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'Por que levar as cinzas da nossa filha pelo mundo 10 anos após ela morrer em tragédia'

Artesã Sonia Imanishi perdeu a filha Yumi em 2010, durante deslizamento de terra em Angra dos Reis, e hoje espalha cinzas da jovem, que gostava de viajar, em diversos lugares do mundo.

3 fev 2020 - 09h01
(atualizado às 14h25)
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Yumi ao lado dos pais, Sonia Imanishi e Geraldo Faraci: jovem morreu aos 18 anos, em um deslizamento de terra em Angra dos Reis
Yumi ao lado dos pais, Sonia Imanishi e Geraldo Faraci: jovem morreu aos 18 anos, em um deslizamento de terra em Angra dos Reis
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

A última noite de 2009 havia sido extremamente feliz para a artesã Sonia Imanishi, hoje com 59 anos.

Ao lado do marido, Geraldo Faraci, atualmente com 64, e da filha Yumi Faraci, na época com 18 anos, eles acompanharam a chegada de 2010 na pousada que a família tinha na região de Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ).

As primeiras horas de 2010, no entanto, foram marcadas por chuva intensa na região. Após as comemorações, Yumi e amigos do curso de arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) dormiam em um quarto da pousada quando um deslizamento de terra atingiu o local.

A alegria das horas anteriores deu lugar à tristeza profunda na família. Yumi e um casal de amigos foram atingidos pelo deslizamento e morreram. A tragédia mudou a vida de Sonia e Geraldo. Eles perderam a filha e a fonte de renda da família, pois a pousada ficou destruída.

Uma década depois, os pais de Yumi decidiram jogar as cinzas da jovem em diferentes pontos do mundo. Para eles, é uma forma de levar a filha, que era apaixonada por viagens, a diferentes lugares.

A seguir, o relato de Sonia sobre a sua história:

Short presentational grey line
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Foto: BBC News Brasil

"Quando conheci o Geraldo, tínhamos as nossas vidas profissionais estabilizadas. Nos apaixonamos e nos casamos em menos de um ano de relação. Estamos juntos há 31 anos. Depois do casamento, comecei a manifestar o desejo de ser mãe. A minha gestação foi muito planejada. Engravidei meses depois de decidirmos que era o momento de termos um filho.

A Yumi nasceu em Belo Horizonte (MG), mas nos mudamos para Angra dos Reis quando ela tinha 10 meses. Abrimos a pousada porque queríamos poder cuidar da nossa filha bem de perto, pois não tínhamos tempo para nada quando estávamos em Minas Gerais. Na nova fase, conseguíamos trabalhar e ter contato direto com a Yumi, além de vivermos juntos em um lugar muito bonito.

Yumi era uma criança esperta e disciplinada, lembra Sonia Imanishi
Yumi era uma criança esperta e disciplinada, lembra Sonia Imanishi
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

A nossa filha foi uma criança com uma força de vontade impressionante. A Yumi começou a fazer karatê aos cinco anos. Depois também fez kobudô. Ela foi campeã brasileira nas duas artes marciais, quando era criança. Ela tinha muito foco. Não era do tipo nerd, mas sempre teve muita disciplina. A minha filha também adorava música. Sabia tocar teclado, violão e guitarra. Além disso, também escrevia músicas e cantava.

Uma das grandes paixões dela era viajar. Ela fez intercâmbio no Canadá e na Inglaterra. Viajou bastante. Conheceu diferentes culturas e fez muitos amigos. Ela falava quatro línguas, além de português: francês, japonês, espanhol e inglês. Ela tinha muita facilidade para aprender idiomas.

'Ajudá-la a ser feliz'

Quando a Yumi terminou o ensino médio, aos 17 anos, passou em arquitetura na UFMG. Ela se mudou para Belo Horizonte para estudar. Com frequência, eu me deslocava de Angra a Belo Horizonte para vê-la. As minhas amigas diziam: 'deixa a menina'. Mas eu sempre entendi que deveria me manter próxima a ela o máximo possível. Minha filha sempre foi uma alma livre, a minha função era apenas ajudá-la a ser feliz.

Certa vez, eu e meu marido falamos para ela que, quando morrêssemos, queríamos ser cremados, porque não achávamos justo que estivéssemos enterrados em um cemitério onde ela teria sempre que nos visitar. Como ela amava viajar, dizíamos para ela nos cremar e jogar as nossas cinzas em um lugar muito bonito. Sempre repetia isso para ela.

Uma das atividades preferidas da família era viajar pelo mundo
Uma das atividades preferidas da família era viajar pelo mundo
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Cerca de dois meses antes do fim de 2009, ela disse que também queria ser cremada. Ela falou que por ser mineira, queria que jogássemos as cinzas dela na Serra da Moeda, conhecida como topo do mundo, na região de Brumadinho (MG), e no mar de Angra dos Reis. Ela dizia que eram dois lugares que ela amava muito.

