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Coronavírus

Almoço nu

Minha primeira vez em um restaurante (durante a pandemia) foi rápida e cheia de ansiedade

13 jul 2020 - 03h11
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"Consigo sentir a tocaia se armando, sentir os movimentos da polícia lá fora mobilizando seus informantes demoníacos..." O trecho é a abertura do livro Almoço Nu, de William Burroughs, um dos clássicos da geração beat. Compartilhei esse sentimento de "tocaia se armando" e de "polícia lá fora mobilizando seus informantes" na minha primeira visita a um restaurante desde meados de março.

Nessa quarentena, tenho vivido de delivery e comida congelada. Por isso, confesso que, quando foi anunciada a reabertura parcial dos bares e restaurantes em São Paulo, eu me entreguei a um certo assanhamento.

Um assanhamento que me veio acompanhado de culpa e alguma vergonha. Como manter a responsabilidade, reconhecer a tragédia que vivemos, ter empatia pelo próximo e, ao mesmo tempo, admitir que tudo o que eu mais queria agora era me "abundar" em uma cadeira de restaurante? Como juntar minha fome com a vontade de comer (fora)?

Como sair de casa, sentar em um restaurante (ou um bar) e não parecer um idiota do Leblon ou ser confundido com um negacionista desses que brotam do chão todos os dias?

Difícil. Muito difícil. Mas eu arrisquei. Por acaso, estava na Alameda Santos, na região da Avenida Paulista, no meu horário de almoço. Na ocasião, avistei um restaurante/bar de esquina, aberto, ventilado e tentador.

Antes que me entregasse a aventura de um almoço em público, passei três vezes pelo estabelecimento. Avaliei o terreno como, imagino, um criminoso deve fazer antes de executar um roubo. Calculei a distância entre as mesas, o número de clientes e os equipamentos de segurança de cada funcionário.

Segurei a respiração e, com frio na barriga, decidi entrar. Tal qual um astronauta adentrando a atmosfera lunar pela primeira vez:

- Pois não...

- Mesa para um.

- Fique à vontade...

(Diálogo em câmera lenta)

Escolhi a mesa que, de acordo com minha própria medição, estaria mais afastada de qualquer jato de covid. Me sentei sem encostar em quase nada. Observei o álcool em gel, os talheres dentro de envelopinhos, o cardápio em QR Code e, só assim, minha respiração foi voltando ao normal.

Na mesa mais próxima (dois metros de distância), três amigas conversavam. Minha vontade era a de pedir silêncio, exigir que colocassem a máscara ou deixassem o assunto para um papo de WhatsApp. Claro, me contive. Calei, mas fiquei imaginando aqueles perdigotos bailarinos sobrevoando o ambiente.

Outra dificuldade foi a de saber o momento certo de tirar a máscara e o que fazer com ela. Esperei meu prato chegar. Não sabia se deixava a máscara no queixo, pendurada na orelha ou do ladinho do prato. No queixo, acho, a máscara viraria um babador nojento. Mas deixar em cima da mesa é higiênico? Recomendável? Não seria uma boa ideia ter um porta-máscara nas mesas? Não sei.

Ao mesmo tempo, como se tratava de um estabelecimento aberto, tive de lidar com os olhares de reprovação das pessoas do lado de fora, das pessoas muito melhores do que eu, com um padrão de comportamento muito mais elevado, que pareciam me julgar. E se algum dos infectologistas que eu já entrevistei aparecesse do nada? Ai, Jesus. Que vergonha!

Bom, provavelmente, ninguém estava nem aí, mas na minha cabeça eu era um dos culpados pelo caos da covid no Brasil. Quase pedi a conta depois da segunda garfada, mas...

Chegou o chope. Sim, não presto, pedi um chope. Gente, esse foi meu primeiro chope desde meados de março. Não, não sou um quarentenado abstêmio. Bebo em casa. Tomo cerveja e drinques que eu mesmo preparo ou que peço por delivery. Mas eu nem lembrava direito a sensação de tomar um chope...

E gente, deixa eu falar, o primeiro gole no chope da flexibilização foi como um beijo da Scarlett Johansson (como eu imagino um beijo da Scarlett Johansson). Me deu uma coisa, um siricotico, uma esperança, uma certeza que a vida ainda vai voltar ao normal, que todo mundo vai poder tocar seus projetos, que a gente vai voltar a fazer planos e que eu devia tomar dois.

Tomei dois. E foi só. Foi um momento de vida, uma fagulha de libido bobinha, mas bem-vinda.

Minha primeira vez em um restaurante (durante a pandemia) foi rápida e cheia de ansiedade. Foi desconfortável do ponto de vista psicológico, mas também foi recompensadora (a comida estava ótima e o atendimento não falhou em nenhum protocolo de segurança). Foi uma experiência boa e ruim ao mesmo tempo. Foi um almoço nu. E talvez seja assim mesmo durante muito tempo.

Estadão
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