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ESPECIAL-"Liberdade mas não dignidade": descendentes de escravos lutam por terras 130 anos após abolição da escravidão

11 mai 2018 - 15h20
(atualizado às 15h32)
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Por Karla Mendes

Luiz Pinto posa para foto em frente ao altar do Quilombo Sacopã, na Lagoa, no Rio de Janeiro 25/04/2018 Thomson Reuters Foundation/Karla Mendes
Luiz Pinto posa para foto em frente ao altar do Quilombo Sacopã, na Lagoa, no Rio de Janeiro 25/04/2018 Thomson Reuters Foundation/Karla Mendes
Foto: Reuters

RIO DE JANEIRO (Thomson Reuters Foundation) - Sentado do lado de fora de sua casa, Luiz Pinto observa a estátua do Cristo Redentor enquanto micos roubam frutas de uma árvore em uma reserva de Mata Atlântica em um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro.

Mas Pinto não é um homem rico -- ele é um quilombola, um dos 16 milhões de brasileiros que descendem de escravos fugitivos. Sua pequena casa de tijolos perto da Lagoa Rodrigo de Freitas fica numa área imobiliária nobre da cidade.

O bairro passou por um processo de gentrificação a partir da década de 1960, quando a elite passou a buscar casas à beira da lagoa com vista única para um dos pontos turísticos mais emblemáticos da cidade e por sua proximidade com as praias.

Cerca de 4,5 milhões de escravos foram traduzidos para o Brasil entre 1600 e 1850 para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar e em outros setores da economia do país.

Muitos dos que fugiram das duras condições de trabalho construíram casas em assentamentos em todo o país, conhecidos como quilombos.

"Somos um verdadeiro arquipélago africano. Um montão de negro aqui cercado de branco por tudo quanto é lado," disse Pinto, de 76 anos, apontando para os prédios em volta do Quilombo Sacopã, onde ele mora com 31 familiares.

O Brasil comemora 130 anos de abolição da escravidão no domingo, mas para quilombolas como Pinto, a liberdade tem sido dura.

A família Pinto tem lutado nos tribunais por cinco décadas para assegurar o direito de propriedade sobre a terra do seu quilombo, localizado em uma área antes dominada por engenhos de açúcar.

Os quilombolas estão entre os mais pobres do Brasil e, embora a Constituição de 1988 tenha consagrado seus direitos de propriedade, a maioria deles não possui documentos formais para comprovar a propriedade de suas terras.

Apenas 250 comunidades quilombolas de um total de cerca de 5 mil espalhadas pelo Brasil possuem títulos legais para suas terras, de acordo com a Fundação Cultural Palmares, órgão do governo encarregado de reconhecer o território e a ancestralidade da população afro-brasileira.

SEM DIGNIDADE

Essa falta de título formal os deixa em risco de perder suas casas para a especulação imobiliária e os priva de benefícios sociais, como moradia subsidiada, ou acesso a linhas de crédito para financiar agricultura ou outros negócios, dizem especialistas.

"Há 130 anos nos deram a liberdade mas não deram a dignidade, disse Pinto à Thomson Reuters Foundation na área externa de sua casa no Quilombo Sacopã, um dos cinco assentamentos quilombolas do Rio.

O Brasil é rico em terras prósperas para o desenvolvimento, mas com poucos títulos formais, levando a uma enorme tensão e conflito sobre os direitos de propriedade.

A cidade do Rio, que já foi o maior mercado de escravos do país, por onde entraram mais de 1 milhão de escravos, agora ostenta imóveis caros que custam, em média, quase 10 mil reais por metro quadrado, segundo a FipeZap, um índice que acompanha os preços dos imóveis no país.

No bairro da Lagoa, um metro quadrado custa, em média, 18 mil reais, o que faz com que o valor da área de 6.400 metros quadrados onde Pinto e seus 31 familiares vivem chegue a cerca de 115 milhões de reais.

"As favelas, as pessoas humildes que moravam aqui... foram removidos na marra," disse Pinto. "O fato de a gente ter resistido e ter ficado aqui... é uma vitória talvez única em cima da especulação imobiliária. Coisa assim que é uma zebra."

Mas essa resistência teve um preço, diz Pinto.

