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Mulher dribla algoritmo para ter voz no mercado masculino

Criadora de startup troca descrição em rede de 'fundadora' para 'fundador' e vê resultados de pesquisa com seu nome crescerem 800%; para professora de programação, algoritmo carrega vieses inconscientes de quem o criou

9 mar 2021 - 09h10
(atualizado às 10h25)
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Na contramão do que se pode esperar de uma matéria de carreiras na semana do Dia Internacional da Mulher, as próximas linhas vão mostrar como pode ser mais interessante para você, mulher, colocar o nome do seu cargo ou profissão no gênero masculino em plataformas como o LinkedIn. Há alguns meses, Jhenyffer Coutinho - fundadora da startup Se Candidate, Mulher - fez um post na rede social corporativa em que explicava como ao mudar sua descrição de 'fundadora' para 'fundador' a ocorrência de seu perfil em resultados de pesquisa aumentou 800% em uma semana.

A questão passa por uma coisa pouco discutida no Brasil, que é a linguagem neutra de gênero nos processos de recrutamento e seleção, segundo Jhenyffer. Na língua portuguesa, o termo neutro para muitas profissões ou cargos é, na verdade, o singular ou plural do termo no gênero masculino: empreendedor(es), fundador(es), vendedor(es), consultor(es), desenvolvedor(es) e assim por diante.

No livro Invisible Women (Mulheres Invisíveis, em tradução livre), a jornalista e escritora inglesa best seller Carolina Criado Perez explica a problemática sobre a linguagem neutra de gênero. "Numerosos estudos em diversos idiomas ao longo dos últimos 40 anos descobriram consistentemente que o que é chamado de 'masculino genérico' (usando palavras como 'ele' de uma forma neutra em relação ao gênero) não é, na verdade, lido genericamente. É lido predominantemente como masculino", diz.

A autora continua explicando o impacto do uso do masculino genérico para as mulheres. "Quando o masculino genérico é usado, é mais provável que as pessoas se lembrem de homens famosos do que de mulheres famosas; para designar uma profissão dominada por homens; para sugerir candidatos masculinos para empregos e nomeações de políticos. As mulheres também são menos propensas a se candidatar e menos propensas a ter um bom desempenho em entrevistas para empregos que são anunciados usando o masculino genérico", diz, em um dos trechos do livro.

Sobre a quase ausência de discussões em relação à linguagem neutra de gênero, Carolina Perez é categórica. "Em face de décadas de evidências de que o masculino genérico é tudo, menos claro, linguistas em muitos países continuam a insistir que isso é puramente uma formalidade cujo uso deve continuar pelo bem da… clareza."

Retomando a experiência de Jhenyffer Coutinho ao mudar sua descrição para "fundador" - a partir daqui esse texto será escrito no masculino genérico - , o(a) empreendedor(a) conta que, ao comprovar o aumento de 800% na ocorrência de seu perfil em resultados de pesquisa no LinkedIn na primeira semana e de 200% ao longo do mês, mantendo este índice até o momento, ela passou a dica para as mulheres que fazem parte de sua comunidade na rede, a Se Candidate, Mulher.

"Temos muitas mulheres dessas áreas predominantemente masculinas e elas começaram a testar essa mudança. Foi uma 'surpresa' para elas (entre aspas porque a gente já esperava), que as ocorrências de seus perfis em resultados de pesquisa na plataforma foram maiores a partir do momento em que elas começaram a usar o cargo ou profissão no masculino", conta. Ela completa dizendo que "as empresas acabam perdendo um monte de profissionais mulheres porque elas não aparecem nas listas. As pessoas acham que não tem mulher desenvolvedora, mas ela está buscando por 'desenvolvedor'".

Algoritmo das plataformas

Além do fato de o gênero masculino ser utilizado como linguagem neutra na língua portuguesa, há outra questão importante a ser levada em conta e que também passa pela predominância do gênero masculino: quem programa os algoritmos. No Brasil, segundo o senso da educação superior divulgado pelo Inep, apenas 13,6% das pessoas que concluíram cursos de graduação na área de Computação e Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) em 2019 são do gênero feminino.

Somado ao dado, o raciocínio "mas todos são pessoas, não devemos distinguir", muitas vezes disseminado no mercado de trabalho, cabe perfeitamente nesta discussão. Isso porque as pessoas carregam consigo o que o(a) desenvolvedor(a) e professor(a) de programação Simara Conceição denomina como "viés inconsciente".

