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Política

A preparação política da Paixão de Cristo

29 mar 2024 - 06h10
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A vigência da Semana Santa leva-me a refletir, como político cristão, a respeito da implicação do evangelho sobre a construção política da realidade.

Flávio Nogueira
Flávio Nogueira
Foto: Divulgação / Estadão

A política é arte ou ciência guiada pela ética que se aplica para governar, objetivando a felicidade humana. Ser um político requer possuir a ciência que deve prevalecer na coisa pública, de forma a racionalizar a atitude governante; nesse sentido, os valores éticos conduzem-nos a fazer uma política com decência e com diálogo, de modo tal que sua prática deva ser afável, mas sem deixar de atender às exigências impostas pela realidade que nos cerca. Além disso, o ato político deve manter a discrição requerida pela responsabilidade de não comprometer os princípios abraçados em face de possíveis descréditos e suspeições que possam atrapalhar o bom senso exigível pela ética cristã.

Lendo a Bíblia, aprendemos que Jesus ensinou até mesmo a fazer política, demonstrando que ela se exerce com o entendimento. O Evangelho de João contempla exemplarmente três episódios da vida de Nicodemos que ratificam essa lição de Jesus.

Nicodemos era um príncipe fariseu (partido político e ideológico oposto ao dos saduceus), doutor da lei, um homem de grandes posses, respeitado, poderoso, estimado e popular em Jerusalém, que pertencia ao Sinédrio, tendo, portanto, grande influência na sociedade judaica. Ele era um homem piedoso e acreditava que Cristo tinha sido enviado por Deus, por causa dos milagres que fazia; porém, Nicodemos queria entender qual era a missão de Jesus e o que Ele pregava.

Ao chegar Jesus a Jerusalém, Nicodemos viu a oportunidade de ir ao seu encontro; todavia, receando comprometer sua reputação no meio dos seus companheiros, procurou encontrar-se com o Messias de maneira oculta, na escuridão da noite e sem testemunha, o que dá a entender que, realmente, não quis expor-se, preferindo reunir-se com o Mestre de uma forma discreta. Ou seja, Nicodemos buscou cautelosamente a Jesus como os mestres da política fazem quando procuram o diálogo. Foi uma confabulação em que aquele fariseu interrogou sobre a natureza e a missão do Filho de Deus.

Percebe-se, nesse episódio, que Cristo, recebendo-o afavelmente como um potencial discípulo, procurou prepará-lo com cuidado e tato didático para ser capaz de crer na sua divindade. Jesus, aí, exercitou a política do diálogo, do entendimento e da confiança, para que pudesse ser compreendido. Foi também uma atitude política de Nicodemos para entender o aspecto espiritual de que cada pessoa precisa saber que necessitamos renascer para alçar-nos ao Reino de Deus e que o novo nascimento deve vir do céu.

Nicodemos queria conhecer a verdade e a encontrou nas palavras do Messias, que o iniciou num processo de autoconhecimento e transformação íntima. A partir dessa conversa, Nicodemos passou a defender Jesus, nos bastidores, para seus pares; até chegar ao ponto de protestar contra os sacerdotes, fariseus e todo o Sinédrio que haviam tentado prender o Nazareno quando este frequentava a Festa do Tabernáculo, em Jerusalém, alegando que ninguém poderia ser preso e condenado sem que lhe dessem o devido direito de defesa.

Como um dos governantes dos judeus, Nicodemos foi um político sábio ao agir de forma discreta; ele seguia o Filho de Deus de modo reservado para não ser criticado, entretanto, na hora certa, foi corajoso e nada discreto ao pedir o corpo de Cristo a Pilatos, utilizando todo o seu poder para obtê-lo, com o destemor de expressar publicamente a sua fé - inclusive, no enterro de Jesus, Nicodemos trouxe especiarias para ajudar a preparar o corpo para ser colocado no sepulcro.

A atitude de Nicodemos antes, durante e após a crucificação, ao tornar público o seu discipulado, demarca sua transformação de um buscador discreto para alguém comprometido com a causa crística. Ele evoluiu de um seguidor secreto para um discípulo corajoso e dedicado.

A vida de Nicodemos nos ensina, em pleno período da Páscoa, que, quando nosso coração é preenchido por Jesus Cristo, não tememos a impopularidade e as consequências de uma procura intimorata por valores diferentes daqueles em que a sociedade tradicionalmente tenta nos enquadrar.

Nicodemos é uma referência de que há figuras próximas do poder, discretas, com presença silenciosa e estratégica, mas cuja influência, nos bastidores, passa a ser decisiva para fortalecer a contribuição, dentro do governo, do pensamento que representam. Isso porque, ainda que não escondam as causas a que pertencem, não se valem imediatamente delas, contudo, articulam-se na política como atores pertencentes ao campo intelectual.

Estadão
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