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Transporte compartilhado e bicicleta ganharão força no pós-pandemia, diz professor do MIT

Em entrevista ao Estadão, urbanista e engenheiro Carlo Ratti também falou sobre o conceito da 'cidade sensível', que usa tecnologia para melhora da qualidade de vida e que será tema de painel no Summit Mobilidade Urbana

16 mai 2021 - 13h01
(atualizado em 17/5/2021 às 08h56)
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Em vez do conceito da "smart city", o urbanista e engenheiro italiano Carlo Ratti é um defensor do uso da tecnologia e da criatividade como ferramentas para melhoria da qualidade de vida no ambiente urbano. A essa proposta, ele dá o nome de "senseable city" (cidade sensível), mesmo nome do laboratório de inovação que dirige no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), no qual também é professor.

Urbanista e engenheiro Carlo Ratti defende experiências tecnológicas para tornar cidades mais ‘habitáveis’
Urbanista e engenheiro Carlo Ratti defende experiências tecnológicas para tornar cidades mais ‘habitáveis’
Foto: Senseable City Lab/MIT/Reprodução / Estadão

Ao longo da última década, as criações que Ratti fez no MIT e no escritório Carlo Ratti Associati figurarem em listas de publicações internacionais, como Time Magazine, Wired e Esquire, colocando o urbanista entre os principais nomes em inovação e design no mundo. A menos de uma semana de participar do Summit Mobilidade Urbana - que ocorre de forma digital e gratuita de 17 a 21 de maio (mais informações em summitmobilidade.estadao.com.br) -, ele concedeu uma entrevista sobre o futuro das cidades ao Estadão.

Entre os pontos abordados, está o refortalecimento das cidades após a pandemia, o crescimento dos deslocamentos a pé e por bicicleta, o papel do transporte compartilhado em meio às mudanças climáticas e as contribuições que a tecnologia pode trazer para a mobilidade urbana. Além disso, ele também comentou projetos que desenvolve para Brasília (da criação de um novo bairro planejado) e o Rio (de escaneamento de favelas, a começar pela Rocinha).

Confira os principais trechos abaixo:

Como o senhor acha que a pandemia vai afetar o futuro das cidades? Haverá mudanças significativas no modo como as pessoas vivem e se locomovem?

De uma perspectiva de longo prazo, acredito que as cidades retornarão à vibração pré-pandêmica. Em 10 mil anos de história, as cidades passaram por surtos ainda mais prejudiciais - como a peste negra no século 14, que exterminou 60% da população de Veneza -, mas sempre conseguiram se recuperar e voltar. Ainda assim, isso não significa que tudo permanecerá igual. Olhando para aspectos mais específicos da sociedade, algumas mudanças podem ocorrer no setor imobiliário. O "smart working" (termo associado ao uso de novas tecnologias para melhorar a dinâmica profissional, geralmente associado ao home office) pode reduzir as demandas de longo prazo por escritórios, enquanto um efeito compensatório pode tornar obsoleto espaços de trabalho em unidades residenciais, nas quais passamos mais tempo. Essa abordagem é uma que está sendo seguida pela cidade de Paris, como parte da competição em andamento Reinventing Cities. Mudando para a (questão sobre a) forma como as pessoas se movem, a pandemia possibilitou formas mais flexíveis e eficientes de deslocamento entre casa e trabalho. Além disso, certos fenômenos que estavam há muito em formação foram colocados concretamente no radar. Estou pensando em micromobilidade, como bicicletas e e-scooters compartilhadas. Eles são mais sustentáveis do que carros particulares, enquanto permitem às pessoas mais espaço pessoal do que ônibus e metrô por questões de higiene.

O conceito de 'smart cities' se tornou bastante difundido nos últimos anos. Ele ainda faz sentido neste momento ou precisa passar por mudanças?

Levando o conceito de "smart cities" a um passo adiante, eu proporia o termo "senseable cities" ("cidade sensível"). O primeiro dá uma impressão de tecnologia em prol da tecnologia e, em comparação, "cidade sensível" reconhece que a tecnologia deve ser usada para o avanço da vida humana: estratégias de detecção podem ajudar o ambiente urbano a responder às necessidades dos cidadãos em tempo real; e as cidades se tornam um espaço de vida mais sensível por causa disso. Outra característica do planejamento urbano que gostaria de destacar é a importância da experimentação: devemos abordar as soluções baseadas em "smart cities" com a mesma estrutura de tentativa e erro que usamos para startups e economia da inovação. Mais experimentos urbanos significam uma chance maior de realizar inovações com sucesso e tornar as cidades mais habitáveis. As imperfeições devem ser vistas como parte do processo e os cidadãos devem ter um papel proeminente nos ciclos de feedback para a melhoria contínua.

As cidades brasileiras enfrentam ainda grande desigualdade social, infraestrutura insuficiente e recursos governamentais limitados. Como as inovações tecnológicas podem ajudar nesse cenário?

Muitas tecnologias são acessíveis a todos. Em recente viagem ao Rio de Janeiro, percebi como a micromobilidade (caracterizada pelos deslocamentos curtos feitos por meios de transportes individuais e leves, como bicicletas e patinetes) está transformando a cidade. Além disso, em todo o mundo tenho visto pessoas sem água encanada e com smartphones, este último é um importante portal para acessar dados em tempo real e a "cidade sensível". Um comentário final: muitas cidades - inclusive Brasília - sofrem com o modernismo monofuncional no século 20. Mas, recentemente, uma alternativa tem sido mais defendida: bairros de uso misto, que ajudam os cidadãos a chegarem a residências, escritórios, escolas e lojas com facilidade. O conceito foi concretizado pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo, por meio da "cidade de 15 minutos", que visa exatamente reduzir o tempo de deslocamento. Nesse cenário, a micromobilidade seria muito útil para levar os cidadãos em viagens curtas ao redor (e através) de diferentes zonas.

