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Pilotar moto e manusear facas - o que fazer quando o sonambulismo se torna risco de morte

O sonambulismo pode ser inconveniente e embaraçoso, mas há casos como o da britânica Jackie em que esse comportamento pode ser extremamente perigoso.

13 dez 2017 - 20h54
(atualizado às 21h03)
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Jackie tem episódios de sonambulismo desde que era criança
Jackie tem episódios de sonambulismo desde que era criança
Foto: BBC News Brasil

O sonambulismo pode ser perigoso, mas um dos casos do neurologista Guy Leschziner levou o risco ao extremo: sua paciente Jackie chegou ao ponto de dirigir um carro e pilotar uma moto enquanto dormia.

Pouco depois de se mudar do Canadá para o Reino Unido, Jackie estava vivendo na casa de uma mulher mais velha quando ela lhe perguntou certa manhã: "Aonde você foi ontem à noite?". Jackie respondeu que não havia ido a lugar algum, ao que a senhora respondeu que, sim, ela havia saído de moto.

Jackie ficou chocada e perguntou se tinha usado um capacete. "Sim, você desceu as escadas com seu capacete e saiu", disse a mulher, acrescentando que ela havia ficado fora por 20 minutos.

Jackie não tinha qualquer lembrança de seu passeio noturno, porque não estava acordada quando fez isso. Não havia qualquer pista de que ela havia saído, porque a moto estava parada exatamente no mesmo lugar onde ela a havia deixado da última vez que saíra acordada.

Quando era criança, Jackie não era a melhor pessoa com quem dividir uma barraca no acampamento da escola. "Eu rosnava. Devo ter feito isso tanto que assustou (as outras crianças), então, não me queriam por perto."

A britânica já chegou ao ponto de pilotar uma moto enquanto dormia
A britânica já chegou ao ponto de pilotar uma moto enquanto dormia
Foto: Getty / BBC News Brasil

Ela também dava bastante trabalho para os adultos que supervisionavam a viagem. "Levantava no meio da noite e caminhava até o rio, mata adentro, e, como eles não sabiam o que fazer, tinham de me pegar no colo e me levar de volta."

Em casa, sua família já lidava há tempos com seus episódios de sonambulismo. "Descia as escadas até a sala. Isso assustava minha mãe. Meu pai me pegava pela mão e me levava de volta para cima e me colocava de volta na cama."

Esse tipo de comportamento é comum na infância, assim como falar ou comer enquanto se dorme ou ter episódios de pânico noturno (quando a criança grita de forma descontrolada e acorda sem qualquer lembrança do que aconteceu). Como muitos adultos sabem, isso deixa os pais com medo.

Para a maioria das crianças, ocorrências desse tipo, registradas fora da fase REM do sono, quando temos os sonhos mais vívidos, desaparecem com o passar do tempo. Mas, em até 2% dos casos, persistem na fase adulta, como no caso de Jackie.

Escapulidas

Ela reagiu à sua escapulida de moto dando as chaves do veículo para a dona da casa onde morava, pensando que assim o problema estaria resolvido. Mas estava equivocada.

Jackie buscou tratamento enquanto, ao mesmo tempo, elaborou formas de lidar com sua condição
Jackie buscou tratamento enquanto, ao mesmo tempo, elaborou formas de lidar com sua condição
Foto: BBC News Brasil

Muitos anos depois, ela estava saindo de seu apartamento quando vizinhos perguntaram o que ela havia feito naquela madrugada em torno de 1h30 ou 2h da manhã. Ela respondeu que estava dormindo. "Eles me disseram que eu estava saindo de carro quando chegaram. Não tinha ideia disso. Como havia feito com a moto, agora, estava dirigindo um carro."

Novamente, ela havia estacionado exatamente no mesmo lugar, sem deixar vestígios de suas perambulações.

Ainda que o episódio com a moto tivesse ocorrido num passado distante, ela havia pouco antes caminhado enquanto dormia pelos corredores de um cruzeiro. Para evitar acidentes, entregou as chaves na mão de um membro da tripulação, que a trancava à noite e abria a porta pela manhã.

Também já havia saído sonâmbula nas primeiras horas da manhã para andar na enseada da cidade onde morava, Seaford, no sul da Inglaterra.

A ideia de dirigir por aí enquanto dormia, colocando a si própria e aos outros em risco, a preocupava muito, a ponto de pedir ajuda ao neurologista Guy Leschziner. O que explicaria esse comportamento incrivelmente complexo, que parece emergir durante seu sono profundo?

