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Irlanda, a Páscoa Sangrenta de 1916

19 mar 2018 - 15h53
(atualizado às 15h55)
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Ensina a história que os povos dominados ou as nações invadidas e submetidas a uma longa ocupação, sempre ficam no aguardo a espera de que o seu opressor veja-se em dificuldades no exterior, para então se insurgirem. A crônica dos irlandeses, desde os tempos remotos, foi pródiga em  episódios nos quais  os que lutavam pela independência da Ilha Esmeralda - apelido carinhoso que davam à pátria -, procuravam aproximar-se dos inimigos do Império Britânico em busca de auxilio. Queriam apoio em homens e armas para que eles pudessem se ver livres da presença da Coroa Inglesa. O alçamento ocorrido em Dublin em abril de 1916  não foi diferente, passando à historia como a Irish Uprise,ou ainda o Levante da Páscoa.

Cartaz irlandês a favor da independência
Cartaz irlandês a favor da independência
Foto: Reprodução

Atrás da Alemanha

Recém a Primeira Guerra Mundial eclodira em agosto de 1914 quando um mês depois um pequeno grupo de irlandeses influentes liderados por Sir Roger Casment tratou de estabelecer algum tipo de estratégia visando tirar proveito da situação. Com o Império Britânico envolvido num confronto de proporções internacionais contra as Potências Centrais (que iria se arrastar ainda pelos quatro anos seguintes), parecia ter chegado a vez dos que lutavam pela independência da Irlanda, a mais antiga colônia dos reis ingleses, ocupada havia 800 anos.

Oportunidades outras, no passado, de buscar apoio fora para lutar contra a Coroa Britânica,  por igual houvera. No século XVI, por exemplo, quando no trono  da Inglaterra estava Elizabeth I, uma rainha protestante em guerra contra a Espanha católica de Filipe II, os irlandeses se aproximaram tanto do partido católico existente na Inglaterra como dos espanhóis que planejavam invadir as ilhas brtiãnicas.

Por ocasião do desastre da Invencível Armada, ocorrido em 1588, muitos do barcos da esquadra de Filipe II,  que devido às tormentas vieram dar com os costados na Irlanda, foram lá recebidos como salvadores. E se a operação tivesse sido bem sucedida é certo que os irlandeses se alinhariam ao lado dos espanhóis para dar combate aos odiados ingleses.

O mesmo repetiu-se depois, no século XVIII, durante a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas (1789-1815), ocasião em que vários grupos de patriotas irlandeses procuraram apoio primeiro junto aos comissários jacobinos, e, em seguida, aos generais de Bonaparte, os verdadeiros inspiradores das rebeliões anti-britânicas de 1798 e de 1803.

Naquela ocasião os ingleses tiveram que desviar suas forças da frente anti-francesa para irem sufocar os intentos irlandeses em prol da independência. Assim é que quando novamente Sua Majestade Britânica estava em guerra em 1914, as lideranças nacionalistas reunidas em Dublin apressaram-se em arquitetar uma aliança contra “os inimigos do rei”, isto é, com o regime do Kaiser.

A atuação de sir Roger Casement

Sir R. Casement (1864-1916)
Sir R. Casement (1864-1916)
Foto: Divulgação

Quem teve naquela ocasião um papel de ativo articulador na aproximação do movimento nacionalista irlandês com o governo do IIº Reich alemão foi sir Roger Casement. Como ex-integrante do English Foreign Service, nascido em Sandy Cove,  na Irlanda, em 1864,  ainda que de pai inglês, ele foi visto como o homem certo para a missão que então empreenderam. Sir Roger, um ativo defensor dos direitos humanos, tornou-se célebre, quando cônsul,  por ter denunciado as atrocidades cometidas pelos colonialistas contra os nativos, tanto  no Estado Livre do Congo como   na Amazônia peruana ( na zona de extração da borracha), o que lhe valeu notoriedade internacional e o próprio titulo de sir.

