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Ex-presidiárias recebem capacitação para entrar no mercado de trabalho

Preconceito é maior barreira para conseguir emprego, e falta de oportunidade leva a reincidência de 42%; programas como Parças e Responsa ajudam a mudar história

30 out 2021 - 05h11
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Há pouco mais de três anos fora da prisão, Rosenilda Santos, de 40 anos, está prestes a concluir a graduação em Recursos Humanos, curso que começou ainda no sistema penitenciário. A vontade de retomar os estudos surgiu nos primeiros meses da pena de quase cinco anos que cumpriu no cárcere na cidade de São Paulo. "Foi o pior momento da minha vida, mas procurei ao máximo me ocupar com cursos e concluir meus estudos. Queria que esse tempo passasse o mais rápido possível", relembra.

Se a oportunidade de ingressar no ensino superior veio ainda dentro do presídio, também foi durante esse período que Rosenilda descobriu o trabalho da Parças Developers School, uma startup de educação que capacita pessoas egressas do sistema penitenciário para atuar na área de tecnologia da informação (TI).

"Como aprendi na faculdade que os setores estão cada vez mais interligados, fiz inscrição no curso para me qualificar e decidi que quero trabalhar com as duas áreas." Para ela, no entanto, que ainda concilia os estudos com a criação de dois filhos, mais do que as dificuldades para se qualificar, o preconceito é um fator que pesa na hora de conseguir emprego. "Por melhor que seja o currículo, parece que o fato de já ter sido presa só fecha portas."

De acordo com o CEO e fundador da Parças, Alan Almeida, foi para reverter essa situação que a empresa foi criada, em 2017. "Eu trabalhava na área de tecnologia e via o quão vasto era esse mercado, com muitas oportunidades de trabalho, mas pouca mão de obra. A ideia foi juntar TI, qualificação e o acolhimento para jovens de periferia e adultos egressos do sistema prisional", pontua Almeida.

Levantamento da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação (Brasscom) aponta que, até 2024, o mercado brasileiro irá criar cerca de 70 mil vagas por ano para a área de TI. O País, no entanto, forma e qualifica, em média, 46 mil profissionais do setor a cada ano.

Para o CEO da Parças, além de gerar oportunidades para esse público, é preciso também trazer diversidade para a área de TI: "Observava profissionais vindo de um mesmo lugar, se vestindo de um mesmo jeito e com o mesmo tom de pele", comenta Almeida, que atribui a própria experiência de vida e o fato de ter um primo que passou pela Fundação Casa (que atende adolescentes em conflito com a lei) como fundamentais para a criação do seu projeto. "Venho de uma família monoparental e de periferia, um ambiente de muita opressão."

Carlos Lopes, CTO da empresa de marketing digital Raccoon, conta que fez parceria com a Parças e passou a contratar desenvolvedores de software nível júnior formados pela startup. "Investir nesse tipo de mão de obra ajuda a empresa a andar e causa impacto na sociedade. São cargos que podem mudar a vida de uma pessoa, que só precisa de uma oportunidade."

Falta de oportunidade pode empurrar pessoa para o crime

Dar (ou receber) uma oportunidade também foi o mote de Karine Vieira, de 39 anos, para fundar o Instituto Responsa. Entre idas e vindas, ela ficou presa 15 anos e, ao sair, queria voltar a estudar. "A primeira coisa que eu fiz quando saí foi tentar lembrar do que eu gostava. É tanto tempo na prisão que chega um ponto que a gente não reconhece mais nossas habilidades fora daquele mundo."

Karine concluiu o ensino médio e prestou vestibular. Conseguiu uma bolsa em uma faculdade particular e se formou em Serviço Social. Da experiência de vida e a partir da conclusão de que a falta de oportunidade é um incentivo para a entrada no crime, Karine fundou o Instituto Responsa, ONG que trabalha pela reinserção de egressos do sistema penal na sociedade e no mercado de trabalho.