É possível realizar mudanças nas cidades sem envolver melhorias na mobilidade urbana?

Desde que nasceram, há 10 mil anos, as cidades sempre foram sobre o ajuntamento de pessoas. Como tal, a mobilidade - que facilita a reunião dos cidadãos - é parte integrante das cidades que não pode ser deixada de fora de qualquer conversa urbana.

Qual o papel dos dados na reformulação da mobilidade urbana?

Os dados estão causando um impacto profundo na mobilidade. Em primeiro lugar, eles nos permitem compreender melhor a infraestrutura de mobilidade urbana e deixá-la evoluir. Além disso, os dados também são importantes para forjar um sistema de mobilidade mais eficiente, onde diferentes modos de transporte podem ser sincronizados. Chamamos isso de "Moving Web", uma plataforma digital que agrega dados sobre ônibus, trens e outros veículos e transmite essas informações em tempo real, para que os passageiros possam planejar suas viagens com as opções de mobilidade mais adequadas às circunstâncias. Basta uma única reserva no aplicativo móvel para que eles reservem uma bicicleta para chegar à estação de trem, andem de trem e depois retirem um carro para completar o último quilômetro.

Projeto usa digitalização a laser 3D para analisar morfologia da Rocinha.
Projeto usa digitalização a laser 3D para analisar morfologia da Rocinha.
Foto: Delfino Sisto Legnani e Marco Cappelletti/Divulgação Carlo Ratti Associati / Estadão

Na pandemia, parte da população tem evitado utilizar o transporte coletivo. O senhor acredita que esse comportamento é momentâneo ou poderá atrapalhar o desenvolvimento das cidades no pós-pandemia?

Vimos uma mudança no uso do carro nos últimos anos antes da pandemia: os serviços de compartilhamento de carros e caronas, incluindo Uber, Lyft e Via, foram adotados em níveis crescentes. Devido às circunstâncias da covid-19, as pessoas estão menos inclinadas a compartilhar um veículo com estranhos. Mas acredito que isso seja apenas temporário. No futuro próximo, quando a pandemia diminuir, acho que recuperaremos a confiança na mobilidade compartilhada. Na mesma linha, a micromobilidade também tornará o transporte público mais competitivo, ao obrigá-lo a melhorar seus padrões sanitários. A longo prazo, os carros autônomos podem desencadear uma cultura de compartilhamento ainda mais difundida. Imagine um cenário onde um carro dá uma carona para o escritório pela manhã e depois leva outra pessoa para o outro lado do bairro, comunidade ou cidade. O carro pode até ser ocupado por indivíduos em diferentes viagens simultaneamente para aproveitar ao máximo sua capacidade.

Qual é a importância de mudanças na mobilidade urbana para lidar com as mudanças climáticas?

O compartilhamento de carros e carros compartilhados são estratégias potentes que podem reduzir o número total de carros na cidade por uma grande margem. Menos carros significam menos emissão de gases de efeito estufa em geral. A adoção de mobilidade ativa - caminhar ou andar de bicicleta - também seria muito eficaz, principalmente em um país com um clima tão bonito como o Brasil. Afinal, se as bicicletas estão facilitando 30% de todas as viagens no inverno nevado de Copenhague, por que isso não pode ser mais comum em um cenário latino-americano tropical?

Como foi o desenvolvimento do seu recente projeto para Brasília? Quais características do projeto do Lúcio Costa para a cidade permanecem de acordo com as necessidades de hoje?

A intelectual francesa Simone de Beauvoir uma vez descreveu a capital brasileira assim: "A rua, aquele ponto de encontro de transeuntes, de lojas e casas, de veículos e pedestres não existe em Brasília, e nunca existirá". Não concordo totalmente com ela, mas é verdade que o planejamento modernista não ajudou a realizar todo o potencial do espaço público. Isso é o que tentamos alcançar com o Biotic (bairro multifuncional que tem previsão de abrigar residências, escritórios, universidades, comércios e espaços públicos, com objetivo de ser tecnológico e sustentável), nosso plano mestre para a expansão da cidade. A adição de elementos tecnológicos e naturais pode melhorar ainda mais o ambiente de vida. Dito isso, as "linhas modernistas clássicas", que se tornaram um traço distintivo de Brasília e inspiraram inúmeros alunos das escolas de arquitetura e engenharia, é algo que buscamos preservar no novo empreendimento, que parte das proporções das superquadras e as reinterpreta.

O senhor também desenvolve um projeto em parceria com a Prefeitura do Rio, para as favelas. Como será essa contribuição?

Favelas 4D é um projeto que estamos conduzindo no MIT com Washington Fajardo, secretário de planejamento urbano da cidade do Rio de Janeiro. A nossa ideia é usar a tecnologia de digitalização a laser 3D para analisar a morfologia da Rocinha. Conseguimos construir uma representação precisa do tecido complexo da favela - graças ao sistema de varredura LiDAR (Light Detection and Ranging) que gera dados detalhados de nuvem de pontos no nível da rua, a variação morfológica (desenho da via, construções, relevo e afins) da área foi capturada quantitativamente em alta resolução. Favela 4D poderia servir a muitos propósitos: fornecer aos residentes um endereço muito necessário, desenvolver uma estrutura para atribuir títulos de propriedade e permitir o projeto de intervenções cirúrgicas para tornar o tecido urbano mais saudável e seguro. Finalmente, pode ser um recurso valioso globalmente para elevar os padrões de vida de assentamentos informais, ajudando a conectá-los com a cidade formal mais ampla.

Estadão
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