deixaram de ser uniforme de jogo ou visual de bar no domingo, e passaram a frequentar passarelas e campanhas de grifes.
Esse movimento não é novo, mas se intensificou. O futebol sempre foi mais que um esporte: é estética, pertencimento, narrativa de classe e raça. O que mudou é quem passou a contar essa história e para quem ela é vendida. A Louis Vuitton, por exemplo, lançou recentemente a LV Footprint, com sola tratorada, couro italiano e o logo da gigante na língua. A referência ao universo do futebol é clara e ao mesmo tempo deslocada. O design lembra modelos usados por jogadores de base, mas a execução é puro luxo. O preço, então, nem se fala: é uma chuteira de R$ 7.850 que nunca vai tocar uma bola.
O soccercore, essa estética que mistura elementos do futebol (como chuteiras, agasalhos, camisas retrô, meiões), com styling de passarela ou de streetwear contemporâneo, surgiu da rua. Tem muito de Brail, mas tem muito da Europa também, mas não essa chique que vocês estão pensando. Na Inglaterra dos anos 90 e 2000, os filhos de imigrantes jamaicanos, ganeses, nigerianos e caribenhos criaram uma identidade visual própria nas ruas de Londres e Birmingham.
Esses jovens vestiam camisas de clubes (não só os do coração, mas também os com design mais ousado), chuteiras de futsal, jaquetas da Umbro e calças Adidas. O look do fim de semana era o mesmo da quadra. Era também o visual dos MCs de grime, dos DJs de UK Garage, dos dançarinos de jungle. Uma estética moldada por escassez, inventividade e resistência.
Enquanto isso, no Brasil, a camisa de futebol era símbolo de pertencimento, de lealdade, mas também de sobrevivência. Muita gente só tinha aquela peça como roupa "boa". A chuteira, muitas vezes usada no dia a dia por falta de outro calçado, virava item de estilo sem querer. As linhas Nike Total 90, Mercurial, Tiempo e CTR360 marcaram época. Principalmente entre 2000 e 2010, a Total 90 se tornou uma espécie de símbolo do futebol de rua, com suas cores vibrantes, design aerodinâmico e, claro, as versões com amortecimento Shox de 2003, um exagero técnico que virou charme. A versão "Magia" era sonhada, mas inacessível pra muita gente.
Hoje, essas mesmas silhuetas voltam com novo status, com tom de exclusividade, em parceria com boutiques e revendas de alto padrão. Esse tipo de movimento revela mais do que uma tendência, mostra um ciclo. O que foi marginalizado primeiro, depois é cooptado, gentrificado e vendido como "novo". As chuteiras, antes vistas como "coisa de quebrada", hoje ganham aura fashionista. O mesmo acontece com as camisas de time. Basta um styling com uma calça de alfaiataria ou um trench coat e pronto: está no radar das feras do hype. Só que, até pouco tempo atrás, era o tipo de look que causava desconfiança em porta de loja.
A crítica mais óbvia aqui é a da apropriação cultural. A cultura negra e periférica segue sendo fonte de inspiração constante para a indústria da moda, mas quase nunca é parte da equação na hora de dividir os lucros, contar a história ou ocupar os cargos de decisão. O moleque que usava chuteira no dia a dia por necessidade não é chamado para o editorial. A designer da quebrada que cria com recorte e cola não é contratada para assinar uma collab. A curadoria, a autoria e a narrativa seguem elitizadas. Eu mesmo sou um cara branco de classe média escrevendo esse texto.
E há também uma despolitização. Quando as grifes se apropriam desses símbolos, elas também os esvaziam. A camisa do Corinthians da Topper, por exemplo, é agora item de colecionador, mas perde o peso de ser um símbolo da democratização do futebol nos anos 90. A chuteira com Shox vira objeto de desejo, mas não carrega mais a história do menino que atravessava a cidade inteira pra jogar em um campo de terra batida.
Dá pra olhar o soccercore com admiração estética também e tem muita coisa boa sendo feita, não dá pra negar. Mas também é preciso olhar com atenção crítica. A moda precisa, cada vez mais, reconhecer as origens do que consome visualmente. E, mais do que isso, precisa devolver em forma de oportunidade, visibilidade e remuneração justa. A estética do futebol não é só estilo: é vivência, história e identidade. É preciso garantir que, nesse novo jogo da moda, quem criou as regras também possa jogar e ganhar.