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Tragédia em Santa Maria

RS: juiz quer 'reconstituição virtual' de tragédia da Kiss

Manifestação do magistrado foi feita após novo pedido de uma das defesas para entrar na boate. Duas vítimas depuseram na manhã desta quinta-feira no Fórum de Santa Maria

5 set 2013 - 14h54
(atualizado em 6/9/2013 às 17h41)
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Mais atento do que nunca às questões que cercam o processo criminal da tragédia da Boate Kiss, o titular da 1ª Vara Criminal de Santa Maria (RS), juiz Ulysses Fonseca Louzada, manifestou, na manhã desta quinta-feira, o interesse para que seja feita uma “reconstituição virtual” do incêndio na casa noturna, que causou a morte de 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas na madrugada de 27 de janeiro. O anúncio foi feito após mais um pedido da defesa para que seja permitido o ingresso de peritos particulares na Kiss. 

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O primeiro depoimento desta quinta-feira foi do policial civil Rodrigo Souza da Silveira, 35 anos. Ele contou que só entrou na Kiss por volta das 1h30 do dia 27 de janeiro porque estava passando na frente da boate e foi convidado a entrar pelo gerente da casa, Ricardo de Castro Pasch, que já era seu amigo e lhe deu uma cortesia para não pagar ingresso.

Silveira relatou detalhes a respeito das dificuldades para sair da Kiss na hora em que o tumulto começou por causa do incêndio. “Em questão de segundos, baixou uma cortina preta de fumaça e foi um ‘Deus nos acuda’. Não era mais racional, era um instinto de sobrevivência”, disse.

O policial civil tinha acabado de sair do banheiro perto da porta de saída. Ele estava pedindo uma bebida em um dos bares e percebeu que algo estava errado. Inicialmente, até pensou que fosse briga. Diante do tumulto das pessoas para sair, ele percebeu que algumas iam para o lado errado. “Eu tinha certeza que a saída não era por ali. Tinha vontade de gritar, mas não tinha forças”, relatou Silveira, que chegou a se cortar em um dos guarda-corpos perto da saída que havia sido quebrado pelas pessoas nos momentos de desespero.

Depois que o juiz Louzada fez as perguntas que desejava, houve um pequeno bate-boca entre o promotor Joel Oliveira Dutra e advogados de defesa sobre quem questionaria a vítima primeiro, já que ela havia sido listada por um dos defensores. No fim, tudo seguiu na ordem costumeira, com o Ministério Público dando início às questões, seguido pelos assistentes de acusação e pelos advogados de defesa.

Após a pequena discussão, Rodrigo Souza da Silveira seguiu com seu depoimento. Como ele não viu o início do fogo, seguiu com o relato sobre a saída das pessoas da Kiss. “Era idade média, tempo das cavernas. Cada um por si tentando sair. Não havia ninguém orientando a saída”, disse. E acrescentou: “demorei uns 40 segundos para sair, mas isso (naquela situação) era uma vida”. O policial também destacou que os guarda-corpos dificultaram bastante a evacuação. “As grades eram um brete. O povo parecia gado”, comparou Silveira.

Antes do segundo depoimento desta quinta, o advogado Omar Obregon, que defende o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, fez um requerimento para que seu cliente esteja ausente nos depoimentos que serão feitos em outras cidades, por meio de cartas precatórias. Ele também pediu que os advogados que estiverem representando a defesa, seja como defensor nomeado ou público, não façam perguntas nas audiências que ocorrerem fora de Santa Maria. Nesse quesito, Obregon foi acompanhado por outros advogados de defesa.

O advogado do vocalista reiterou que gostaria de ver o cenário da Kiss preservado, para que fosse feita uma vistoria particular, mesmo pedido que já havia sido feito pela defesa do sócio da Kiss Elissandro Spohr, o Kiko. O juiz Ulysses Louzada, em manifestação anterior, já havia negado às defesas o acesso à boate por causa dos riscos à saúde.

Magistrado pedirá ajuda para a UFSM

A resposta do juiz aos pedidos dos defensores veio após a 1ª Vara Criminal receber um ofício do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), sediado em Santa Maria. Profissionais do Cerest recolheram amostras de resíduos do interior da casa noturna, no dia 26 de março, e depois enviaram o material para análise do Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), vinculada ao governo paulista. O exame apontou a presença de 17 produtos químicos no pó residual que estava na Kiss.

Diante dos riscos, o juiz comentou que quer que seja feita uma “reconstituição virtual” dos fatos ocorridos no dia da tragédia. Para fazer isso, o magistrado disse que vai pedir a ajuda da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “Nem sei se isso é possível. Vou conversar com o reitor, Felipe Müller, a respeito, vou pedir uma ajuda”, disse Louzada. 