Nunca imaginei que teríamos que cumprir aquele desejo dela. Ainda mais depois de tão pouco tempo. Naquela virada de 2009 para 2010, havíamos organizado a festa na pousada, como em anos anteriores. Não tenho muito a dizer sobre aquele dia. Eu dormi muito feliz e acordei muito aterrorizada.

A tragédia em Angra dos Reis

Naquela primeira madrugada de 2010, a forte chuva causou estragos em Angra dos Reis. Na pousada, além de Yumi, morreram também os jovens Isabela Godinho, de 20 anos, e o namorado dela, Paulo Sarmento, de 27. Os três estavam no mesmo quarto. Além deles, no cômodo também havia quatro jovens, que sobreviveram ao deslizamento. Sonia e Geraldo ajudaram no resgate dos jovens. Eles tinham esperanças de encontrar a filha com vida.

Equipes da Prefeitura de Angra dos Reis auxiliaram nas buscas, que localizaram os corpos dos três jovens. Ao todo, 41 pessoas morreram em decorrência de deslizamentos em Angra dos Reis durante aquele fim de 2009 e começo do ano seguinte.

Grande parte da pousada de Sonia e Geraldo foi atingida pelo deslizamento. "O mato tomou tudo de volta. Está tudo fechado. Foi total prejuízo", diz Sonia. Ela e o marido optaram por não restaurar a propriedade ou tentar vendê-la.

Depois da morte da filha

Tivemos perdas muito grandes. Perdemos a nossa filha, o nosso trabalho e a nossa casa. Foram três pontos muito fortes. Às vezes, o indivíduo entra em depressão por causa de um desses pontos. Mas o que fazer? Acho que cada um de nós tem uma carga. Se a gente soubesse o que vai vir logo que a gente nasce, poderia até desistir. Mas a gente tem que aprender a lidar com o que vem pela frente e fazer o melhor que pode. Eu penso que todos nós nascemos com tudo determinado.

Os pais ficaram completamente abalados após a morte da filha e se mudaram para Minas Gerais
Os pais ficaram completamente abalados após a morte da filha e se mudaram para Minas Gerais
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Uma década depois, chego à conclusão de que o mais importante é que o casal se dê bem. Por isso que eu e o Geraldo conseguimos sobreviver. Quando um estava mal, o outro tentava dar força. Assim fomos levando. A nossa união é na base do amor, que segura tudo.

Hoje entendo que eu e o meu marido fomos apenas pessoas escolhidas para que a nossa filha tivesse 18 anos de uma vida bacana, com amor e muito apoio da família. Acho que isso que importa.

Em 2010, ainda passamos um ano em Angra dos Reis. Tivemos que resolver questões burocráticas, pois tínhamos uma equipe de funcionários muito grande. Uma empresa que durou quase duas décadas não se desfaz tão rápido. Colocamos tudo o que recuperamos da pousada à venda. Não foi fácil. Trabalhamos intensamente todos os dias, recuperando e procurando vender as coisas.

Quando vendemos tudo, nos mudamos de Angra dos Reis e nunca mais voltamos à pousada. Fomos para Belo Horizonte, onde a nossa família mora. Passamos dois anos na casa da minha sogra, até definirmos o que faríamos da vida. Todos os dias, acordávamos cedo para fazer companhia para ela. Foi o nosso ponto de partida para mantermos nossas cabeças no lugar e seguir em frente.

Uma coisa que me incomodava era que muitas pessoas acabavam me reconhecendo nas ruas, em razão de ter sido um fato muito noticiado. Mudei de telefone e cheguei a mudar a placa de carro. As pessoas se aproximavam e perguntavam: você é aquela japonesa? Teve muita gente boa, mas outras nem tanto. Em geral, era um constrangimento, que se tornava muito desgastante.

As cinzas

Menos de 15 dias depois da morte da Yumi, jogamos parte das cinzas dela no (mirante) Topo do Mundo, (na Serra da Moeda) em Minas Gerais. No fim daquele janeiro de 2010, fizemos uma cerimônia muito bonita em Ilha Grande, em Angra dos Reis, reunimos muitos amigos dela e mergulhamos para jogar outra parte das cinzas dela no mar. Assim, cumprimos os pedidos que ela havia feito.

Em janeiro de 2010, Sonia e Geraldo jogaram parte das cinzas de Yumi em Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ)
Em janeiro de 2010, Sonia e Geraldo jogaram parte das cinzas de Yumi em Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ)
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Ao longo dos anos, eu e meu marido recomeçamos. Decidimos que faríamos o que amamos. Largamos o turismo, porque o trabalho na pousada era uma loucura e não queríamos mais. A minha formação é em artes e voltei a trabalhar como artesã. Hoje mexo, principalmente, com cerâmica. O meu marido, que ama cozinhar, se tornou sushiman.