"Os sistemas e os algoritmos são criados por pessoas, pessoas que carregam viés inconsciente, como sexismo, racismo... Quanto menos diversidade a gente tem nos times que programam esses algoritmos, mais viés inconsciente eles vão ter. Quanto mais diversidade a gente traz para um time de programação, mais diversa é a nossa solução, mais problemas complexos a gente consegue resolver e menos preconceito ela vai carregar", diz Simara. "Exemplo disso é, inclusive, o fato de que muitas pessoas envolvidas em processos de seleção e recrutamento buscam por 'desenvolvedor' em vez de 'desenvolvedora'. Ela está empregando seu viés inconsciente na hora de fazer apenas a busca com o termo masculino."

O(A) desenvolvedor(a) ainda ressalta que outra forma de driblar o algoritmo em plataformas do tipo é usar o termo em inglês, língua que consegue empregar o gênero neutro, como entrepreneur (empreendedor) ou founder (fundador) para mulheres e homens. "Mas quantas pessoas no Brasil falam inglês fluentemente para, na hora de fazer essa busca, usar a língua?", provoca Simara.

Sobre o uso dos termos em inglês, Jhenyffer ressalta que, como o LinkedIn é uma plataforma norte-americana, que tem a linguagem neutra de gênero, transportada para o mercado brasileiro e, consequentemente para a língua portuguesa, isso pode ter se perdido. Jhenyffer também ressalta que algumas plataformas criam os algoritmos usando apenas o radical da palavra, como desenv, por exemplo no caso do termo desenvolvedor(a).

Do lado de quem usa, Jhenyffer Coutinho auxilia profissionais mulheres a driblar o algoritmo mudando seus cargos para o gênero masculino. Do lado de quem programa, Simara Conceição vai na raiz, byte por byte, como diz. "Quando cada uma de nós consegue uma vaga e vai para uma empresa e cria soluções para problemas complexos, eu acredito que a gente está hackeando o sistema, sim. Tenho uma amiga também programadora que fala que, no nosso caso, a gente está quebrando o sexismo e o racismo byte por byte."

Para nunca esquecer: mulheres na computação desde 1842

Ada Lovelace

Nascida em Londres no ano de 1815, a única filha do poeta Lord Byron é a primeira programadora do mundo. Ada Lovelace trabalhou com o cientista Charles Babbage e foi responsável pela criação do primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina entre 1842 e 1843.

Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson: as mulheres "computadores" da Nasa

As matemáticas norte-americanas triunfaram em diferentes áreas da Agência Espacial Norte-americana na década de 1960. Katherine Johnson foi a responsável por checar os cálculos da missão Freedom 7, que proporcionou que o astronauta John Glenn desse voltas na órbita da Terra. No ano da missão, 1962, os primeiros computadores acabavam de chegar na Nasa, mostrando-se ainda não confiáveis.

Dorothy Vaughan foi a supervisora da equipe de mulheres que dominou a programação do computador IBM recém chegado à Nasa. Dorothy aprendeu a usar a máquina sozinha. Mary Jackson foi a primeira engenharia aeroespacial da Nasa e teve que pedir autorização em um tribunal para frequentar as aulas, até então frequentadas apenas por brancos. Além de cravarem seus nomes na história da computação mundial, as três matemáticas negras tiveram que driblar a segregação racial ainda vigente nos EUA. O filme Estrelas além do Tempo conta a história das três mulheres.

Xia Peisu

A chinesa graduada em engenharia elétrica e com doutorado em telecomunicações no Reino Unido foi a principal mente por trás do ensino em computação no país (com a fundação da Academia Chinesa de Ciências - CAS) nos anos 1950. Na década seguinte, Xia Peisu construiu o primeiro computador da China, o Model 107.

Edith Ranzini

Formada em engenharia elétrica pela USP em 1969, Edith estava na equipe que desenvolveu o primeiro computador 100% brasileiro, o 'patinho feio', em 1972. Edith foi uma das responsáveis por iniciar os estudos e pesquisa em computação no Brasil. Hoje, ela é professora emérita do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais (PCS) da Poli/USP.

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Estadão
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