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Rio: atropelado por caminhão da prefeitura busca indenização há 23 anos

Ricardo Nabinger da Silva perdeu a mobilidade dos membros inferiores após acidente provocado por imprudência de motorista

25 mar 2013 - 08h22
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Antecipação de tutela concedida pela Justiça não é suficiente para cobrir os custos decorrentes das condições físicas de Nabinger
Antecipação de tutela concedida pela Justiça não é suficiente para cobrir os custos decorrentes das condições físicas de Nabinger
Foto: Mauro Pimentel / Terra

Nos últimos 23 anos, os Estados Unidos se envolveram em duas guerras do Golfo Pérsico, uma no Afeganistão, também brigaram no Kosovo e em outras frentes. Saddam Hussein e Osama Bin Laden emergiram como ameaças e tiveram o mesmo fim. O Brasil recuperou e perdeu de novo a hegemonia do futebol mundial. O País também teve seis presidentes - cinco deles eleitos pelo voto direto, pois a ditadura acabou. Ricardo Nabinger da Silva assistiu a todos estes eventos preso na sua própria ditadura: em cima de uma cadeira de rodas, à espera de uma decisão da Justiça que não vem.

O dia 20 de novembro de 1989 mudou a vida do engenheiro definitivamente. Para bem pior. Ele, que costumava jogar vôlei de praia em Ipanema e aproveitar a vida noturna da zona sul com o bom salário que recebia, foi atropelado por um caminhão da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) do Rio de Janeiro enquanto dirigia uma moto - uma de suas grandes paixões. O veículo da prefeitura fazia uma manobra não permitida para subir no canteiro da avenida das Américas, na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade.

Ricardo ficou em coma por quatro meses e carrega desde então inúmeras sequelas que inviabilizam uma vida normal. Perdeu toda a mobilidade dos membros inferiores e a movimentação da mão direita. Perdeu o controle dos esfíncteres peniano e anal. Perdeu a potência sexual. Perdeu tempo e muita qualidade de vida - usa sondas, aquelas bolsinhas onde os dejetos ficam retidos, e passa boa parte do tempo enclausurado em casa, sem contar as escaras na pele por causa do tempo exagerado em cadeira de rodas e na cama. Mas, principalmente, perdeu 23 anos em busca de justiça.

Ele entrou com uma ação em 1990 em busca de reparação - uma indenização que pudesse garantir condições dignas de vida. Um processo como o de Ricardo, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dura cerca de oito anos em média. O do velejador Lars Grael, que perdeu uma perna num acidente náutico, demorou cinco anos para ter uma definição - que resultou em indenização de mais de R$ 2,5 milhões ao medalhista olímpico, além de pensão vitalícia de R$ 7 mil. Mas o tempo passou e a ação de Ricardo permanece sem uma decisão final.

"Você fica desesperançoso. Porque você vê determinados casos serem resolvidos com rapidez. E outros com morosidade enorme. Assim como o meu, deve haver outros tantos. No início tinha uma certa esperança que um juiz tivesse um lado mais humanitário. Que quando alguém visse o amontoado de sequelas com que fiquei, tudo que passo, que isso fosse criando um certo sentimento de compaixão. Aos 35 anos (idade que tinha quando sofreu o acidente), você está no pleno vigor tanto no campo profissional quanto no masculino. Aí você vê a sua vida ser secionada. Passa a ser uma criança com 35 anos e tem de reaprender tudo", afirma Ricardo, hoje com 59 anos.

Morosidade da Justiça

Em novembro de 1995, seus advogados ganharam ação contra a Comlurb no Superior Tribunal de Justiça (STJ) - processo julgado pelo ministro Waldemar Zveiter, que já está aposentado há 12 anos. Uma vitória significativa: lhe garantiu o direito a uma indenização justa, já que verificou que toda a culpa do acidente fora do motorista do caminhão. Mas os resultados práticos foram pouco expressivos. Como antecipação de tutela, o engenheiro conquistou o direito de receber o equivalente a 10 salários mínimos - que a empresa congelou entre 2005 e 2012: enquanto o salário básico do trabalhador brasileiro era reajustado todo ano e chegava a R$ 622, o de Ricardo permanecia em R$ 350. O resto deixou de ganhar porque a empresa municipal interpôs mais de 30 recursos de toda ordem, sem contar manobras como o congelamento do salário mínimo de Ricardo, que só atrasam a decisão final na fase de execução da pena.

"O que mais frustra um advogado é que a gente tem tudo. Temos as razões, a decisão favorável. Mas esbarramos na morosidade da Justiça e nesta infinidade de recursos que só servem para adiar a indenização. Falta apenas a execução, mas esta parte do processo já dura quase 20 anos", diz o advogado José Antônio Grillo Ivo, que já ficou constrangido diante de seu cliente. "Você se sente um advogado de m... porque o cliente precisa da indenização e tudo que você pode dizer para ele é que ainda não saiu."