A saudade da nossa filha é constante. Mas ela está presente conosco diariamente. Ela deixou 18 músicas gravadas em vídeos do YouTube. Escutamos com frequência. Tenho duas tatuagens em homenagem à Yumi: uma com o formato do violão dela, na perna direita, e outra com o nome dela, nas costas. O meu marido tatuou o rosto dela nas costas.

A minha filha recebeu várias homenagens. O campeonato estadual de kobudô do Rio de Janeiro passou a levar o nome da Yumi, por ela ter sido campeã na modalidade. Em Angra dos Reis, uma sala de um projeto musical da prefeitura também recebeu o nome dela, em razão do amor dela pela música.

Pelo mundo

Uma década depois da morte da Yumi, quando a gente para pra pensar, conclui que o que importa são as lembranças que ela deixou. Guardar as cinzas dela seria um transtorno para outros parentes, depois que eu e meu marido também morrermos. Por isso, no fim do ano passado decidimos jogar parte das cinzas dela em outros pontos pelo mundo.

No dia 31 de janeiro de 2019, Sonia e Geraldo lançaram parte das cinzas de Yumi no Parque Nacional Los Glaciares, em El Calafate, na Argentina
No dia 31 de janeiro de 2019, Sonia e Geraldo lançaram parte das cinzas de Yumi no Parque Nacional Los Glaciares, em El Calafate, na Argentina
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Combinei com o meu marido que faríamos o que nós três sempre gostamos: viajar. E a cada lugar bonito que represente algo para nós, vamos jogar parte das cinzas dela. Faremos isso aos poucos, até acabar. Quando eu e o Geraldo partirmos, um parente ou amigo se encarregará de jogar os nossos restos em algum lugar também.

Em 31 de dezembro, lançamos parte das cinzas no Parque Nacional Los Glaciares, em El Calafate, na Argentina. Estávamos em um catamarã e pedimos autorização para o comandante. Ele disse que abriria exceção e permitiu que a gente fosse para um cantinho da embarcação, perto a um paredão de gelo muito bonito, e lançamos as cinzas. Rezamos um 'pai nosso' depois. Foi um momento lindo.

Nos dias seguintes, lançamos as cinzas no Ushuaia, na Argentina, e em Torres Del Paine, no Chile. Eram lugares que queríamos conhecer com a Yumi. O próximo lugar que planejamos jogar as cinzas dela é na região de Açores, em Portugal, pois um amigo da família, que conheceu a Yumi desde pequena, estará velejando por lá.

Muitos amigos dela, que hoje têm por volta dos 30 anos, se ofereceram para nos ajudar a jogar as cinzas dela em vários lugares. Há alguns que moram em países como os Estados Unidos e o Canadá. Precisamos juntar dinheiro para conseguirmos ir a tantos lugares. Mas acredito que iremos conseguir.

Acompanhar esses amigos dela, que cresceram e seguiram suas escolhas, é também uma forma de imaginar como estaria a nossa filha hoje em dia. Alguns tiveram filhos, outros casaram e seguiram suas profissões. Será que a Yumi estaria fazendo doutorado em arquitetura? Estaria morando no Brasil? Não sabemos, mas tenho certeza de que ela estaria indo atrás dos seus sonhos.

Em 4 de janeiro, os pais de Yumi lançaram as cinzas da filha no Parque Nacional da Terra, no Ushuaia, na Argentina
Em 4 de janeiro, os pais de Yumi lançaram as cinzas da filha no Parque Nacional da Terra, no Ushuaia, na Argentina
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Para as pessoas, podem ter passado 10 anos desde que ela faleceu. Mas para os pais não têm essa distância. Nesse período, outros amigos também perderam seus filhos e demos força para eles. Por isso, sempre aconselho os pais a viverem intensamente os seus filhos, porque aquele tempo passa e não volta nunca mais.

Quando você perde um filho, tudo muda. A gente começou a ver que muita coisa não faz sentido. Depois de tudo o que passamos, aconselho as pessoas a viverem intensamente. Quando você aproveita cada instante e encara as coisas de forma mais leve, acaba tendo muita força para enfrentar as dificuldades.

Um dia quero publicar um livro sobre a nossa história, por meio de poemas. Costumo escrever sobre o nosso amor pela nossa filha. Recentemente, depois de jogarmos parte das cinzas dela, escrevi sobre a gente e as nossas viagens para jogar as cinzas dela pelo mundo.

'Que possamos te levar até que o último de nós dois se vá. Que possamos realizar todas as viagens que um dia quiséramos fazer, para que possamos sempre guardar em nossas memórias o tamanho do nosso amor. E para que um dia, quando nós três nos reencontrarmos, tenhamos muitas coisas para contar. Até a próxima viagem, Yumi.'"

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