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Estudo aponta que clientelismo pode melhorar certas políticas públicas - e piorar outras

Pesquisa analisou impacto de troca de favores por votos no bem-estar dos brasileiros, e encontrou tendências que ajudam a explicar problemas persistentes da democracia.

15 jul 2017 - 09h03
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Clientelismo é a troca de favores por votos entre políticos e eleitores. Diferentemente de uma política pública universal, que afeta todos os cidadãos (como uma medida para melhorar a qualidade do ar, por exemplo), é uma ação focada em certos indivíduos.

Foto: BBC News Brasil

Mas se é algo tão ruim para a sociedade, como sugere boa parte dos estudos para o assunto, por que essa prática dura tanto, de forma consistente, tanto em países pobres como ricos?

Essa pergunta motivou o cientista político e professor da FGV Umberto Mignozzetti a investigar a relação entre clientelismo e bem-estar dos cidadãos no Brasil.

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"Um professor nos EUA que estuda clientelismo relatou uma situação em que sua casa ficou coberta de neve. Ele ligou várias vezes para a prefeitura e nada", explica Mignozzetti, ao comentar sua motivação para a pesquisa.

"Quando ligou no comitê local de seu partido, logo apareceu um carro para retirar a neve e um cabo eleitoral cobrando seu voto. Ou seja, se o clientelismo é tão nocivo, porque ocorre até hoje em sociedades desenvolvidas como os EUA?", questiona.

A resposta encontrada por Mignozzetti pode surpreender: um aumento no clientelismo no Brasil melhorou índices de mortalidade infantil e elevou o número de crianças matriculadas no ensino fundamental.

Por outro lado, essas melhorias são distorcidas e não ocorrem de forma homogênea em todos os serviços: afetam apenas coisas que os políticos podem trocar por votos, como vagas em hospitais e em escolas.

Aspectos como saúde preventiva e qualidade da educação, por exemplo, não melhoraram - a conclusão foi que isso ocorre porque são serviços que não podem ser distribuídos individualmente e que não costumam ser valorizados pelos eleitores.

Para Mignozzetti, os achados ajudam a entender as razões de o Brasil e outras democracias recentes apresentarem avanços sociais ambíguos.

Se por um lado, por exemplo, somos um país que reduziu a mortalidade infantil em 60% nos últimos 30 anos, ainda vivemos surtos de doenças causadas pelo Aedes aegypti, como dengue e zika.

Universalizamos o acesso à educação primária, mas ficamos entre os piores do mundo em testes internacionais de desempenho escolar - 66ª colocação em matemática, 63ª posição em ciências e 59ª em leitura entre 70 países avaliados na edição 2015 do Pisa, por exemplo.

"O trabalho ajuda a explicar esse tipo de situação, principalmente em países de democracias recentes, onde há mais pobreza e incentivo para políticos usarem essa pobreza a favor deles", diz o cientista político.

Ou seja, esses efeitos benéficos de curto prazo que identificou na análise acabam deteriorando a qualidade da democracia, por retirarem o incentivo a políticas mais estruturais, de longo prazo.

Medindo o clientelismo

Para medir a "quantidade" de clientelismo presente nas cidades, Mignozzetti aproveitou uma situação que tornou o Brasil ideal para esse experimento.

Em 2004, uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fixou novos critérios para determinar o número de vereadores nas cidades brasileiras - para cada conjunto de 47 mil eleitores, as Câmaras deveriam incluir um novo político. Com isso, boa parte das cidades teve alterações na composição do Legislativo local.

O professor da FGV conseguiu comparar grupos de cidades muito parecidas, em aspectos como população, PIB e percentual de pobreza, mas que passaram a diferir apenas pela mudança no número de vereadores.

O estudo conseguiu, portanto, "isolar" o efeito dos vereadores no período de 2005 a 2008, pois as demais características permaneceram em geral constantes nesse intervalo.

A pesquisa não aponta que todos os vereadores sejam clientelistas, mas constata que são os políticos com maior probabilidade de conduzir essas práticas.