'Sono localizado'

Há animais, como golfinhos, que conseguem adormecer só metade do cérebro por vez
Há animais, como golfinhos, que conseguem adormecer só metade do cérebro por vez
Foto: Getty / BBC News Brasil

Sabe-se há anos que certos animais, como golfinhos, focas e pássaros, são capazes de adormecer apenas metade do cérebro de cada vez, o que permite que nadem ou voem enquanto estão inconscientes.

Em humanos, isso não acontece, mas sabemos que diferentes partes do cérebro podem estar acordadas e adormecidas ao mesmo tempo. Quando nos privamos de sono, ocorre em pequenas áreas do córtex cerebral, a superfície externa do órgão, o chamado "sono localizado", uma atividade elétrica que corresponde à do sono.

Estudos com sonâmbulos mostram que as regiões cerebrais que controlam a visão, movimento e emoção parecem estar despertas, enquanto as áreas relacionadas a memória, tomada de decisão e pensamento racional parecem permanecer em sono profundo.

Esses resultados explicam em certa medida por que sonâmbulos aparentam estar acordados - com os olhos abertos, falando e realizando tarefas difíceis, como pilotar uma moto -, mas se comportam de forma estranha e não têm memória alguma ou limitada do que ocorreu.

Um cérebro em sono profundo deve ser como a imagem da direita, mas partes do cérebro de um sonâmbulo se parecem com a da esquerda, de uma pessoa acordada | Foto: SPL
Um cérebro em sono profundo deve ser como a imagem da direita, mas partes do cérebro de um sonâmbulo se parecem com a da esquerda, de uma pessoa acordada | Foto: SPL
Foto: BBC News Brasil

Como muitos aspectos do sono, isso provavelmente tem uma origem genética. Muitos pacientes de Leschziner no Hospital de Distúrbios do Sono têm um histórico familiar de episódios de sonambulismo, e pesquisas preliminares já identificaram áreas do genoma que podem estar envolvidas.

Estratégias

Jackie buscou tratamento enquanto, ao mesmo tempo, elaborou formas de lidar com sua condição. Primeiro, tentou pendurar um grande sino na maçaneta da porta de casa, mas isso não funcionou. Seu parceiro, Ed, tem um sono tão pesado que não acordava com o barulho. Ela mesma tampouco.

A britânica investiu, então, em um cofre com temporizador. Toda noite ela colocava ali suas chaves, e o cofre só destravava às 6h da manhã. Ela deixou um outro conjunto de chaves com um vizinho para o caso de alguma emergência. Essa estratégia funcionou e a impediu de sair de casa no meio da noite.

Jackie buscou formas de evitar situações perigosas, como colocar suas chaves em um cofre
Jackie buscou formas de evitar situações perigosas, como colocar suas chaves em um cofre
Foto: BBC News Brasil

Na maioria das vezes, sonambulismo é algo inconveniente ou embaraçoso. As pessoas podem fazer ligações ou mandar mensagens no meio da noite, ou saírem para andar completamente nuas, ou cozinhar enquanto dormem.

"Conheço uma pessoa que se levantava toda noite, cantava o hino nacional e se deitava de novo", diz Meir Kryger, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Mas outros episódios podem ser mais sérios e, em certos casos, muito perigosos.

"Tememos que, quando uma pessoa se comporta assim, ela possa entrar em um carro, sair perambulando por aí ou manipular objetos como facas", diz Kryger.

O sonambulismo pode ser inconveniente, embaraçoso ou, às vezes, perigoso | Foto: Alamy
O sonambulismo pode ser inconveniente, embaraçoso ou, às vezes, perigoso | Foto: Alamy
Foto: BBC News Brasil

Para a maioria das pessoas, o sonambulismo é algo bem menos dramático, e lidar com isso é relativamente simples. Esse tipo de comportamento é mais provável quando ocorrem simultaneamente qualquer coisa que gere interrupções frequentes do sono, como apnéia, uma condição em que as vias aéreas ficam obstruídas.

Então, ao melhorar a qualidade do sono ou tratar o motivo dessas interrupções constantes, o quadro tende a melhorar. Ocasionalmente, casos mais graves podem ser medicados. Naqueles como o de Jackie e seu cofre, precauções simples podem fazer uma grande diferença.

Estar dormindo ou acordado costumavam ser considerados estados binários e excludentes entre si. O sonambulismo mostra que não é bem assim. Na verdade, são estados localizados em extremidades opostas de um espectro. Nosso comportamento, memória e habilidades dependerão de onde nosso cérebro está nessa faixa de possibilidades.

Quando há privação de sono e nossos cérebros têm áreas que aparentam estar em sono profundo enquanto estamos acordados, isso pode explicar por que não conseguimos pensar direito. E, quando estamos dormindo profundamente e partes de nossos cérebros têm um atividade igual à de quando estamos despertos, isso pode explicar porque nos comportamos de forma bizarra no meio da noite.

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