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Golpe de 1964: “Sabíamos dos riscos”, diz amigo de Brizola

Para o prefeito de Porto Alegre em 1964, reformas defendidas por Jango ainda são necessárias no País

27 mar 2014 - 14h44
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Sereno Chaise, ex-prefeito de Porto Alegre, era próximo de Brizola e João Goulart
Sereno Chaise, ex-prefeito de Porto Alegre, era próximo de Brizola e João Goulart
Foto: Divulgação / CGTEE

No dia 31 de março de 1964, tinha início o golpe militar que tiraria o presidente João Goulart, o Jango, do poder, levando o Brasil a uma ditadura de 21 anos. Neste mesmo dia, o então prefeito de Porto Alegre (RS), Sereno Chaise, na época filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), comemorava seu aniversário de 36 anos em um clube da capital gaúcha. O churrasco havia começado há pouco quando o prefeito recebeu a notícia de que as tropas de Minas Gerais seguiam para o Rio de Janeiro para consolidar o golpe.

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Em 1961, Chaise atuara na campanha da Legalidade junto a Leonel Brizola - de quem era amigo desde os tempos da Ala Moça do PTB -, para garantir que Jango assumisse após a renúncia de Jânio Quadros. Também em 1964, o advogado e político se envolveu na resistência à deposição do presidente. Cancelou a festa de aniversário e convocou os funcionários à prefeitura, à espera de notícias sobre o golpe que culminaria na imposição de um regime militar em 1º de abril. Dias depois, Jango se exilaria no Uruguai. “Nós perdemos. A partir daquele momento, perdemos a bandeira. Íamos lutar por quê?”, questiona o ex-prefeito.

No próximo dia 31, Chaise completa 86 anos, e o golpe, 50. Em entrevista concedida ao Terra e outros veículos, em Porto Alegre (RS), o atual presidente da Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (Eletrobras CGTEE) relembra os momentos antes, durante e após o golpe militar de 1964. 

O regime parlamentarista e os boatos

Em 1961, a campanha liderada por Brizola garantiu que Jango pudesse assumir após a renúncia do então presidente Jânio Quadros. Alguns setores - especialmente o militar - defendiam o rompimento da ordem jurídica e queriam impedir a posse de Jango. Na época, a solução política encontrada foi estabelecer um regime parlamentarista, e Jango assumiu como chefe de Estado. Chaise aponta que um dos muitos boatos que circundam a história é de que Jango e Brizola teriam divergido nessa questão.

“Isso sempre foi afirmado, que eles teriam até discutido fortemente, mas não é verdade. Eu participei de tudo, estava no Palácio o tempo todo. No Caravelle da Varig para Brasília (onde foi assumir o mandato), o Jango estava com o (Amaury) Kruel, e o Ruben Berta (então presidente da Varig) foi junto. O comandante era o Attila (Duarte). Havia o boato da Operação Mosquito, que derrubaria o avião ao chegar em Brasília. Mas chegamos lá. Eu não conhecia pessoalmente o (Ranieri) Mazzilli (ex-presidente), e junto a ele, estava o general (Ernesto) Geisel. Desembarcamos, e o Geisel veio e disse: ‘meu presidente’. Eles estavam satisfeitos pelo Jango ter aceito a forma parlamentarista."

“O Brizola, no Palácio, quando se desenhou isso, disse para o Jango: o que tu fizeres, eu aceito. Muitos de nós preferíamos não fazer o acordo. O Jango sempre se opôs muito ao derramamento de sangue entre irmãos. E ele, de certa forma, tinha razão. Em um ano e pouco, ele conseguiu retomar os poderes.”

As reformas e as cobranças

Durante o mandato de Jango, as reformas de base, que já vinham sendo discutidas pelo PTB, tomaram forma. O conjunto de propostas que alterava estruturas econômicas, sociais e políticas envolvia questões polêmicas, como a reforma agrária, que reforçaram a ideia de alguns setores de que Jango estava “levando o País ao comunismo”. Jango estava em meio a dois grupos: o de conservadores, contrários às reformas, e o daqueles que pressionavam para que elas fossem postas em prática.

