Gil e Caetano aos 70: ouça músicas que ajudam a entender exílio
Era uma fase difícil da história do Brasil. Ditadura militar, direitos políticos e civis suspensos e forte repressão. Vários dos maiores artistas brasileiros da época foram presos e exilados, como forma de não articularem as massas contra o regime. Gilberto Gil, que faz 70 anos nesta terça-feira, e Caetano Veloso, que completa a mesma idade no dia 7 de agosto, ficaram de 1969 a 1972 em Londres, longe da família, dos amigos e dos fãs. Lá, os baianos tiveram contato com culturas e influências muito diferentes. O paralelo entre a imersão em um novo mundo e a preocupação com a vida do Brasil é tema de grande parte da produção gerada por Gil e Caetano na temporada inglesa.
A música, como manifestação cultural, reflete o contexto sociopolítico em que se insere. Para Luís Augusto Fischer, coordenador do Núcleo de Estudos da Canção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ter contato com essa obra é ver uma das experiências estéticas mais marcantes da história do Brasil. "Além de ter esse depoimento de época - às vezes realista, às vezes alegórico -, tu entras em contato com uma forma artística altamente elaborada, sofisticada e, para mim, permanente tanto quanto qualquer outra obra de arte", afirma Fischer.
O diretor do Departamento de Letras e Coordenador do Núcleo de Estudos em Literatura e Música da PUC do Rio de Janeiro, Julio Diniz, explica as semelhanças entre as obras dos dois artistas. Para ele, "existem três pontos marcadamente em comum: o sentimento do exílio, a presença do imaginário inglês e o uso da língua inglesa em várias canções". Conheça mais sobre o período a partir de cinco músicas desses artistas.
London London (Caetano Veloso - 1971)
Composto durante o exílio, o disco Caetano Veloso - o segundo do músico que leva seu nome -, tem sete músicas, das quais a maioria foi composta em inglês. Sobre a segunda canção do disco, London London, Fischer explica que há diversas nuances possíveis de serem captadas nessa peça, tanto na letra, quanto na sensação geral que ela passa. "Ele diz 'eu ando por aqui, ninguém tem nada a ver comigo, eu não tenho nada a ver com isso (...) eu não entendo o que tá acontecendo, ninguém quer me entender'. É uma sensação de estranhamento radical", diz. O professor segue ressaltando impressões na canção: "em London London, o que tem de mais marcante é uma coisa sutil, é a diferença cultural entre o eu que fala naquela canção e o ambiente em que ele está, porque tudo é estranhamento".
Nega (Photograph Blues - Gilberto Gil - 1971)
Gilberto Gil já relatou em diversas entrevistas o grande encantamento que tinha com a efervescência cultural na Londres dos anos 1970. O rock e o reggae - estilos com os quais os brasileiros haviam tido pouco contato na época, passaram a povoar o imaginário dos dois conforme andavam pelas ruas da cidade. Tanto Fischer quanto Diniz apontam uma atitude mais positiva de Gil em relação àquele contexto, refletida em sua obra. Fischer conta que Gil trouxe para sua música muitas dessas influências, clamando ser o primeiro brasileiro a gravar reggae e também tendo incorporado a guitarra elétrica, instrumento rechaçado até então pela sua geração de artistas.
Maria Bethânia (Caetano Veloso - 1971)
"Everybody knows that our cities were built to be destroyed". Assim começa a música Maria Bethânia, em que Caetano pede uma carta para sua irmã, querendo saber se as coisas estão melhorando no Brasil. "Ele dialoga de uma maneira sensível e reflexiva com a sensação desconfortável da vida longe do Brasil, a saudade vital da família e dos amigos e, principalmente, o lugar solitário de um tropicalista na nublada Inglaterra", explica Diniz. O professor ainda realça que "ela é um retrato mais que perfeito da ligação entre os dois irmãos e a certeza de que Bethânia representava o lugar da resistência afetiva, da memória familiar e da força da nossa cultura".
Nine Out of Ten (Caetano Veloso - Transa - 1972)
Depois de voltar da visita ao Brasil, quando foi interrogado por longas horas, Caetano chegou a Londres para gravar o disco que viria a ser um dos mais importantes da história da música: Transa. Reeditado e relançado 40 anos depois, o álbum traz uma fase menos melancólica de Caetano, um olhar que absorve mais as influências entregues pelo tempo em Londres, como em Nine Out of Tem, quando ele conta sobre como conheceu o reggae descendo a Portobello Road, cita Fischer. Esse disco foi gravado em Londres com alguns dos grandes músicos brasileiros da época.
Crazy Pop Rock (Gilberto Gil - 1971)
A guitarra elétrica é um dos elementos mais marcantes de Crazy Pop Rock. Composta em parceria com Jorge Mautner, esta música é um grande exemplo de como a obra de Gil foi influenciada pelo tempo em Londres. O uso desse instrumento era completamente negado pela jovem MPB da época, mas Gil a incorporou depois de conhecer músicas da capital inglesa. Fischer explica: "o Caetano e o Gil têm uma atitude que é mais de mistura mesmo, eles acolhem toda a variedade, temática ou instrumental. O Gil foi o primeiro cara a gravar reggae, ele se orgulha disso, ele se orgulha de ter sido o primeiro cara a citar a Coca-Cola numa canção".