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Projeto estimula paulistanos a contemplar calçadas que passam despercebidas

Ideia é trazer um novo olhar para os pisos públicos da capital

11 nov 2018 - 02h10
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SÃO PAULO - Todo mundo anda nelas: do ciclista ao motorista de ônibus, do condutor de carro ao piloto de avião. E, apesar de estarem por toda a capital, as calçadas passam muitas vezes despercebidas. Com a intenção de estimular a contemplação dos pisos públicos de São Paulo como obras de arte, dois publicitários criaram o CalçadaSP, projeto que reúne imagens de calçadas que, entre ladrilhos, grelhas, ervas daninhas, cores, pastilhas, curvas, retas e traços, estampam a cidade. O convite é para a pausa, a observação e a admiração dos detalhes.

O projeto reúne fotografias de calçadas que foram pensadas para ser bonitas, com desenhos e brilhos, mas também imagens de objetos caídos, palavras escritas e desenhos rabiscados. "A calçada é democrática porque todo mundo usa. Calçada é saúde porque caminhar faz bem, é arquitetura porque ao caminhar você conhece os prédios históricos da cidade, é arte porque você tem contato com todo tipo de estímulo visual", diz Wans Spiess, de 46 anos, uma das criadoras.

A proposta teve início em 2014, quando o publicitário Tony Nyenhuis, de 44 anos, viu um papel largado na calçada em formato de dinossauro. Ele teve o impulso de voltar para tirar uma foto: parou, ajoelhou para se aproximar e quase foi atropelado por outros pedestres. No ano seguinte, o projeto se tornou exposição no Metrô de São Paulo durante quatro meses.

Entre os locais fotografados, estão calçadas de locais conhecidos, como a Biblioteca Mário de Andrade, a Câmara Municipal e o Teatro Oficina, mas também anônimos, como ruas menores, de fluxo menos intenso de pedestres. Um dos exemplos é o calçamento da Rua Avanhandava, com desenho geométrico pintado somente em duas cores: amarelo e preto.

Quatro anos após ser criado, o CalçadaSP cresceu: é apresentado como projeto de "artivismo" urbano e, até o fim de novembro, deve ser o responsável por criar uma galeria de arte a céu aberto na esquina da Avenida Duque de Caxias com Rua Barão de Limeira. Os criadores foram contratados pelo uliving (república de estudantes) localizado na calçada para que pintem o piso.

"Vamos usar a calçada como uma tela cinza que pode abrigar todo tipo de arte. Vai ser uma intervenção com artistas fazendo pintura na calçada. A ideia é que a cada quatro meses essa calçada seja renovada, justamente para ser uma galeria de arte", explica Wans.

Por lei, a responsabilidade pela calçada é do morador do respectivo trecho. A intervenção com tintas é permitida, segundo a Prefeitura de São Paulo, respeitando a exigência de evitar derrapagem dos pedestres. O desrespeito à norma pode resultar em multa de R$ 300.

"Hoje todo mundo anda olhando para o chão por causa do celular", diz Wans. Para a publicitária, depois das ciclovias como centro das discussões sobre mobilidade urbana, agora é a vez das calçadas, "território inexplorado na cidade". "Foi uma linguagem que encontramos para conversar com as pessoas sobre a importância de olhar para a cidade", afirma.

Violão cravado no chão. Uma das calçadas fotografadas foi a da loja de instrumentos musicais Del Vecchio, na Santa Ifigênia, no centro da cidade. Quase 80 anos atrás, um violão foi cravado com peças de latão e pedaços de pastilha no número 200 da Rua Aurora. Na época, uma fábrica e loja funcionava no local. Anos depois, a empresa saiu do ponto e uma galeria foi construída no lugar.

O atual dono do negócio, Ângelo Sergio Del Vecchio, de 80 anos, diz que durante as obras do novo estabelecimento um caminhão destruiu o desenho. "Recolhi as peças e guardei. Mandei tirar tudo e restaurei", explica. Segundo ele, o local é tombado. Procurada, a Prefeitura não respondeu.

Agora, a loja Del Vecchio está do outro lado da rua onde está o desenho na calçada. Incomoda que o violão com o nome do estabelecimento esteja na calçada oposta, em frente a uma galeria homônima? "Vai fazer o quê? Nem posso fazer outra aqui. Acho que a Prefeitura nem autoriza mais. E não vou remover para trazer para cá. Deixa lá. Não pode mexer porque é tombada. Felizmente, o desenho sobreviveu. E graças a mim."

'Rabisco' virou símbolo das ruas de São Paulo

Desenho comum nas calçadas da capital, o chamado piso paulista tem uma mãe: Mirtes Bernardes, de 84 anos, foi vencedora em 1967 de um concurso da Prefeitura que elegeu um padrão de piso para as ruas. Injustiçada, reclama de não ter recebido dinheiro pela criação.

"Não teve prêmio", conta. "Registrei a patente e fiz os direitos autorais, mas nunca ganhei nada. Pelas informações dos advogados, teria direito a 5% de cada calçamento, menos no canteiro central, porque pertence à Prefeitura. Paguei vários advogados, mas não posso mais. Desisti de uma vez."

