Estudo não afirma que vacina contra covid causa danos oculares
PESQUISADORAS TURCAS OBSERVARAM PERDA DE CÉLULAS DA CÓRNEA EM PACIENTES VACINADOS, MAS É PRECISO FAZER MAIS ESTUDOS PARA ENTENDER O QUE PODE TER CAUSADO ISSO
O que estão compartilhando: que um novo estudo científico teria encontrado danos irreversíveis nos olhos de adultos jovens saudáveis que tomaram vacina contra covid-19 da Pfizer.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Especialistas e órgãos de saúde ouvidos pelo Verifica explicaram que o estudo em questão não permite afirmar que a vacina foi o que causou uma alteração nos olhos dos pacientes. O Ministério da Saúde informou que monitora eventos adversos e que até o momento não foi identificado nenhum alerta quanto a danos oculares relacionados à vacinação. A Pfizer disse que a vacina contra a covid-19 é segura e tem o respaldo de diferentes agências regulatórias pelo mundo, como Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, European Medicines Agency (EMA), da União Europeia, e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Brasil.
O perfil que divulgou a informação enganosa foi procurado, mas não deu retorno.
Saiba mais: A postagem analisada pelo Verifica foi publicada no Instagram e afirma que as vacinas de mRNA contra covid-19 destruiriam 8,4% das células oculares não renováveis em apenas 75 dias. De acordo com a postagem, isso causaria danos irreversíveis no endotélio da córnea do olho (a camada mais interna da córnea). Essas informações constariam de um estudo científico. Mas especialistas e órgãos de saúde consultados pela reportagem explicaram que não é correto fazer essas afirmações.
O Ministério da Saúde informou que a afirmação de que a vacina de mRNA da Pfizer causaria "destruição de células oculares e danos irreversíveis na córnea" não tem respaldo científico no estudo citado nem nas evidências atuais.
A Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO) comunicou que o estudo não permite afirmar que há relação direta entre alteração das células do endotélio da córnea com a vacina.
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O que diz o estudo
O estudo em questão é o Evaluation of the Effects of mRNA-COVID 19 Vaccines on Corneal Endothelium (Avaliação dos efeitos das vacinas de mRNA contra a covid-19 no endotélio da córnea), das pesquisadoras Fatma Sumer e Sevgi Subasi, ambas associadas a universidades na Turquia.
A pesquisa foi publicada em 14 de julho de 2025, pela revista Ophthalmic Epidemiology. O estudo só pode ser acessado na íntegra mediante assinatura de uma plataforma, por isso o Verifica não teve acesso a ele. A reportagem conferiu o resumo da pesquisa disponível gratuitamente ao público, que informa que a análise foi feita com uma amostra de 128 olhos, de 64 pessoas.
Os pacientes foram submetidos a um mesmo exame ocular em dois momentos distintos. O primeiro ocorreu antes de eles tomarem a vacina de mRNA contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech. O segundo foi feito após duas doses do imunizante. O intervalo entre as duas medições foi de aproximadamente dois meses e meio.
A parte do olho analisada pelas pesquisadoras é a córnea, que é como uma lente que fica na frente do órgão. Em uma analogia feita por um especialista ouvido pelo Verifica, se o olho fosse um relógio, a córnea seria o vidro do aparelho.
Uma das descobertas do estudo é sobre a quantidade de células endoteliais da córnea, que são responsáveis por mantê-la transparente. Como dito anteriormente, o endotélio é a parte mais interna da córnea.
A contagem de células reduziu 8,4% depois que os pacientes receberam uma dose de vacina. O que as autoras da pesquisa concluem é que o endotélio deve ser monitorado de perto em pessoas com baixa contagem dessas células, ou que tenham feito um transplante de córnea.
Ao reproduzir as informações do estudo, o autor da postagem do Instagram sugere que a vacina causou a redução das células endoteliais, o que é contestado por especialistas e órgãos de saúde ouvidos pelo Verifica.
Estudo é isolado e não prova relação de causa e efeito
O chefe do departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Daniel Vitor de Vasconcelos Santos, observou que o estudo em questão é isolado. Ou seja, na literatura médica disponível até o momento, esse é o único trabalho que encontrou apenas alteração no endotélio da córnea após a vacinação.
Santos disse que o estudo não apontou nenhuma inflamação no olho ou no organismo dos pacientes, o que causa estranheza. O professor da UFMG, que também é membro da diretoria da International Ocular Inflammation Society (IOIS), explica que não é possível generalizar os resultados da pesquisa.