De volta a Dublin quando aposentado por razões de saúde em 1912, depois de servir no Rio de Janeiro,  Casement logo deixou-se envolver pelos grupos nacionalistas irlandeses engajados na causa da independência.

Irlandeses estavam divididos

Todavia a tese de buscar apoio junto a Guilherme II estava longe de ser consensual entre eles. Tanto assim que John Redmond,  outro eminente líder, chefe do histórico Irish Nationalist Party, a agremiação fundada pelo celebrado parlamentar Charles Parnell,  além de aceitar transferir a luta pela independência para depois da guerra, conclamara os seus compatriotas a que se apresentassem para lutar ao lado dos britânicos. Para tanto já haviam formado os Irish Volunteers, os Voluntários Irlandeses (uns 200 mil inscritos), todos sensibilizados por uma promessa que lhes fora feita.

O motivo disto, dessa inesperada adesão irlandesa ao secular inimigo, é que o governo britânico, já escaldado, havia concordado em sentar-se numa mesa de negociações logo que a guerra contra as Potencias Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia) fosse vencida para, então, resolver definitivamente a questão do Home Rule (o governo irlandês independente). Nem todos,todavia, acreditaram na promessa britânica. Deduziram que ocorreria bem o contrário. Perguntavam qual razão, suspeitaram eles, levaria o Império  vitorioso numa guerra mundial a ceder frente aos patriotas irlandeses? Não fazia sentido.

Entre os desconfiados das juras inglesas estava uma pequena organização clandestina denominada Irish Republican Blotherhood , a Irmandade Republicana Irlandesa, fundada em 1858,   da qual Casement fazia parte. Justamente por suas qualificações, o desembaraço que desenvolvera nas funções de diplomata, é que decidiram que ele seria o representante deles junto à Alemanha Guilhermina.

Iniciado o conflito, não tardou a que ele partisse em outubro de 1914 para uma longa viagem à Berlim, tendo  antes passar por Nova York, visto que naquelas alturas, com a guerra em andamento,  as ligações normais  com a Alemanha estavam rompidos. O contanto inicial com a diplomacia germânica fora promovido através de uma organização de irlandeses norte-americanos, a Clan na Gael, cujo chefe era um tal de John Devoy.

A missão Casement

A missão de Casement concentrava-se em obter ajuda em armas e em oficiais especialistas, preparados no adestramento dos futuros insurgentes de uma guerra de guerrilhas contra a ocupação inglesa. Os alemães, inicialmente, foram céticos. Não viam qualquer possibilidade de sucesso naquela proposta. Entretanto, não podiam frustrar as expectativas daqueles que vinham lhes pedir apoio. Assim é que finalmente decidiram despachar uma carga de fuzis, uns 20 mil, no lugar dos 200 mil solicitados por Casement, bem como algumas metralhadoras e caixas de munição.

Estimularam ainda a que os soldados aprisionados por eles que serviam na Irish Brigate, aderissem ao plano. Porém, somente 60 deles se ofereceram a Casement. Para disfarçar a operação que se daria nas águas patrulhadas pelos britânicos, os alemães camuflaram um barco mercante como se fora de origem e tripulação norueguesa, dando-lhe o nome de “Aud Norge”, entregando-o ao comando do capitão Karl Spindler. O barco teria ainda como acompanhante  um submarino, o U-19, que seria a sua sombra, protegendo-o de uma possível abordagem ou de qualquer outro imprevisto. 

Ultrapassando o bloqueio feito pela Royal Navy no Mar do Norte e na Irlanda, onde não levantou suspeitas devido a sua bandeira norueguesa.O capitão alemão, etretanto, frustrou-se. Por um problema de comunicação não conseguiu manter contato com ninguém em nenhum dos pontos da costa irlandesa que lhe haviam sido assinalados.