Na fase de execução do processo - quando se chega a um valor para a indenização a que o autor da ação tem direito -, a juíza Maria Tereza Pontes Gazineu convocou uma audiência especial para que os advogados de Ricardo propusessem um valor indenizatório (calculado por eles em torno de R$ 9 milhões, levando-se em conta pedidos de cadeira de rodas, enfermeiros, remédios etc). A Comlurb pediu 30 dias para dar uma resposta. Isso ocorreu no dia 30 de outubro do ano passado. De lá para cá, passaram-se quase cinco meses, e tudo que o engenheiro recebeu da companhia foi silêncio. A magistrada também não proferiu nenhuma decisão.

"Tudo bem que o cálculo deu um valor alto. Mas a Comlurb não se manifestou nem sequer para dizer que o Ricardo está devendo R$ 500 para ela porque quebrou o caminhão com a cabeça. É um desrespeito", lamenta Grillo Ivo.

Valor não cobre gastos

A antecipação de tutela a que Ricardo tem direito é insuficiente. Ele tem um único enfermeiro que recebe R$ 1,8 mil mensais - precisaria de pelo menos dois. Toma quatro tipos de remédios. Num mês, precisa de 10 caixas de um deles. Cada uma custa mais de R$ 300. Mora de aluguel num pequeno apartamento do Humaitá, zona sul do Rio, onde a cadeira de rodas passa raspando nas paredes. Um prédio que não coloca degraus como abismo na sua frente. Não tem empregada doméstica e precisa fazer suas refeições em restaurantes todo o dia.

Em setembro de 2011, sem enfermeiro em casa, foi fazer a passagem da cadeira de rodas para a cama à noite. Um movimento involuntário de uma das pernas bem no momento inviabilizou a manobra. Ricardo caiu. Quebrou o fêmur. Sozinho, sem mobilidade, passou a noite inteira atirado no chão com as dores da fratura. Só na manhã seguinte, quando o enfermeiro voltou, foi levado para uma emergência e passou por uma cirurgia.

"Internamente você passa a ficar medroso. Eu fazia isso há 20 anos e nunca tive o menor problema. Aí acontece isso e é mais uma dificuldade para se lidar mentalmente. O certo seria ter um enfermeiro 24 horas, ou pelo menos por um período mais longo", lembra.

Ricardo passa por essas e tantas outras dificuldades sem ter condições de custear uma ajuda psicológica. "É muito difícil lidar com isso. Principalmente porque tem toda a parte sexual. Você deixa de ter controle sobre ereção. Não bastasse tudo, ainda tem tudo isso. Você imagina como isso funciona no teu intelecto. Você não se sente mais homem."

Morte seria 'muito menos dolorosa'

No início, Ricardo, que não pode mais exercer sua profissão por causa das limitações, chegava até a lamentar que o caminhão da Comlurb não tivesse lhe matado. "Nos cinco primeiros anos do acidente, eu questionava muito. As pessoas exaltam que eu sou um lutador, mas eu questionava isso. Sobrevivi para quê? Hoje em dia não me questiono mais sobre isso, mas isso permanece naquele fundinho da cabeça. Alguma razão deve haver para alguém passar tanto tempo por todas estas etapas. Não teria sido muito mais fácil ter falecido? Acho que teria sido muito menos doloroso."

Apesar da imprudência de um motorista da companhia de limpeza urbana do Rio, Ricardo não morreu. A espera por uma decisão persiste. Sozinho na vida depois da morte dos pais, o que ocorreu quando já andava em cadeira de rodas, ele tenta já nem pensar em como sua vida poderia melhorar com a indenização.

"Teve um período em que parava para pensar, hoje em dia não faço isso. Vira uma espécie de utopia. É algo que você almeja, mas parece que não vai alcançar nunca. Eu gostaria de ter uma cadeira mais moderna, um colchão melhor. Coisas que dão uma melhor resposta e facilitam para se locomover ou não provocam reações tão ruins aos materiais desgastados. Mas não sei quando vai ser possível", diz o engenheiro, com a sinceridade de quem não tem mais nada a perder na vida, um sorriso tímido de quem não conseguiu recuperar os dentes afetados no acidente.

Outro lado

Desde o dia 15 de março, o Terra tenta conversar com o diretor-jurídico da Comlurb, Cassius Anibal Rios, para saber qual o próximo passo que a empresa pretende dar no processo. Não obteve sucesso. A juíza Maria Teresa Pontes Gazineu também foi procurada, mas preferiu não se manifestar.

Fonte: Terra
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