A Ação Penal 937
Na Ação Penal 937, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que, quanto aos deputados federais e senadores- que possuem a prerrogativa de serem julgados perante o próprio Supremo, só se fixará essa competência se o crime eventualmente praticado pelo parlamentar tiver sido cometido após a diplomação e se relacionar com o exercício do mandato.
Como expôs Rogério Sanches Cunha(A decisão do STF sobre a prerrogativa de foro e suas decorrências implícitas, em 18.12.2018, em MSJ):
"A decisão tomada na AP 937, todavia, restringiu-se - ao menos expressamente - ao foro por prerrogativa dos parlamentares federais, pois, até pouco antes, o réu na ação havia ocupado o cargo de deputado federal. Durante o julgamento, o ministro Dias Toffoli chegou a reajustar seu voto propondo que a decisão contemplasse todos os cargos aos quais a Constituição Federal vincula a prerrogativa de foro, e, pela mesma proposta, os dispositivos constitucionais estaduais que dispõem sobre a prerrogativa deveriam ser declarados inconstitucionais:
"Reajusto o voto proferido na sessão de ontem, para dar a ele maior extensão e resolver a questão de ordem no sentido de: (…) ii) fixar a competência por prerrogativa de foro, prevista na Constituição Federal, quanto aos demais cargos, exclusivamente quanto aos crimes praticados após a diplomação ou a nomeação (conforme o caso), independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão; iii) serem inaplicáveis as regras constitucionais de prerrogativa de foro quanto aos crimes praticados anteriormente à diplomação ou à nomeação (conforme o caso), hipótese em que os processos deverão ser remetidos ao juízo de primeira instância competente, independentemente da fase em que se encontrem; iv) reconhecer a inconstitucionalidade das normas previstas nas Constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal que contemplem hipóteses de prerrogativa de foro não previstas expressamente na Constituição Federal, vedada a invocação de simetria. Nestes casos - que, conforme mencionei em meu voto na data de ontem, englobam 16.559 autoridades estaduais, distritais e municipais -, os processos deverão ser remetidos ao juízo de primeira instância competente, independentemente da fase em que se encontrem (…)".
A iniciativa do ministro não foi encampada pela maioria de seus pares, mas as situações específicas têm sido apreciadas aos poucos, de acordo com as circunstâncias dos casos concretos, em decisões que podem ser consideradas verdadeiras decorrências lógicas da conclusão a que chegou o STF."
Em seu voto, o min. Luís Roberto Barroso sustentou que o sistema do foro por prerrogativa até então adotado, que admitia toda e qualquer infração penal cometida pelo parlamentar, mesmo antes da investidura no cargo, era altamente disfuncional, muitas vezes impedindo a efetividade da justiça criminal, o que acabava criando situações de impunidade que contrariavam princípios constitucionais como equidade, moralidade e probidade administrativa, abalando portanto valores republicanos estruturais.
Lembrou, outrossim, Rogério Sanches Cunha, naquela obra citada, com essa extensão, o foro por prerrogativa de função não encontra correspondência no direito comparado e nem mesmo no Brasil, cuja ordem constitucional estabelecia, nos primórdios, rol muito pequeno de autoridades julgadas pelo então Supremo Tribunal de Justiça. Ao longo dos processos constitucionais originários por que passou o Brasil é que a prerrogativa foi sendo ampliada até chegar ao modelo atual. Somando-se ao extenso rol de autoridades uma interpretação extensiva a respeito dos crimes abrangidos pela prerrogativa, chegou-se inevitavelmente à baixa efetividade da prestação jurisdicional penal no âmbito da mais alta corte de justiça.
Essa situação só pode ser modificada pela interpretação restritiva da regra do foro por prerrogativa, que deve ser aplicado para crimes cometidos no cargo e em conexão com ele (crimes funcionais). O foro por prerrogativa de função é concebido para conferir a devida proteção ao exercício funcional, não para dificultar a persecução penal decorrente da prática de crimes por quem o detém. Por isso, há de se fazer presente o nexo de causalidade entre o exercício funcional e a conduta criminosa.
Disse então o ministro Barroso, naquela ocasião:
"I. Quanto ao sentido e alcance do foro por prerrogativa 1. O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, na interpretação até aqui adotada pelo Supremo Tribunal Federal, alcança todos os crimes de que são acusados os agentes públicos previstos no art. 102, I, b e c da Constituição, inclusive os praticados antes da investidura no cargo e os que não guardam qualquer relação com o seu exercício. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. 3. Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções - e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade - é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo."
Em sendo assim os eventuais delitos criminais que teriam sido praticados antes do exercício do mandato eletivo de deputado estadual, federal ou senador, não levam, em face da relação de causalidade, a aplicação das consequências da aplicação da prerrogativa de foro.