“A história é assim, e a política, principalmente, não só é caprichosa, mas é madrasta. Uma coisa importante é lembrar que havia um grupo que apertou muito o Jango, pressionando pelas reformas. (...) (A pressão) levou o Jango a fazer uma política populista. Nós falamos isso em uma tarde no Palácio Rio Negro (em Petrópolis, no Rio de Janeiro). Eu disse: presidente, no meu modo de ver as coisas, é muito perigoso colocar toda carga de um lado. Mas a tese era correta. O País precisava das reformas, e precisa até hoje.”

O golpe se anuncia

Chaise é categórico: 1964 não nasceu em 1964, mas em 1954, com o suicídio de Vargas. Após sua morte, o vice-presidente, Café Filho, nomeou o general Henrique Lott ministro da Guerra para afastar a influência getulista. Com a eleição de Jango, pró-getulista, para a vice-presidência da República e o povo na rua após o suicídio de Vargas, os militares recuaram. O clima de instabilidade, contudo, permaneceu.

“Sabíamos dos riscos. Eu, no dia 24 de fevereiro de 1964, fui atrás do Jango. Ele estava no Palácio Rio Negro. Lá pelas tantas, eu disse: ‘Olha, presidente, estamos muito preocupados com algumas atividades. Os generais vêm com aquela história que tínhamos que evitar o comunismo’. Eu disse isso pro Jango, e ele mandou chamar o Assis Brasil (então chefe da Casa Militar). Ele veio e disse que sabia disso e de muito mais, mas que o ‘dispositivo era sólido’, e que não havia perigo nenhum."

“Voltei à noite (para Porto Alegre). Meu assunto lá era mais administrativo, a política foi um parêntese. O Jango me ligou, disse que o Júlio Sambaqui, ministro da Educação, viria aqui (a Porto Alegre). O irmão Otão (então reitor da PUCRS), que tinha sido meu professor e era meu amigo, me disse que precisava falar com o ministro. Ele queria um auxílio para começar a Faculdade de Medicina na PUCRS. Nos encontramos e, lá pelas tantas, o ministro disse que tinha um convênio com a Tchecoslováquia para a importação de material didático cirúrgico, um convênio de 50 mil dólares. O Otão saiu sorrindo de orelha a orelha." 

“Depois de dois dias indo pra lá e pra cá, o ministro embarcou para Brasília, e eu fui para casa morto de cansado, ‘hoje não atendo nem o bispo’, pensei. Mas de repente vieram me chamar. Era o irmão Otão. Ele me disse: ‘prefeito, vim aqui pedir para o senhor falar com o ministro e cancelar aqueles convênios. O arcebispo (de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer) me chamou e deu ordem para que eu não recebesse auxílio desse governo’. Isso foi em fevereiro. Na manhã seguinte, liguei para o ministro e pedi que ele informasse o presidente. Era um sinal.”

31 de março de 1964

A articulação para o golpe se consolida. Apesar de haver divisão de opiniões entre setores militares e civis sobre como e quando seria realizado, no dia 31 de março, o general Mourão Filho desloca milhares de soldados de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro. Era o começo do movimento que deixaria os militares por 21 anos no comando do Brasil.

“Era meu aniversário e estávamos no Grêmio Náutico Gaúcho. Às 22h30, o churrasco tinha recém começado quando me chamaram para dizer que havia iniciado a marcha de tropas de Minas Gerais. Foi por isso que a prefeitura começou a funcionar rapidamente, estavam todos ali: secretários, chefes de departamento. Suspendi o churrasco e fomos à prefeitura. No dia 1º, mandaram a tropa da Aeronáutica atacar o pessoal do Mourão, mas o pessoal foi lá e não atacou: o regimento se aliou a eles.”

Cassações, exílio e confusões 

No dia seguinte, 1º de abril, João Goulart viaja do Rio para Brasília, e depois a Porto Alegre, onde Brizola tentava organizar a resistência ao golpe. Jango, contudo, opta por exilar-se, e poucos dias depois embarca para o Uruguai. Voltou ao Brasil apenas para ser sepultado, em 1976.