"Os resultados encontrados pelas autoras, inclusive, podem estar relacionados a vieses do estudo em questão", disse.
Na avaliação dele, a pesquisa feita pelas cientistas turcas identificou uma possível associação, mas não causalidade. Ou seja: elas perceberam que a contagem de células diminuiu após a vacinação, mas não provaram que essa diminuição foi causada pela vacina.
Para ele, são necessários mais estudos sobre o tema, inclusive com grupo controle - quando uma parte dos pacientes participantes da pesquisa recebe a dose da vacina e o outro, não.
"Estudos adicionais por outros grupos de pesquisadores, em outras populações e com grupo controle (aspecto ausente no estudo em questão) devem ser feitos para aferir se essa possível associação da vacina com a redução do número células endoteliais é real e se tem relevância científica", avaliou.
O professor destacou ainda que, há pouco mais de um ano, uma das autoras do estudo, Fatma Sumer, publicou outro trabalho em que encontrou uma redução de aproximadamente 10% das células endoteliais em pessoas que tiveram covid-19. Esse achado tampouco significa que a doença causou a alteração ocular.
Perda de células não causa problemas graves
De acordo com o professor da UFMG, as células endoteliais da córnea não se regeneram. A perda encontrada pelas autoras do estudo, de 8,4%, está acima do normal. Com o avanço da idade, perdemos de 0,6% a 1% de células endoteliais ao ano. No entanto, em adultos saudáveis, essa alteração não tem impacto clínico.
"A queda observada no estudo pode ter importância somente para indivíduos mais idosos, com alguma doença endotelial, transplantados de córnea ou aqueles submetidos a algum procedimento cirúrgico intraocular que reduza muito a contagem endotelial", afirmou.
Em resposta enviada ao Verifica, o Ministério da Saúde chamou a atenção para o fato de que pequenas alterações no endotélio da córnea não têm repercussão clínica ou funcional. "Não houve perda de visão nem queixas visuais, e as próprias autoras não apontam destruição celular nem dano irreversível", diz a nota.
Efeitos adversos conhecidos das vacinas são leves
A professora e pesquisadora da UFMG Fernanda Penido Matozinhos explica que a tecnologia de mRNA, usada para a produção de vacinas da Pfizer e da Moderna, não é recente. Estudada desde a década de 1990, a incorporação desta plataforma para uso na população ocorreu durante a pandemia, após passar por testes de segurança da Anvisa.
A professora coordena o Observatório de Pesquisa e Estudos em Vacinação da Escola de Enfermagem da UFMG (OPESV-EEUFMG). Um dos objetivos do observatório é analisar e avaliar a metodologia, os resultados, a validade e a relevância de pesquisas que estudam diversos aspectos relacionados à vacinação.
Um dos aspectos analisados são as ocorrências médicas indesejadas que possam ter sido causadas por vacina, tecnicamente conhecidas como Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização (Esavi).
"Quando há casos de eventos supostamente atribuíveis à vacinação, a gente percebe que, em sua maioria, eles são raros, leves e autolimitados (quando o próprio organismo resolve o efeito adverso)", explicou Fernanda. "Não temos nenhuma evidência científica consolidada sobre danos estruturais da córnea após a vacina".
De acordo com o professor de Oftalmologia Daniel Santos, há consenso entre os especialistas de que os efeitos adversos oculares das vacinas são raros, na maioria das vezes leves. Em geral, esses efeitos ocorrem por meio de um processo inflamatório no olho, o que parece não ter sido o caso neste estudo.
Pfizer e Ministério da Saúde monitoram possíveis efeitos adversos
Procurada, a Pfizer disse que não comenta estudos que não sejam de sua autoria. A farmacêutica informou que acompanha relatos de potenciais eventos adversos dos produtos e que criou um portal, aberto ao público, para receber essas notificações.
"Até o momento, a Pfizer já distribuiu mais de 4,8 bilhões de doses da vacina ComiRNAty [vacina contra a covid produzida por ela], em mais de 183 países, e não há qualquer alerta de segurança", comunicou.
O Ministério da Saúde reforçou que vacinas de mRNA aprovadas pelas agências reguladoras — incluindo a Pfizer-BioNTech — continuam sendo seguras. Os benefícios da imunização na prevenção de formas graves da covid-19 e de suas complicações superam amplamente quaisquer riscos raros e hipotéticos.
O Verifica entrou em contato com as pesquisadoras do estudo, mas não teve retorno até a publicação da matéria.