Como afirmou a ministra Rosa Weber, por ocasião daquele leading case, o instituto do foro especial, que se encontra albergado na nossa Constituição, só encontra razão de ser na proteção à dignidade do cargo, e não à pessoa que o titulariza.
Lembrou Rômulo de Andrade Moreira(O novo entendimento do STF sobre prerrogativa de foro, in Migalhas, em 27.11.2017):
"Em seu voto-vista, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator na parte que fixa o foro no Supremo Tribunal Federal apenas para os crimes praticados no exercício do cargo, após a diplomação, valendo até o final do mandato ou da instrução processual. Para ele, "estender a prerrogativa para alguém que praticou crime antes de ser parlamentar afasta a relação com a finalidade protetiva do mandato, objetivo da prerrogativa, que é voltada para proteção institucional. É uma prerrogativa do Congresso, e não de quem sequer sabia que um dia seria congressista." Na sua divergência parcial, o ministro afirmou que "o texto constitucional não deixa margem para que se possa dizer que o julgamento das infrações penais comuns praticadas por parlamentares não seja de competência do Supremo Tribunal Federal. A expressão 'nas infrações penais comuns`, contida no art. 102, I, 'b'), alcança todo tipo de infrações penais, ligadas ou não ao exercício do mandato."
Em sendo caso de homicídio doloso que teria sido cometido por parlamentar, aplica-se a regra geral exposta na Constituição de que a competência para instruir e julgar é do Tribunal do Júri, data vênia.
Conforme o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurada "a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida".
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou a competência do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) para julgar o deputado estadual licenciado João Beltrão Siqueira, pelo crime de homicídio doloso, ocorrido em 2001, no município de Taguatinga, em Tocantins. Para os ministros da Terceira Seção, no caso deve ser considerada a prerrogativa de foro garantida na Constituição Federal a parlamentares e estendida aos agentes políticos locais pela Constituição Estadual.
A questão foi definida num conflito de competência provocado pelo juiz de direito da comarca do local do crime, para quem haveria dúvidas na aplicação do foro por prerrogativa de função relativa a deputado estadual. A Constituição Federal estabeleceu que compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, mas, ao mesmo tempo, concedeu foro a algumas autoridades.
A Seção decidiu também que os demais réus do processo deverão ser julgados pelo Tribunal do Júri do local dos fatos.
Volta-se à aplicação do artigo 80 do CPP.
Observe-se o artigo 80 do CPP:
Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação
Um motivo relevante cuida a chamada "competência por prerrogativa de função", ou seja, de uma jurisdição especial, exercida ratione personae, a qual, muito embora criticada por alguns, não objetiva beneficiar ou privilegiar certas pessoas colocando-as acima dos cidadãos comuns.
Ao revés, essa previsão constitucional visa a permitir que determinados cargos e funções públicas de maior relevo na estrutura do Estado possam ser exercidos com a necessária independência. Diz José Frederico Marques sobre o assunto: :"Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece 'por amor dos indivíduos', e sim em razão 'do caráter, cargos ou funções que eles exercem', como ensinava J. A. Pimenta Bueno.
Ela está baseada na 'utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior' - como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1.905), conjuga-se o citado artigo 80 do CPP com as regras da conexão estabelecidas no artigo 76, III, do CPP, em especial, no que concerne à conexão probatória.
A chamada conexão probatória ou instrumental do artigo 76, III, do Código de Processo Penal, não dispensa um liame substancial entre os fatos. Não basta um eventual juízo de conveniência de reunir no mesmo processo fatos similares, mas paralelos, sem nenhuma conexão substancial entre si.
Em havendo necessidade de separação de processos, em especial por conveniência da instrução criminal, preserva-se a prerrogativa de foro do investigado que dela faz jus, remetendo-se ao juízo comum os procedimentos envolvendo outros coinvestigados sem o mencionado privilégio. Sabe-se que, por conexão ou continência, havendo foro privilegiado a um dos coinvestigados, todos os demais serão julgados por Corte Superior. Porém, a regra da conexão ou continência é prevista no Código de Processo Penal e não na Constituição Federal, motivo pelo qual pode ceder às exceções enumeradas na própria legislação infraconstitucional, nos moldes do artigo 80 do Código de Processo Penal, como ensinou Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10º edição, pág. 256). Daí porque se torna viável a separação dos processos, levando os réus com foro privilegiado a serem julgados em instâncias diversas dos outros não possuidores de tal prerrogativa, como se lê de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no QO no Inq. 2.443 - SP, Pleno Relator Ministro Joaquim Barbosa, 1º de julho de 2008.
De toda sorte, insista-se, tem-se a conclusão de que essa separação de processos é facultativa. Estando os autos no STF, a esse tribunal caberá essa separação, nos casos que envolvam parlamentares federais. Mas, reafirma-se que essa decisão deverá obedecer o disposto nas conclusões obtidas naquela AP 937.
Para aplicar-se a prerrogativa de foro, mister, pois, que seja indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo.