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Napoleão e a retirada da Rússia em 1812

19 fev 2013 - 16h11
(atualizado em 29/9/2013 às 21h35)
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<p>O marechal Ney lidera a retaguarda em novembro de 1812</p>
O marechal Ney lidera a retaguarda em novembro de 1812
Foto: Adolphe Yvon / Reprodução

Em algumas gravuras, Napoleão aparece no alto de um promontório não muito elevado, olhando para a vasta planície que se estendia pelo horizonte: a estepe russa. Era o verão de 1812. Tropa inimiga alguma lhe fazia frente enquanto milhares dos seus homens atravessavam o rio Niêmen, fronteira extrema entre o que naquele tempo separava a Europa e a Ásia. Três intermináveis colunas de soldados, cerca de 280 mil homens, marchavam disciplinados sobre os pontilhões aprontados na noite anterior àquele dia histórico de 24 de junho de 1812, quando Bonaparte invadiu o Império dos Czares.

Atrás dos corpos de exército que transpunham o rio, milhares de carroções repletos com alimentos e munições aguardavam a vez. Ao seu redor reunia-se uma nervosa cavalhada levada como reserva para os hussardos, os lanceiros, os couraceiros, os dragões e tantos outros mais batalhões de monta com que Bonaparte esperava esmagar os russos no caminho para a distante Moscou. Sem omitir os mais de mil canhões que acompanhavam o Grand Armée.

Um mês antes da grande aventura, entre 17 e 29 de maio, o Imperador da Europa, com 50 milhões de súditos, convocara com grande pompa todos os príncipes tornados vassalos seus para um encontro em Dresde, na Saxônia. Certamente que o evento foi o ponto mais alto do Império de Bonaparte. Depois daquele maio de 1812, nunca mais ele gozou de momento tão faustoso quando os herdeiros das dinastias mais veneráveis da Europa Ocidental e Central vieram para o beija-mão.

Queria mostrar ao czar Alexandre I que ele tinha o Ocidente atrás de si, enquanto o autocrata russo estava sozinho. Poucos reinos, de fato, mantinham-se então fora do seu controle, somente a Grã-Bretanha, pequenos monarcas balcânicos e o Império Otomano não lhe obedeciam.

Napoleão acreditava (como confessou no Memorial de Santa Helena de Las Cases), que a guerra contra Moscou era necessária e inadiável. Alexandre I ainda o alertara de que "não seria o primeiro a desembainhar a espada, mas seria o último a fazê-lo" se Bonaparte insistisse em atacar a Rússia. E, disse-lhe também que, se fosse necessário, ele se retiraria para a península mais asiática do império russo, mas não assinaria nenhum acordo ou tratado de paz com o invasor.

Caulaincourt, um dos raros generais-diplomatas da estouragem de Napoleão, ex-embaixador francês em São Petersburgo, por igual tentou dissuadi-lo da aventura. Tudo em vão. Tomar o czarado de assalto e submeter seu soberano fascinava-o. Ninguém como ele encarnou naquele momento - que foi o zênite do seu domínio - o milenar dito grego de que quando os deuses querem por a perder um homem, primeiro o tornam cego.

Apressado e acostumado a tomar a ofensiva, não quis dar a vantagem ao czar. Seguia o conselho de Maquiavel, segundo o qual adiar uma guerra inevitável era reforçar o inimigo. Portanto, lá estava ele liderando o maior contingente militar que a Europa jamais vira (eram mais de 675 mil, mas nem todos participaram da invasão).

Os regimentos então cantavam "De Norte a Sul, os clarins da guerra anunciam a hora do combate. Tremei inimigos da França...".

Porque Moscou?

Entre agosto e setembro, numa marcha acelerada, bateu os russos em Smolensky e em Borodino. Para surpresa do grande capitão-de-guerra, ele perdera, entre mortos, feridos e desertores, 100 mil homens nos dois monumentais combates. Além de contar com outros milhares de cavalos mortos, entre outras razões, por estranharem a forragem.