Identificou, por exemplo, que um vereador a mais implicava em 100 novos cargos de confiança no município, e que esse representante extra tinha 91% de chance de ser da base do governo, com maior acesso a recursos.

Outra evidência de que o clientelismo avança com o tamanho da legislatura veio com pesquisas online feitas com vereadores em 174 cidades, com perguntas sobre ações que davam mais retorno em votos e sobre o número de colegas conhecidos por oferecerem serviços clientelísticos, de fiscalização ou legislação.

Questionados sobre os serviços que dão mais votos, por exemplo, 90% dos entrevistados citaram a obtenção de um leito de hospital, e 74% mencionaram o ato de conseguir um remédio para um eleitor. Verificar a qualidade do ensino em uma escola, por outro lado, foi algo citado por apenas 36% dos vereadores.

A partir da premissa, baseada na literatura sobre o assunto, de que os vereadores são os políticos mais próximos da população e estão associados à "oferta" de clientelismo nas cidades, Mignozzetti verificou que as cidades com mais representantes no Legislativo apresentaram melhoras nos índices de mortalidade infantil e de crianças matriculadas no ensino fundamental.

"Ou seja, tudo que o político pode usar para sua máquina clientelista melhora, mas o problema é que esse aumento não é homogêneo em todos os serviços públicos. Nada ocorre com saúde preventiva e qualidade da educação, por exemplo", diz Mignozzetti.

Contraponto

Há quem considere, contudo, que a definição de clientelismo empregada por Mignozzetti seja ampla demais, por englobar práticas que não necessariamente envolvam o compromisso de voto do eleitor.

"É preciso definir melhor o que é clientelismo. A definição tradicional é a velha troca hierárquica, e precisa da comprovação de voto, algo que ficou muito difícil desde o surgimento do voto oficial, da urna eletrônica", afirma o cientista político George Avelino Filho, coordenador do Cepesp (Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público) da FGV.

Avelino Filho diz ainda "não ver como algo necessariamente ruim" o fato de um eleitor procurar um vereador para obter um serviço público, sobretudo no Brasil, onde quase 70% dos municípios têm até 20 mil habitantes.

"Nos EUA, por exemplo, os deputados têm escritórios para atender o eleitor. Em cidades pequenas, muitas vezes não faz sentido criar burocracias para acesso a serviços públicos", considera.

Crise da democracia

A pesquisa, afirma Mignozzetti, conseguiu comprovar o efeito positivo de curto prazo da política clientelista.

"Não é mentira que há melhora do bem-estar se uma criança estiver precisando de um leito de hospital e você der", diz.

O problema, ressalva o professor, é que, quando o político passa a ser julgado apenas por esse tipo de ação, medidas de longo prazo que possam promover mudanças estruturais ficam em segundo plano.

"Quando o eleitor começa a recompensar políticos de acordo com esses serviços (clientelísticos), ele para de olhar para a performance geral do representante. Então, se o político roubou R$ 10 milhões mas me deu uma caixa de antibiótico, o último é que conta", afirma o cientista político.

"Por isso vemos o estouro da corrupção no Brasil - não quer dizer que o político não proveu nada ao eleitor. Você dá um serviço e rouba o quanto quiser", destaca.

Mignozzetti vê nesse dilema - o sistema político incentiva o representante a promover políticas de curto prazo que tragam benefícios imediatos - uma das razões da crise que atinge a democracia em todo o mundo.

"Em vez de avaliar o político sob um ponto de vista global, você o valoriza por esse tipo de troca individual que ele faz com você. Do lado do político para o eleitor, quando ele vê que esse tipo de serviço é melhor do que prover políticas universais, ele tenderá a preferir esse tipo de ação", afirma.

O professor da FGV diz esperar que o estudo, ao promover um diagnóstico mais preciso de algumas razões da crise de legitimidade política, possa ajudar no desenvolvimento de remédios para as enfermidades da democracia.

"Sabendo que são políticas de longo prazo que mudam o país, como construir essas ações a partir desses incentivos do sistema político? Como motivar esses políticos a parar com isso e fazer coisas de longo prazo?", questiona.

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