Em relação às audiências para ouvir vítimas que serão fora de Santa Maria, Louzada se manifestou, informalmente, que pretende acompanhá-las nas outras cidades, para garantir que tudo ocorra da melhor maneira.

Duas audiências já têm datas marcadas: uma em Rosário do Sul (RS), em 23 de setembro, e outra em Uruguaiana (RS), em 25 de setembro. Essa última, garantiu o juiz Louzada, terá a data alterada, pois haverá audiência nesse mesmo dia em Santa Maria. As que vão ocorrer em Horizontina (RS), Passo Fundo (RS) e Quaraí (RS) ainda não foram marcadas. Uma vítima que iria depor em Caxias do Sul (RS) não foi localizada, mas os advogados do sócio da Kiss Mauro Hoffmann, Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes, reforçaram que gostariam que ela seja ouvida . Uma nova tentativa deve ser feita em breve.

Público na madrugada do incêndio não era o habitual, diz caixa da casa noturna

Depois dos requerimentos de Obregon, ainda foi ouvida, na manhã desta quinta, Michele Baptista da Rocha Schneid, 22 anos, que trabalhava na Kiss havia 10 meses, primeiro como atendente de bar e, nos últimos dois meses, como caixa. Ela contou que foi contratada por Ângela Callegaro, irmã de Elissandro Spohr, e que recebia ordens dela e do gerente da Kiss, Ricardo de Castro Pasch. Michele ressaltou que nunca recebeu qualquer determinação direta do outro sócio da boate, Mauro Hoffmann.

Outro detalhe ressaltado por Michele foi que, na noite da tragédia, o público que estava na Kiss não era o habitual. Por isso, na visão dela, as pessoas tiveram mais dificuldade de sair, pois não conheciam bem a casa. A caixa também disse que, até à 1h30 do dia da tragédia, tinham ingressado na boate “de 700 a 800 pessoas”.

Michele também destacou, em seu depoimento, que as reformas na Kiss eram frequentes nos 10 meses em que trabalhou lá. “De vez em quando, os próprios funcionários eram surpreendidos pelas reformas”, comentou.

A caixa acrescentou que não havia limites para a entrada de mais gente na boate. “Nunca vi eles (gerência da Kiss) mandarem parar de entrar porque estava lotado”, revelou Michele. A única orientação, quando estivesse cheio, era para cobrar mais cara a entrada. “Quando passava de mil, eles (gerência) aumentavam o preço do ingresso. O Ricardo (de Castro Pasch, gerente) dizia: ‘Está muito lotado, vamos aumentar o preço’”, afirmou.

Jovem teve hemorragia no pulmão por ter sido pisoteada

A última pessoa ouvida nesta quinta foi Tatiele Maria Silveira Rodrigues, 27 anos, que ia pela primeira vez à boate. Ela disse que nem sabe como conseguiu sair do local, pois foi esmagada perto da porta que dava para a rua e desmaiou. Antes disso, Tatiele contou que teve que passar por baixo de um guarda-corpo que trancava as pessoas.

A jovem chegou a ficar internada por nove dias em Porto Alegre. Ela teve hemorragia no pulmão, porque foi pisoteada no tumulto, e diz que expele fuligem até hoje. Tatiele ainda disse que o namorado dela morreu na tragédia, sem mencionar o nome dele.

O depoimento de Tatiele seria o penúltimo do dia, pois, de acordo com a programação, Nathália Socal Daronch, namorada de Elissandro Spohr, iria falar nesta quinta. Mas, como ela se mudou para Porto Alegre, seu depoimento será tomado na capital gaúcha, em data a ser marcada. Até esta quinta-feira, foram ouvidas 54 pessoas no processo criminal, duas delas em Porto Alegre (RS) e duas em Rosário do Sul.

Próxima audiência será em 10 de setembro

Outro depoimento que não se confirmou nesta quinta foi o de Adalberto da Costa Diaz, que atuava como segurança da Kiss. Ele não foi localizado para ser intimado. A informação é que a testemunha estaria morando em Santa Cruz do Sul (RS).  A próxima audiência em Santa Maria está marcada para a próxima terça-feira, quando devem ser ouvidas seis pessoas. Entre elas, dois seguranças que trabalhavam na Kiss.

Respondem ao processo criminal pelas 242 mortes e os mais de 600 feridos os sócios da Kiss Elissandro Spohr e Mauro Hoffman, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o roadie do grupo, Luciano Bonilha Leão. Eles são acusados por homicídios qualificados com dolo eventual (doloso) e tentativas de homicídio qualificado.