Moscou viu-se abandonada pela população e pelas autoridades por insistência do governador, Conde Rostopchine, e do comandante-geral, marechal Mikhail Kutuzov, um veterano de guerra quase um septuagenário. Bem poucos dos seus 250 mil habitantes se decidiram por ficar depois do recuo russo de Borodino. O caminho para Moscou estava aberto.

O que determinara Bonaparte à conquista da grande cidade visto que ali não estava o czar? O autocrata governava o império desde São Petersburgo, distante 560 quilômetros a nordeste do Kremlin. O motivo, como Napoleão explicou a seus marechais, é que os russos não passavam de um povo bárbaro, supersticioso e extremamente devoto. Ao saber que seu local santo caíra ocupado pelo invasor certamente que o reino inteiro de Alexandre I viria abaixo pelo impacto psicológico causado pela profanação das suas seis catedrais e 1,5 mil igrejas menores.

Um sargento veterano do exército francês deixou registrado a forte impressão que a cidade lhe causara quando sua tropa deparou com ela pela primeira vez: "Vi muitas capitais, (...) mas aquela era bem diferente: o efeito que produziu em mim - de fato, em todos - foi mágico. À vista dela, as perturbações, os perigos, os cansaços, as privações, tudo fora esquecido, e o prazer de penetrar em Moscou absorveu-nos o espírito" (Nigel Nicolson, 1987, p.137).

Nem todos se deixaram maravilhar. O marechal Murat, cavaleiro bravíssimo, de insuspeita coragem -  era dotado de tal destemor que os cossacos contra quem ele combatia com regularidade decidiram nunca disparar sobre ele -, não hesitou em alertar Napoleão para que ficasse em Smolesk para passar o inverno e que não entrasse em Moscou: "Moscou será a nossa perdição", disse ele de joelhos frente ao imperador.

Conselho algum o demoveu de ocupar os salões do Kremlin e refestelar-se nas poltronas do czar (que somente se estabelecia em Moscou para eventos muito especiais).

Moscou em chamas

Acompanhado pela sua guarda pessoal, Napoleão instalou-se no Kremlin, esperando algum sinal de paz. O czar, irredutível em fazer qualquer acerto, não recebeu nenhum dos seus emissários. Enquanto isto, o incêndio que se espalhava pelas aldeias russas onde os mujiques, miseráveis camponeses, tocavam fogo nas suas izbás, cabanas de madeira e palha, para nada deixar ao invasor, atingiu também Moscou.

Durante uma semana, de 14 a 20 de setembro, a metrópole ardeu, deixando mais de cem mil soldados invasores sem nenhum tipo de abrigo. A Quarta Roma, como os cristãos ortodoxos costumavam designá-la, tornara-se um braseiro que consumira palácios, mansões e catedrais. A decisão de queimar tudo certamente fora tomada por ordem do Conde de Rostopchine.

Haveria ainda salvação se não fosse a teimosia de Napoleão. Não se conformava com a atitude do czar em negar-lhe qualquer sinal apaziguador, assim, ficou mais tempo do que devia em meio a uma cidade tornada de entulho e com uma turba desordeira acampada pelas ruas, dedicada à rapina e à pilhagem do que sobrara.

Decidiu partir somente um mês depois. Em 19 de outubro, ordenou ao marechal Victor-Perrin que abrisse o caminho de volta para a fronteira ocidental, distante uns 800 quilômetros. Então, a tragédia teve começo. O inverno dia a dia se intensificava. Rapidamente a temperatura caiu para -26°C. Nenhum francês ou soldado das tropas auxiliares de outras nacionalidades conhecia os rigores daquela terra semi-ártica de ursos, lobos, mujiques e cossacos. Imagine o padecimento dos 40 mil napolitanos que Murat trouxera do seu reino.

Napoleão, no alto da sua soberba, desconsiderava as condições climáticas. Como assegurou aos comandantes, seus soldados estavam "acostumados a marchar com fome" e mesmo assim combater.