Depois de reclamações de vizinhos, uma decisão judicial expedida em 1989 proibiu a família Pinto de promover manifestações culturais como atividade turística sob a alegação de que o quilombo está localizado em uma área residencial, privando-os de fazer suas tradicionais rodas de samba e jongo com feijoada, sua principal fonte de renda.

"A morosidade da titulação e o racismo, que é um elemento estruturante, são grandes problemas hoje," afirma Layza Queiroz, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos. "O Brasil é racista na medida em que ele entende que esses povos não deviam existir ou não existem, segundo o seu modo de vida."

No ritmo atual, levaria 970 anos para concluir o processo de atribuição de títulos de terra a todas as comunidades quilombolas, estima a Terra de Direitos.

Para Antonio Oliveira Santos, coordenador-geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o problema é decorrente do longo processo burocrático para se obter títulos de terra, o que depende de pesquisas e investigações sobre a ancestralidade das comunidades.

"Não é uma coisa simples... O que dificulta o procedimento ser mais rápido é o próprio procedimento também porque a legislação requer várias etapas", disse Santos.

O Incra é obrigado por lei a fornecer um relatório complexo sobre a história da comunidade, a ascendência de seus membros, bem como questões ambientais, culturais e religiosas, disse ele. Dados da pesquisa da terra também são necessários para completar o relatório, acrescentou.

O orçamento do governo para fornecer títulos de terra aos moradores de quilombos foi reduzido em 93 por cento nos últimos cinco anos, de acordo com a ONG Justiça Global.

"Nosso orçamento reduziu bastante, mas estamos tocando a política," disse Santos.

Um exemplo de titulação de terras que ganhou ímpeto ocorreu em março, quando as 500 pessoas do Quilombo Cachoeira Porteira, no Estado do Pará, obtiveram títulos de 220.000 hectares de terra, um dos maiores territórios já titulados no país.

AMEAÇAS

Os quilombolas não enfrentam apenas burocracia -- aqueles que ficam no front da luta por seus direitos à terra enfrentaram ameaças, violência e morte.

No ano passado, 14 quilombolas foram assassinados em todo o Brasil, quase o dobro de oito mortes no ano anterior, de acordo com uma pesquisa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Seis deles eram ativistas.

No mês passado, um proeminente militante na Amazônia, o quilombola Nazildo dos Santos Brito, foi morto a tiros no Estado do Pará, disseram autoridades, levantando preocupações quanto ao aumento da violência ligada a disputas por propriedades que afetam os descendentes de escravos.

Na selva urbana do Rio, Adilson Almeida ainda se recupera do dia de 2014 quando as escavadeiras chegaram ao seu Quilombo Camorim, uma área antes dominada por plantações e engenhos de cana-de-açúcar onde a "casa grande" ainda está de pé.

Camorim, no bairro de classe média de Jacarepaguá, ganhou reconhecimento como quilombo em 2014 e os moradores começaram a reivindicar uma área de sete acres, disse Almeida.

Mas já era tarde demais -- uma construtora disse que comprou as terras que os quilombolas reivindicam de proprietários privados para construir prédios para abrigar jornalistas da mídia internacional durante a cobertura da Olimpíada do Rio de 2016.

Em um comunicado por e-mail, a construtora Living informou que adquiriu a terra de acordo com a lei e outros requisitos do governo e não foi notificada de qualquer reivindicação sobre a área pela comunidade quilombola.

Dois anos depois da Olimpíada, a maioria dos apartamentos construídos para abrigar jornalistas está à venda, disse Almeida.

"Desde pequeno sempre andei e circulei aqui. Inclusive meus antepassados que trabalhavam no engenho na época, os avós dos meus pais. É uma terra que já é nossa há muitos anos", disse Almeida, líder do Quilombola Camorim.

Almeida ainda luta para conseguir o título da terra da área dentro do quilombo onde moram 20 famílias.

Em 2015 ele escapou por pouco da explosão de uma bomba caseira em sua casa, mas disse que nem isso o impediu de continuar lutando pelos direitos à terra dos quilombolas.

"Ser quilombola para mim é buscar minha ancestralidade, minha identidade, minhas raízes. É mostrar de onde eu vim... Por mais que tenhamos essas problemáticas, eu tenho apelido de guerreiro já não é à toa," disse Almeida, enquanto seus companheiros quilombolas dançam jongo durante uma festa em homenagem a São Jorge.

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