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Escolas aprendem a pôr resiliência no currículo

Pandemia intensifica a necessidade de educadores ensinarem o conceito, que já era fundamental para enfrentar as adversidades encontradas no colégio e fora dele

20 set 2020 - 12h10
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Durante o percurso escolar, em algum momento, toda criança vai enfrentar uma ou outra dificuldade. Pode ser para fazer amigos, para aprender um conteúdo, para lidar com problemas da vida pessoal - ou para enfrentar uma pandemia sem deixar de estudar. Por isso, entre as habilidades socioemocionais a serem desenvolvidas pela escola, a resiliência passou a ser cada vez mais valorizada.

Enquanto aprendia a ler e escrever durante a pandemia, Gael, de 7 anos, aprendeu também a perseverar e a se adaptar. Ele tinha enfrentado dificuldades de alfabetização no 1.º ano. Os pais decidiram trocá-lo de escola; mas um mês após o início das aulas na Camino School, teve de ir para casa. "Na hora que começou a quarentena, a gente ficou com receio. Ele já não tinha aprendido no 1.º ano com aulas presenciais, sabia só o próprio nome, como seria no digital? Mas ele acabou o primeiro semestre alfabetizado", comemora o pai, o empresário Marcos Furquim.

Segundo o pai, o trabalho das professoras para se superar e encontrar novas formas de estarem próximas fizeram a diferença no processo. "Elas telefonaram, fizeram aula particular por teleconferência. O Gael entendeu que tinha o apoio das professoras e entendeu que o esforço traz resultados. Gostou de ser elogiado, de ser bom aluno e começou o segundo semestre com uma postura diferente", conta Furquim.

A professora do Gael, Helena Whitelock, reconhece o empenho do menino e ressalta que o bom aprendizado só foi possível graças ao apoio da família. "Nesse caso a relação com os pais foi fundamental; a gente conseguiu estabelecer uma confiança mútua. A parceria entre família e escola sempre foi necessária, mas agora na pandemia ficou ainda mais evidente", afirma Helena.

Força. Sentir-se amparado, cuidado e amado serve como a base para que as crianças desenvolvam a resiliência, explica a diretora da Camino School, Letícia Lyle, que fez seu mestrado com a temática de educação socioemocional. "Um dos componentes da resiliência é a fé. Não a fé religiosa, mas no sentido de acreditar que dá para melhorar. Você precisa ter sido cuidado e ter se sentido amado, para ganhar essa potência. A resiliência é uma gordurinha de amor para enfrentar o mundo, aquela sobra que te faz aguentar, que te faz ver que tudo é um ciclo", afirma a educadora.

A capacidade de superar as adversidades é uma característica que a escola deve promover para vida, mas que traz repercussões também para o lado acadêmico. Um estudante resiliente persevera mesmo com resultados ruins, quando tem de estudar uma disciplina de que não gosta. "Aprender dói, porque exige sair de um lugar que a gente conhece, confortável, para ir para outro", afirma.

Como todas as demais habilidades socioemocionais, a capacidade de enfrentar obstáculos sem desistir não se constrói da noite para o dia. Ela deve constar no currículo, de preferência ao longo de vários anos. "Tem de ter um espaço e um tempo reservados. Tem de estar nas rotinas, nas relações. A escola tem de trabalhar constantemente. Isso não significa necessariamente ter uma aula de habilidades socioemocionais, embora possa ser proveitoso ter tempos para o aluno conhecer meditação, resolução de conflitos", diz a diretora.

Dificuldade. Para João Sinotti, de 17 anos, a resiliência vem se construindo ao longo dos anos. Na primeira escola que frequentou, ele sofreu bullying por ter síndrome de Tourette - é uma perturbação neurológica crônica que provoca espasmos e tiques, mas não afeta a capacidade de aprendizado. Quando chegou ao Colégio Mary Ward, ainda no fundamental 1, ele não queria estudar. Muitas vezes se levantava no meio da aula, não conseguia se concentrar. Também se isolava dos colegas. "Eu tinha problema de interação no início, era antissocial, mas porque tinha medo de interagir com as pessoas", conta.

Com o passar dos anos, sentindo-se querido, ele mudou de comportamento, passou a se dedicar aos estudos e fazer amigos. "Tudo isso graças à paciência que professores tiveram. Perceberam minhas dificuldades e me colocaram para fazer prova separado, por exemplo. Em nenhum momento a escola foi hostil comigo", relata Sinotti. No 9.º ano, ele foi escolhido por unanimidade para ser o orador da turma. "Fui evoluindo como ser humano, e também como estudante", afirma o aluno.

Cleonice Loureiro Martini Lopes, orientadora educacional do Colégio Mary Ward, diz que o fortalecimento emocional para superar adversidades pode demorar para apresentar resultados. "O trabalho costuma surtir efeito um ano depois. Mas a gente não pode desistir e não desiste. Nosso papel é lutar por eles", diz a educadora.

A escola costuma acolher sem preconceitos alunos com transtornos, deficiência e dificuldades de aprendizagem. Para a orientadora, com a convivência todos saem mais fortes. "Os colegas têm de aprender a lidar com o diferente, com algo novo. E passam a respeitar quem tem necessidades especiais sem vê-los como coitadinhos. Assim, também ficam mais preparados para a vida."

Outra forma de ajudar a desenvolver a resiliência dos alunos é ir aumentando os desafios gradativamente, sem forçar demais de uma só vez, para que ninguém desanime. Essa foi a receita do Centro Educacional Pioneiro para continuar as atividades durante a pandemia. "Em todas as etapas do ensino, tudo foi bem gradativo e com ajuda da família. Mesmo no infantil, a etapa mais desafiadora, enviamos um guia de atividades e fizemos encontros síncronos, mas com grupos menores, para ter interação. Gradativamente fomos aumentando o volume das atividades e dos grupos", explica Irma Akamine Hirai, diretora do colégio.

No segundo ciclo do fundamental e no ensino médio, diz a diretora, as atividades acadêmicas já seguem um ritmo muito parecido com o previsto para o ensino presencial, de antes da pandemia. Mas isso não significa que os desafios acabaram. "Tenho jovens com ansiedade, depressão. Tenho famílias com muito medo, com pessoas que adoeceram. Temos famílias que os pais são da área da Saúde e estão longe dos filhos para preservá-los", cita. Assim, como deseja que os estudantes não desanimem, Irma tampouco desanima: a educadora olha para os desafios à frente com esperança. "Vamos passar a cuidar muito mais da saúde mental e emocional. Temos de tentar pegar toda essa experiência e encontrar nela uma luz."

Estadão
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