Karine (em primeiro plano, de casaco e calça pretos, camiseta quadriculada) e egressos do sistema prisional ao final de uma palestra no Instituto Responsa.
Karine (em primeiro plano, de casaco e calça pretos, camiseta quadriculada) e egressos do sistema prisional ao final de uma palestra no Instituto Responsa.
Foto: Divulgação / Estadão

"Costumo falar que, na verdade, é uma inserção, é um primeiro contato com o mundo organizado, porque a maioria dessas pessoas sempre viveram numa realidade de exclusão social. Ao sair da cadeia, elas continuam como entraram, com baixa escolaridade e sem qualificação profissional."

Fundado em 2018, o Responsa auxilia os egressos com serviços básicos, que vão desde o auxílio com a regularização da documentação até atividades para prepará-los para o mercado. "São abordados temas como a postura em uma entrevista de emprego e o comportamento ideal para a convivência dentro das empresas. Também fazemos atividades profissionalizantes ministradas pelo instituto e entidades parceiras", explica Karine.

Em liberdade há pouco mais de cinco meses, Taires Lima, de 30 anos, é uma das egressas que passou recentemente pelo Responsa. Hoje atuando como atendente de telemarketing, ela lembra que ter encontrado o Instituto foi fundamental para "mudar de vida", como ela mesma define. "Fui presa com 18 anos, saí aos 20, mas voltei pra cadeia aos 24. São muitos os obstáculos para se conseguir um emprego formal. É claro que a pessoa tem que querer mudar, mas, se você não tem uma oportunidade, a tendência é voltar para a prisão." Ou, como resume Karine: "Se a sociedade não gerar oportunidade para quem saiu, o crime com certeza vai gerar".

Das cerca de 800 mil pessoas presas no Brasil hoje, ao menos 42% (cerca de 336 mil) são reincidentes, de acordo com estudo de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ou seja, a cada 10 pessoas presas no País, quatro já haviam sido presas pelo menos uma vez, ganharam liberdade, mas retornaram ao sistema penal.

Só no Estado de São Paulo, o número de encarcerados é estimado em 213 mil, e a taxa de reincidência, segundo o mesmo levantamento do CNJ, é próxima da média nacional: 41,4%. De acordo com Karine, a taxa de reincidência de quem passa pelo Instituto Responsa não chega a 3%.

Programa do governo de SP também ajuda

Para Ana Paula Nascimento, de 39 anos, a passagem pelo sistema penitenciário em 2017, ainda que curta (ficou detida cerca de 15 dias, até conseguir autorização para responder ao processo em liberdade por ter filhos pequenos) foi traumática.

"Logo depois que saí, fiquei um período recolhida em casa, não sabia o que fazer. Saía para procurar emprego e não conseguia, porque mesmo quem demonstrava interesse mudava de ideia depois que sabia dos antecedentes", conta.

A realidade começou a mudar quando ela conseguiu uma vaga no programa Diversidade à Mesa, do governo do Estado de São Paulo, que oferece atividades de capacitação em gastronomia para egressos e familiares da comunidade LGBTQIA+.

"Sempre encarei a culinária como um hobby, mas foi com a participação no programa que descobri a confeitaria como oportunidade de sustento", comenta Ana Paula, que hoje diz viver das encomendas de doces e bolos para festas, que são divulgadas em sua página no Instagram.

"O preconceito com quem já esteve preso sempre vai existir, mas recomendo que quem sai do sistema e está a fim de mudar de vida conheça seus direitos. Eu, por exemplo, não sabia que existia um órgão que pudesse dar orientações e ajudar na reinserção de quem saiu dos presídios", conta Ana Paula, em referência às Centrais de Atenção ao Egresso e Família (CAEFs), mantidas pelo governo de São Paulo.

De acordo a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), em todo o Estado existem hoje 48 CAEFs, que prestam assistência aos egressos do sistema penitenciário, como regularização de documentos, orientação jurídica e encaminhamento para cursos de capacitação profissional.

Até o momento, em 2021, já foram realizados 161.790 atendimentos pelas centrais espalhadas pelo Estado. No âmbito do programa Diversidade à Mesa, também segundo a SAP, já foram 63 capacitados, sendo 35 presos e 28 egressos.

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Estadão
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