O traço famoso foi quase por acaso, quando Mirtes era desenhista da Prefeitura. "Estava em uma hora vaga, quando comecei a rabiscar e saiu esse desenho. Guardei na gaveta." Quando o chefe viu, a incentivou a entrar no concurso. "Que legal! De quem é?'. Respondi: 'É um rabisco que fiz'. Ele falou: 'Rabisco? Ah não, você vai concorrer!"

Entrevista: Mirtes Bernardes, 84 anos, desenhista aposentada e criadora do 'piso paulista'

'Desisti. Aos 84, não dá mais para brigar com ninguém', diz desenhista que criou 'piso paulista'

1. O seu desenho foi vencedor de um concurso da Prefeitura de São Paulo...

Foi um concurso em 1966. Em janeiro de 1967, foi divulgada a premiação Foi na época do prefeito Faria Lima e eu era desenhista da Prefeitura. Ele abriu um concurso de padronização de piso de calçadas para público externo e para funcionários da Prefeitura. Eu não fazia os desenhos, eu passava para o papel vegetal. Estava em uma horinha vaga, quando comecei a rabiscar e saiu esse desenho. Guardei na gaveta. Meu chefe chegou na minha sala pedindo um lápis emprestado e abriu a gaveta. Ele disse: 'Que legal! De quem é?'. Respondi: 'É um rabisco que fiz'. Ele falou: 'Rabisco? Ah não, você vai concorrer!'. Foi por causa dele. Por mim, nem teria concorrido.

Passei o desenho para o vegetal e mandei também. Fizeram um calçamento na Rua da Consolação com os quatro melhores. Eram 50 metros de cada desenho. Teve uma comissão de 17 pessoas para escolher. E eu estava lá. E escolheram o meu. No dia seguinte, saiu no jornal uma página inteira com o desenho de quem ganhou. Pensei: 'Nossa, ganhei!'.

2. E qual foi o prêmio?

Não teve prêmio. Teve menção honrosa do prefeito Faria Lima. Registrei a patente, fiz os direitos autorais. Mas nunca ganhei nada. Pelas informações dos advogados, teria direito a 5% de cada calçamento, menos no canteiro central porque pertence à Prefeitura. Peguei vários advogados de patente, mas não posso mais pagar. Desisti de uma vez. Alguém deve estar ganhando porque eu não estou. Quem está fazendo os ladrilhos, usando dessa forma, está ganhando muito dinheiro. Existe a possibilidade de retomar os processos, mas eu desisti. Não encontro um advogado que faça a coisa correta. Um deles inclusive sumiu com toda a documentação da minha patente e dos meus direitos autorais.

3. Em que ano você entrou com o primeiro processo?

Foi logo em seguida que patenteei, em 1972. Mas foram alguns. Há 10 anos não mexo mais com isso. Fui chamada uma vez para uma audiência a respeito de uma sacola que o advogado entrou com um processo contra. Era uma loja. Até fiquei envergonhada. Aí não fui e a coisa morreu. Isso é uma coisa mínima. Não considero isso um problema. Existe um calçamento de São Paulo que é uma homenagem e acho que quem tinha de me pagar era a Prefeitura e as firmas que utilizam o desenho. Essas firmas que fabricam é que deveriam pagar, e não as lojas. Mas agora já tenho 84 anos. Não dá tempo mais de brigar com ninguém.

4. A senhora se considera injustiçada?

Basante injustiçada. Porque acho que merecia. Afinal de contas, o calçamento deslanchou aqui. Agora não sei como está, parece que estão mudando tudo. Mas está tudo quebrado e ninguém recupera, ninguém restaura.

5. Qual é a sua opinião sobre o estado de conservação das calçadas de São Paulo?

Acho um horror, uma judiação. Seja qual for o piso. Não é porque o piso é meu, porque o desenho é meu. Acho que deveria ter mais carinho por isso, afinal de contas teve aceitação. Foi elogiado. Gostaram. Simbolizava muito São Paulo. Tanto é que usam como logo em tudo quanto é canto. O mapinha que fiz são dois trapézios, e a própria Prefeitura utiliza. Então, teve alguma importância. E a cidade estava muito bonita. A primeira rua onde o desenho foi usado foi a Amaral Gurgel. Ficou nela todinha. Foi quando comecei a gostar do meu desenho. Quando você vê o conjunto, fica muito bonito. Depois fizeram no Ibirapuera, na Avenida 23 de Maio, na Consolação. Achei que a cidade ficou muito bonita.

6. O que a senhora sente quando pisa em uma calçada com o seu desenho?

Eu gosto muito, mas fico com pena de estar tão estragado e sujo. No ano passado, quando ainda estava em São Paulo [hoje Mirtes mora em Sorocaba], andei pelo Ibirapuera e em frente à Assembleia Legislativa. Aquele pedaço estava tão estragado... Colocavam cimento, não restauravam. É uma falta de conservação. Uma coisa horrível. Reformam de qualquer jeito e, às vezes, até invertem o desenho.

Estadão
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