Terminou atraindo suspeitas dos vigilantes, sendo obrigado a render-se para uma belonave britânica. Antes disso, a tripulação conseguiu explodir a carga. Casement, por sua vez, trazido com mais dois companheiros da Irmandade Republicana pelo submarino, foi deixado na baia Ballyheige, na costa de Kerry, no sudoeste da ilha, onde não tardou a ser preso no dia 21 de abril de 1916 pela guarnição local. A operação toda redundara num fiasco .(*)

(*) O episódio do desembarque nas praias das caixas dos fuzis trazidos pelos alemães, que no fim não se concretizou, foi cinematograficamente aproveitado pelo diretor britânico David Lean, no seu filme Ryan´s daugther ( “A filha de Ryan”, de 1970), tornando-se uma das maiores cenas de ação jamais filmadas.

Dublin em armas

Mesmo sem o apoio alemão, os preparativos para a sublevação já estavam adiantados em Dublin nos primeiros meses de 1916. Para viabilizar ao que depois denominaram de Easter Rising (o Levante da Páscoa) formaram uma aliança entre várias associações patrióticas tais como: os Voluntários Nacionais, o Exército Irlandês dos Cidadãos, os Rifles da Hibérnia, o Fianna Éireann, o Cumann na mBan e os Foresters. 

As mulheres se fizeram representes na conspiração por meio da condessa Markiewicz, que apesar do nome aristocrático era irlandesa e militante socialista.

Às 11 horas da manhã do dia 24 de abril de 1916, vários pontos estratégicos de Dublin foram repentinamente ocupados pelos mil e poucos insurgentes que compunham o Civil Army, o Exército Civil. Nada ocorreu no campo, pois os 32 distritos do interior da Irlanda não se envolveram, limitando-se a ação à capital.

Mesmo tendo conseguido por as mãos em algumas armas, os rebeldes não tiveram sucesso em tomar de assalto o The Castle, o Castelo, o conjunto de edifícios construídos ao redor da Torre Normanda (de 1226), prisão política e sede da Yard local. O Castle passava por ser a Bastilha dos dublinenses, símbolo do domínio e da opressão britânica sobre a nação.

Os patriotas do Exército Civil afixaram uma faixa no edifício do Sindicato dos Trabalhadores do Transporte da Irlanda que lhes servia como QG com os dizeres “We serve neither King nor Kaiser”( Não servimos nem ao rei nem ao kaiser)

Num primeiro momento a pequena tropa inglesa local, uns 400 soldados, não foram suficientes para contê-los.Mas cinco dias depois a maré reverteu. O governo britânico, envolvido nas grandes batalhas no território francês, não poderia protelar uma operação de cauterização na sua retaguarda insubmissa. Então, de 18 a 20 mil homens desembarcaram na Irlanda para por fim ao levante nacionalista.

Batalha em Dublin

A capital logo sucumbiu ao verdadeiro dilúvio de uniformes cor de mostarda do exército imperial que levou tudo por diante. Em apenas cinco dias de combate no total da operação repressiva somaram-se 450 mortos e 2.614 feridos, sendo que 254 eram civis e 64 patriotas insurgentes. Uma autêntica batalha fora travada nas ruas e edificações da velha cidade. Mais ou menos a metade dos prédios centrais de Dublin foram arrasados pelos tiros da artilharia britânica. A capital dos irlandeses foi assediada como se fora uma fortaleza alemã.

Os insurgentes haviam lido, nas escadarias do Correio Geral de Dublin, uma declaração de independência assinada por sete membros do Conselho Militar da Irmandade Republicana - a cabeça do alçamento (Padraig Pearse, intitulado Presidente Provisório,  James Connolly, Thomas Clarke, Thomas MacDonagh, Sean MacDermott, Joseph Plunkett e Eamonn Ceannt).