Uma por uma as divisões, no começo, partiram numa certa ordem. Caulaincourt, em suas memórias, indicou um total de 87,5 mil infantes, 14,75 mil cavalarianos e 553 canhões, além de 40 mil carruagens e vagões. Levavam sacos e mais sacos de prataria, ícones, crucifixos e candelabros que conseguiram salvar das cinzas. Carroças repletas de espólios arrastavam-se atrás da longa linha que seguia em frente em intermináveis curvas como se fora uma serpente preguiçosa. Da retaguarda à vanguarda estendiam-se por 64 quilômetros. Seu roteiro passava por Maloiaros Iavets, Viazen, Krasnoy, Berezina até Vilna.

O General Inverno

Então a temperatura repentinamente baixou. Um imenso lençol de mortífera neve cobriu os invasores. Saíram do fogo de Moscou para a friagem da estepe e dos bosques. Caminhar tornou-se um suplício; as pernas atolavam e cada parada de descanso era uma temeridade, visto que os cossacos do atamã Matvei Platov surgiam como que do nada para dizimar os retardatários em cargas fulminantes.

Do alto dos cavalos acostumados ao inverno, seus sabres atuam como navalhas sobre os desgarrados. Parecia um enxame de marimbondos que, depois de distribuir as ferroadas, desapareciam nos ares. O grito "aí vem os cossacos", entre os franceses, passou a ser a palavra de ordem para o salve-se quem puder. Pior ainda eram os bandos de camponeses que os emboscavam com foices, com velhos mosquetões e lanças improvisadas, não deixando ninguém vivo. Era um povo inteiro que se alinhava furioso contra os profanadores da Mãe Rússia.

Aos poucos, as carroças, as diligências, as carruagens, os vagões, os canhões, as mochilas e os bornais, mesmo os fuzis, foram abandonados pelos retirantes na malfadada trilha. E ainda tinham centenas de quilômetros por diante. Nada podiam fazer com os feridos, doentes ou com os exaustos, deixados entregues à caridade dos russos que, em geral, os matavam com as baionetas. Os fuzis, que lhes queimavam as mãos, foram substituídos por cajados ou ancinhos. Num nada o orgulho dos combatentes transformou-se numa humilde procissão fúnebre.

Com exceção da Velha Guarda Imperial, os melhores soldados do Grand Armée, como Napoleão o chamava, começaram também a ruir. Cada vez mais o exército, perdida a hierarquia, assemelhava-se a uma procissão de flagelados esfomeados e friorentos. Não eram os clarins que os moviam, mas os gemidos e urros de sofrimento. Sob lágrimas, os cavalarianos famintos se viram obrigados a abater suas montarias, belos animais que os haviam acompanhados em tantas outras campanhas. Sentiam-se como canibais ou Caim matando o irmão.

Com a temperatura oscilando entre 30°C e 40°C negativos, somada aos ventos uivantes, a tropa tornara-se uma sociedade hobbesiana: cada qual virou o lobo do outro. Roubos e assassinatos passaram a fazer parte do dia a dia da soldadesca em recuo. Quem os comandava agora era a bestial lei da sobrevivência do mais forte. A camaradagem, a fraternidade e a solidariedade entre os companheiros de farda desaparecera. Dormir era chamar a morte. No caminho, estendiam-se milhares de cadáveres congelados. Não muito longe deles, como se fosse uma assombração, marchavam as divisões russas sob comando do conde Wittgenstein, do marechal M. Miloradovich, do príncipe Bagration, sob autoridade suprema de Kutuzov.

Um exército de maltrapilhos

Mesmo nesta situação terrível, quando Bonaparte se dava conta da dimensão do desastre, marechais da França lutavam como leões. Entre eles, o marechal Ney, encarregado de proteger a retaguarda. Viam-no em todos os lugares, montado ou a pé mesmo. Não esmoreceu nunca. Protegeu o que foi possível dos seus homens envoltos em trapos e sem ânimo para combater. O mesmo se deu com o intrépido Joachin Murat, o marechal Davout e com o príncipe Eugênio (enteado de Napoleão).