Roadie da Gurizada Fandangueira flagra luz de emergência estragada

Na manha desta quinta-feira, como já ocorreu em outras audiências, apenas Marcelo e Luciano compareceram. O roadie da Gurizada Fandangueira comentou que uma luz de emergência, em uma das saídas do Salão do Tribunal do Júri de Santa Maria, não estava funcionando. Ele fez questão de destacar o fato e ainda mostrou à imprensa que o equipamento realmente estava estragado.

A novidade entre os assistentes de acusação foi a presença do advogado Ricardo Jobim, sobrinho de Nelson Jobim, ex-ministro da Justiça e da Defesa. Ele estava representando a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Também atuaram como assistentes, na manhã desta quinta, os advogados Pedro Barcellos, Vinícius Jensen e Rodrigo Dias.

Incêndio na Boate Kiss
Na madrugada do dia 27 de janeiro, um incêndio deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). O fogo na Boate Kiss começou por volta das 2h30, quando um integrante da banda que fazia show na festa universitária lançou um artefato pirotécnico, que atingiu a espuma altamente inflamável do teto da boate.

Com apenas uma porta de entrada e saída disponível, os jovens tiveram dificuldade para deixar o local. Muitos foram pisoteados. A maioria dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica, contendo cianeto, liberada pela queima da espuma.

Os mortos foram velados no Centro Desportivo Municipal, e a prefeitura da cidade decretou luto oficial de 30 dias. A presidente Dilma Rousseff interrompeu uma viagem oficial que fazia ao Chile e foi até a cidade, onde prestou solidariedade aos parentes dos mortos.

Os feridos graves foram divididos em hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, para onde foram levados com apoio de helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira). O Ministério da Saúde, com apoio dos governos estadual e municipais, criou uma grande operação de atendimento às vítimas.

Quatro pessoas foram presas temporariamente - dois sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos. Enquanto a Polícia Civil investiga documentos e alvarás, a prefeitura e o Corpo de Bombeiros divergem sobre a responsabilidade de fiscalização da casa noturna.

A tragédia fez com que várias cidades do País realizassem varreduras em boates contra falhas de segurança, e vários estabelecimentos foram fechados. Mais de 20 municípios do Rio Grande do Sul cancelaram a programação de Carnaval devido ao incêndio.

No dia 25 de fevereiro, foi criada a Associação dos Pais e Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria. A associação foi criada com o objetivo de oferecer amparo psicológico a todas as famílias, lutar por ações de fiscalização e mudança de leis, acompanhar o inquérito policial e não deixar a tragédia cair no esquecimento.

Indiciamentos
Em 22 de março, a Polícia Civil indiciou criminalmente 16 pessoas e responsabilizou outras 12 pelas mortes na Boate Kiss. Entre os responsabilizados no âmbito administrativo, estava o prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (PMDB). A investigação policial concluiu que o fogo teve início por volta das 3h do dia 27 de janeiro, no canto superior esquerdo do palco (na visão dos frequentadores), por meio de uma faísca de fogo de artifício (chuva de prata) lançada por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.

O inquérito também constatou que o extintor de incêndio não funcionou no momento do início do fogo, que a Boate Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás, que o local estava superlotado e que a espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular. Além disso, segundo a polícia, as grades de contenção (guarda-corpos) existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída de vítimas, a boate tinha apenas uma porta de entrada e saída e não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência - as portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário e não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.

Já no dia 2 de abril, o Ministério Público denunciou à Justiça oito pessoas - quatro por homicídios dolosos duplamente qualificados e tentativas de homicídio, e outras quatro por fraude e falso testemunho. A Promotoria apontou como responsáveis diretos pelas mortes os dois sócios da casa noturna, Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e dois dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão.

Por fraude processual, foram denunciados o major Gerson da Rosa Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros, e o sargento Renan Severo Berleze, que atuava no 4º CRB. Por falso testemunho, o MP denunciou o empresário Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da Kiss, e o contador Volmir Astor Panzer, da GP Pneus, empresa da família de Elissando - este último não havia sido indiciado pela Polícia Civil.

Os promotores também pediram que novas diligências fossem realizadas para investigar mais profundamente o envolvimento de outras quatro pessoas que haviam sido indiciadas. São elas: Miguel Caetano Passini, secretário municipal de Mobilidade Urbana; Belloyannes Orengo Júnior, chefe da Fiscalização da secretaria de Mobilidade Urbana; Ângela Aurelia Callegaro, irmã de Kiko; e Marlene Teresinha Callegaro, mãe dele - as duas fazem parte da sociedade da casa noturna.

Fonte: Terra
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