Ocorreu que o gesto heróico deles caiu num vazio. Pouca gente aderira. A maioria da população dublinense não concordou com aquilo, acreditando que não era o melhor momento de enfrentar os ingleses em guerra total. Tanto assim que, quando os soldados britânicos desfilavam com os rendidos pelas ruas de Dublin, a plebe local os vaiou e imprecou o tempo todo contra eles.

“Fuzilem-nos todos!”

Em Londres, os clamores contra os insurretos de abril foram unânimes. Os irlandeses que haviam pego em armas contra o rei eram traidores e deviam expiar com a vida o ato de Judas que praticaram. O governo foi implacável, particularmente com os sete signatários da proclamação republicana. Retirados das celas da célebre prisão de Kilmainham Gaol foram submetidos a cortes marciais sumárias, sem direito à apelação. Todos os sete foram fuzilados e suas sentenças de morte somente tornadas públicas depois deles terem sido executados.

Destino particularmente cruel teve James Connolly, o comandante-geral da brigada que liderou o levante, pois mesmo gravemente ferido foi conduzido amarrado a uma cadeira e posto em frente ao pelotão de fuzilamento. O executaram no dia 12 de maio de 1916.

Mas o alçamento, ainda que impopular, trouxe grandes resultados para a Irlanda. A partir dele ficou demonstrado a todos que a continuidade do domínio britânico - começado no longínquo ano de 1169 - era inaceitável. Finda a guerra, eleito um novo governo britânico deu-se início aos trabalhos que conduziram a Irlanda finalmente à liberdade, pondo término há 800 anos de submissão.       

Prisioneiros marchando sob apupos dos compatriotas (abril de 1916)
Prisioneiros marchando sob apupos dos compatriotas (abril de 1916)
Foto: Reprodução

Os “Diários Negros” de Casement

Encarcerado na prisão londrina de Pontoville, depois de acusado de traição, sabotagem e espionagem contra a Coroa, Casement aguardou a vez da sua execução. Em sua defesa alegou que não aceitava a pecha de ser traidor visto que não havia aderido “ao inimigo do rei” ,pois, para ele,  “ lealdade é um sentimento, não uma lei” e que ele entre ser obediente ao rei da Inglaterra ou lutar pelo seu povo  ele preferira ficar com o povo da Irlanda.

Como Casement era um homem da elite, ex-integrante do refinado corpo de diplomatas da Coroa, o serviço secreto achou por bem infamá-lo. Deram para circular entre os altos funcionários e outros escolhidos, trechos selecionados de um diário dele, apelidado sinistramente de “Black Diaries”(O Diário Negro), no qual ele teria registrado suas aventuras homossexuais tidas com jovens nativos quando era representante consular em lugares remotos. Não deixa de ser espantoso que alguém, com as responsabilidades dele no movimento insurgente, mantivesse um tipo assim de confissão altamente comprometedora. Até hoje há controvérsia sobre a autenticidade do diário, sendo que em épocas mais recentes foi por duas vezes submetido às inconclusas  analises dos peritos. (**)

Somente em 1965 seus restos mortais foram transladados para a Irlanda, sendo acolhidos no cemitério de Glasnevin, em Dublin.  

(**) Não foi somente Casement a vítima desse tipo de contra-propaganda difamatória arquitetada pelos ingleses. Trinta anos antes, em 1887, o Time de Londres reproduzira uma politicamente comprometedora carta privada de Charles Parnell, o maior nome dos irlandeses que lutava no parlamento em favor da Homem Rule, epístola  que depois provou-se ser uma fraude.

O site recomenda

'Irish Rebellions 1798-1916' da historiadora Helen Litton, editado pela Wolfhound Press, Dublin, Irlanda, 1998. Trata-se de um livro fartamente ilustrado das rebeliões irlandesas de 1798, 1803, 1848, 1867, e, finalmente, a de 1916, que foi a derradeira antes da obtenção da Home Rule, em 1920.

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Fonte: Especial para Terra
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