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Sebastião Salgado lança campanha, com música de Gilberto Gil, em defesa da restauração florestal

'Não basta só proteger as florestas, temos obrigação de recuperar o que foi destruído', defende o fotógrafo que se tornou ambientalista após decidir recuperar a Mata Atlântica em fazenda da família que estava completamente degradada

22 fev 2021 - 11h03
(atualizado em 24/2/2021 às 12h24)
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No fim da década de 1990, quando Sebastião Salgado e sua mulher, Lélia Wanick, herdaram a fazenda que tinha sido do pai do fotógrafo, a paisagem que receberam era desoladora. A propriedade, que em seu auge chegara a abrigar 2 mil cabeças de gado, não tinha mais condições para dar suporte nem para 200. A água tinha praticamente desaparecido como resultado da retirada de toda a vegetação nativa de Mata Atlântica.

Foi Lélia quem deu a ideia: e se em vez de recuperar a pecuária, eles trouxessem a floresta de volta? O resto é história. A maior parte da fazenda Bulcão, em Aimorés (na divisa de Minas Gerais com Espírito Santo), foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com o objetivo de restaurar aquele ecossistema, e o casal criou o Instituto Terra, hoje uma das principais iniciativas de restauração da Mata Atlântica no País.

Além de recuperar a mata da fazenda, o instituto transformou o aprendizado adquirido em tecnologia, criou viveiro, plantou mudas e expandiu o plano para a degradada vizinhança no Vale do Rio Doce. Em mais de 20 anos, 6 milhões de mudas de árvores nativas da Mata Atlântica foram produzidas. Os projetos de recuperação em andamento atingem 2,1 mil hectares e 2 mil nascentes.

O plano é recuperar as mais de 300 mil nascentes do vale, mas Salgado e família querem também servir de inspiração para a restauração em todo o Brasil. Hoje há diversos projetos em andamento nos vários biomas, mas a sensação é de que eles são muito localizados e ainda não foi possível ganhar escala.

O País tem uma meta nacional de restaurar 12 milhões de hectares até 2030, como parte dos seus esforços para combater as mudanças climáticas assumidos junto ao Acordo de Paris.

Com isso tudo em mente, o Instituto Terra lança nesta segunda, 21, a campanha Refloresta, com música inédita de Gilberto Gil de mesmo nome (um "grande samba", na análise do especialista em música do Estadão, Julio Maria). O objetivo da campanha, que usa como mote o fato de que em 2021 começa a chamada Década da Restauração, nomeada pela ONU para promover atividades de restauração de ecossistemas e reflorestamento, é justamente incentivar esse projetos pelo Brasil.

A proposta é mostrar a restauração como uma ferramenta importante para ajudar a combater a crise climática global, melhorar a segurança alimentar e o fornecimento de água e a biodiversidade. De acordo com a ONU, em todo o mundo há 2 bilhões de hectares de áreas degradadas com potencial de restauração.

Em entrevista ao Estadão, ele conta suas motivações para a campanha e sobre o que aprendeu nessa trajetória como ambientalista.

Qual é o objetivo da campanha Refloresta?

O Instituto Terra já há muitos anos trabalha na região do Vale do Rio Doce, no que provavelmente é o maior projeto de água, em campo, no meio agrícola, do Brasil, com recuperação de nascentes, do vale. Aqui a Mata Atlântica foi destruída em quase 99%. Mas temos dificuldade de captação de recursos. Chegou um momento de mostrar o que estamos fazendo para o Brasil todo.

Eu tenho 77 anos. Mesmo se tudo der certo, em 10, 12 anos, vou embora. Mas criamos o instituto para que ele continue depois de nós e um fundo poderia facilitar esse espírito de continuidade. Nosso filho Juliano e o Fred Siqueira (conselheiro diretor) tiveram ideias de modernizar, procuraram o (Gilberto) Gil, que respondeu na maior boa vontade, e agora lançamos essa campanha de informação, de conscientização.