“O Jango foi embora, escoltado. O fato de ele ir para o exterior equivalia a uma renúncia. Ele decidiu assim para evitar sangue entre irmãos. Aí nós perdemos. A partir daquele momento, perdemos a bandeira. Íamos lutar por quê?"

“Depois disso tudo, voltei à prefeitura. Fui cassado apenas no dia 8 de maio. No Estado, a primeira lista que saiu foi 8 de maio. Eu fui no dia 9 de manhã para a prefeitura, limpei as gavetas. Deixei dois processos em cima da mesa, mais nada, e esperei. Pensei: deve vir aqui um capitão, um major, sendo a capital, talvez um coronel, e nada."

“O Milton Dutra, deputado federal, me ligava de Brasília e dizia: não deixa a prefeitura que tu não tiveste o mandato cassado. E de fato, não tive. O decreto dizia ‘ficam suspensos os direitos políticos por 10 anos”, alguns falavam em  cassação, outros não. Eles faziam decreto assim. Nós perdemos tão fácil, sem esperar, mas eles também ganharam tão fácil que não estavam preparados para esse tipo de coisa. Eu disse: ah, Milton, não vou discutir o sexo dos anjos. Como é que uma pessoa sem direitos políticos vai exercer o mandato, logo de uma capital? Eu não tinha essa vocação para carrapato. Aí esperei todo dia por alguém ou um telefonema. Não veio ninguém. Às 18h, final do expediente, reuni todos no Salão Nobre e entreguei o boné. Fui para casa e, no dia seguinte, fui preso. Aí foi uma série de prisões."

Prisão e permanência

Ao todo, Chaise foi preso três vezes após o golpe. Permaneceu no Brasil durante todo o regime e, impossibilitado de exercer funções políticas, procurou por outras opções para sobreviver.

“Passei dois ou três dias no Sesme (Serviço Social do Menor, atual prédio da FASE, em Porto Alegre). Depois fui para a escolinha na Volta da Cobra. No começo, éramos uns 80 presos. Depois, na véspera do Natal, largaram a maioria e ficamos em 13. Fiquei lá de 6 de novembro a 23 de janeiro. Já era minha terceira prisão. Na primeira, me levaram para onde hoje é a chefia de polícia."

“Mais de três, quatro vezes, veio gente na minha casa, ora a mando do Brizola, ora do Jango, para me levar embora (para o Uruguai, onde estavam exilados). Eu não tinha como viver lá, ia viver nas costas deles? Tinha filhos pequenos, então pensei: vou trabalhar aqui. Comecei a advogar. Fiquei dois anos apertado, aí abri um restaurante e fui trabalhar de noite."

E se Jango tivesse ficado?

“Seria luta armada. Eu sempre estive no meio-termo. Achei que, de fato, correr sangue entre irmãos não era o melhor caminho. E nós não tínhamos, em 64, o apoio popular de 61, por causa da inflação. O povo estava meio desencantado. Isso pesou muito. Em 61, o povo estava na rua. Era todo um caldo de cultura não propício à resistência armada.”

Os Estados Unidos

“O Lincoln Gordon (então embaixador dos Estados Unidos no Brasil) foi chave neste processo (do golpe). Depois, inclusive, voltou aos Estados Unidos e escreveu um livro em que conta tudo sobre a Operação Brother Sam. O Jango devia saber. O acordo com Magalhães Pinto (então governador de Minas Gerais), era estabelecer um confronto e, se aguentasse 24 horas, os americanos reconheceriam o governo revolucionário e desembarcariam 30 mil marines no Brasil. Isso, anos depois, conversei com o Jango. Ele disse que, se resistisse ao golpe, ganharia a parada, mas o Brasil ficaria da Bahia para baixo: nunca mais se tiraria os marines do Norte. Tu achas que eles querem o Piauí, a Paraíba ou o Rio Grande do Norte? Eles querem a Amazônia. O Jango tinha muita convicção disso, e o governo americano estava empenhado, achava que ele ia levar o País para o comunismo.” 

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