Sabedor de uma tentativa de golpe em Paris, Bonaparte decidiu deixar seus comandados e, na madrugada do dia 5 de dezembro, partiu do burgo de Smorgoni num discreto trenó de volta à França, legando a Murat chefiar a desgraça final. Para alcançar o Palácio das Tulherias, em Paris, tinha que percorrer 2.240 quilômetros sem que o reconhecessem. Não avisou ninguém da sua chegada, nem à imperatriz Maria Luísa.

Um pouco antes, entre 26 e 29 de novembro de 1812, conseguira a façanha de fazer passar sua gente, com a perda de 20 mil deles, pelos pontilhões sobre o rio Berezina. Eles haviam sido miraculosamente construídos pelo General-engenheiro J.B. Eblé, com a perda de 400 bravos sapadores que se afogaram na correnteza gelada. Enquanto isto, os russos, no alto das colinas, os esmagavam com a artilharia e uma horda de cossacos dispersava os infantes e os desgarrados franceses a espadaços.

Em Paris, retomando a majestade, tentaria ainda inutilmente formar outro exército para garantir a sobrevivência do seu império periclitante.

Quando as primeiras levas de soldados chegaram à Vilna, na Lituânia, e depois em Knovo, nos começos de dezembro, a população ficou estarrecida. Onde estavam aqueles garbosos homens que apenas seis meses antes desfilaram por aquelas ruas prometendo-lhes libertá-los do czar? Uma multidão de 30 a 40 mil sobreviventes se derramou pelos espaços das cidades. Regimentos inteiros haviam se transformado em lazarentos, num pátio de milagres repleto por figuras fantasmagóricas. Coxos, amputados, cegos, loucos, tifosos, desesperados de fome, com os uniformes em farrapos, ulcerados com pés enrolados em tiras, assemelhavam-se a almas do outro mundo que, num repente, saltaram das tumbas para assombrar os vivos.

Marechal Ney, um dos incansáveis de Napoleão
Marechal Ney, um dos incansáveis de Napoleão
Foto: Getty Images

Deixaram atrás deles 380 mil mortos, feridos e prisioneiros. Menos de seis meses depois do aluvião armado que invadira a Rússia, somente 18 mil conseguiram reatravessar o rio Niêmen. O Marechal Ney foi o último deles.

E assim, há 200 anos, terminou a glória do Grand Armée, protagonista de um dos mais gigantescos desastres militares de todos os tempos, paradoxalmente liderado pelo maior general da história moderna.

Trajetória do Grand Armée na ida a Moscou e volta ao Ocidente (1812)
Trajetória do Grand Armée na ida a Moscou e volta ao Ocidente (1812)
Foto: Reprodução

Bibliografia

Cate, Curtis - Russia 1812: The Duel Between Napoleon and Alexander. Londres, Random House, 2004.

Caulaincourt, General de - Mémoires. Paris. Librarie Plon, 1933, 2 v.

Clausewitz, Carl von - A campanha da Rússia de 1812. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 1994.

Clausewitz, Carl von - Da Guerra. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes, 2010, 3ª ed.

Elting, John R. - Swords Around a Throne: Napoleon's Grand Armée. USA: Da Capo Press, 1997.

Las Cases, Comte de - Le Mémorial de Sainte-Helene. Paris: Biblioteque de la Pleiade, 1935, 2 v.

Lefebvre, George- Napoleon. Paris: PUF, 1989.

Nafziger, George. Napoleon's Invasion of Russia. Presidio Prees, Novato; 1988.

Nicolson, Nigel - Napoleão 1812. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1987.

Ségur, general Conde de - A derrota de Napoleão na Rússia, RJ., Edições Mundo Latino, 1942

Tarle, Eugene. Napoleon's Invasion of Russia: 1812. Oxford University Press, New York; 1942.

Tolstoi, Leon - Guerra e Paz. Porto Alegre: LP&M, 4 v.

Tulard, Jean - Napoleon ou le mythe du salveur. Paris: Editions Fayard, 1977.

Zamoyski, Adam - 1812: Napoleon's Fatal March on Moscow. Nova York, Harper Collins, 2004.

Fonte: Terra
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