O que estamos fazendo é um piloto do que pode ser feito nas centenas de vales de rios brasileiros que foram dilapidados, degradados, com o crescimento dos últimos 50 anos que deixou para trás um deserto ambiental. O que fazemos naquele vale completamente degradado pode ser feito em outros locais. Criamos um modelo de recuperação ecossistêmica, de recuperação de águas, de formação técnica. Somo o piloto que pode ser replicado.

Confira abaixo vídeo da campanha. A entrevista continua na sequência.

Vocês estão inseridos na bacia do Rio Doce, que já era bastante degradada antes mesmo do acidente da Samarco. Como é a relação com outros proprietários?

Não é fácil envolver os proprietários. Tentamos durante quase 20 anos com vários projetos, como desenvolvimento de produtos, melhorar sombreamento, mas o que realmente os envolveu foi a recuperação de nascentes. A maioria das propriedades já não tem mais água. Quando mostramos a possibilidade de recuperar a nascente, ficaram felizes.

Nós isolamos uma área entre 0,8 e 1 hectare, fazemos o plantio de uma micro floresta, com cerca de 400 árvores. E a partir do segundo ano já tem água até para fornecer para o vizinho. Aí o vizinho também quer recuperar. Fazemos aliados imediatamente. Hoje temos filas de proprietários querendo recuperar nascente, porque a terra perde valor quando não tem água, quando falta até para o gado.

Há uma compreensão deles de que o desmatamento foi danoso?

Tenho uma história pessoal para compartilhar sobre isso. Em 1998, meu filho Juliano filmou meu pai na fazenda para o documentário O Sal da Terra. Em um momento ele aponta para uma área e pergunta: 'vô, você destruiu a floresta?' E ele conta que com aquilo ele pôde educar as sete filhas mulheres e eu. Para a época dele, foi a atitude correta, mas no longo prazo, levou ao cenário que temos hoje.

Entendo que hoje temos uma missão dupla: proteger o que resta de pé, da Mata Atlântica, da Amazônia; e temos a obrigação de reconstruir o que foi destruído. Como diz o Gil na música feita para a campanha, não basta só proteger, temos de reflorestar. A maior parte das áreas degradadas está completamente improdutiva, onde a única coisa que dá para crescer é a floresta que existia ali. E com isso vamos reconstruir o lençol freático, as fontes de água, o ecossistema do entorno. Se não tivermos floresta, não vamos ter água. Essa consciência vamos ter de ter.

É nossa obrigação no Instituto Terra fazer com que as pessoas se reaproximem do planeta, que elas voltem ao meio ambiente, aos rios, às montanhas. A campanha é o primeiro grande passo para mostrar que podemos e temos a obrigação de reflorestar.

Como era a situação da fazenda quando vocês a assumiram? Como está hoje?

Estava completamente degradada, tudo assoreado, floresta destruída. A fazenda teve mais de 1.200 cabeças e não comportava mais de 200. E tem uma coisa curiosa desse processo: as pessoas degradam com a degradação.

A fazenda já tinha sido doada quando fomos para lá passar o Natal. Na noite anterior tinha chovido muito e fez deslizar a terra de uma estrada que tinha acabado de ser aplainada por um trator, entupindo o córrego. Aquilo nos deu uma tristeza profunda. Foi Lélia que teve a ideia de que deveríamos plantar uma floresta. Não tínhamos ideia de como fazer, mas fomos atrás de recursos, de parceiros. Fui atrás do mundo inteiro passando o chapéu.

Hoje, até onça, que tinha desaparecido da região nos anos 1930, voltou. Os macacos também voltaram. Quando já tínhamos água, pensamos em reintroduzir jacarés. Mas tínhamos uma bióloga grávida que teve um pesadelo de que o jacaré ia comer o bebezinho dela.

Falamos para ela ficar tranquila, abandonamos a ideia. Mas passados alguns meses, um dia veio um funcionário correndo mostrar uma foto no celular. Era um jacaré chegando sozinho, todo empoeirado. Veio pela estrada, pelo mato. Algum passarinho, algum inseto contou para ele que ali tinha uma área protegida para ele viver e ele voltou.

Estadão
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