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Morre padre Ticão, liderança religiosa e social na zona leste, aos 68 anos

Apelidado de 'trator de Deus', foi forte defensor dos direitos de moradia e saúde na Zona Leste de São Paulo, pároco começou a defender o uso da cannabis medicinal nos últimos anos

2 jan 2021 - 11h28
(atualizado às 17h30)
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SÃO PAULO - Morreu na noite desta sexta-feira, 1, o padre Antonio Luiz Marchioni, conhecido como Padre Ticão, aos 68 anos. Liderança religiosa e social na zona leste de São Paulo, era pároco da Paróquia de São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, desde 1982.

Com forte atuação nos movimentos de moradia, nos últimos anos assumiu a defesa pelo uso medicinal da cannabis, atraindo críticas de braços mais conservadores da igreja e até ameaças. Do amigo Dom Angélico Sandalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau, que atuou durante quase todo o sacerdócio em São Paulo, recebeu o apelido de "trator de Deus", pela coragem e determinação com as quais encarava suas causas.

Sua morte foi lamentada tanto por líderes petistas quanto tucanos. Nas redes sociais, houve manifestações desde a noite de sexta de políticos como o prefeito Bruno Covas (PSDB) e os ex-prefeitos Luiza Erundina (PSOL) e Fernando Haddad (PT), entre outros mais alinhados com a esquerda.

"2021 começa com triste notícia do falecimento do Padre Ticão. Grande defensor da população mais carente da Zona Leste de São Paulo. Um guerreiro na luta pela diminuição das desigualdades sociais. Descanse em paz", publicou Covas em sua conta no Instagram.

"Todas(os) nós choramos sua partida repentina, sem avisar, o que nos deixa órfãos. Partiu o incansável 'Guerreiro de Deus' que viveu sua breve existência a serviço dos pobres da zona leste, como um ardoroso e fiel pastor da Igreja dos pobres. Vá em paz, meu irmão", escreveu Erundina no Twitter.

Ele estava internado desde quinta-feira, 31, no Hospital Santa Marcelina, após apresentar sintomas como falta de ar e cansaço. De acordo com Waldir Augusti, o professor Waldir, amigo e parceiro de Ticão, ele chegou a ser testado para covid-19, mas o resultado foi negativo. Waldir afirma que Ticão tinha um problema cardíaco, mas estava bem até então. No hospital também foi identificada água em seus pulmões.

Comunicado divulgado pelo hospital aponta que ele "deu entrada na unidade em decorrência de uma arritmia cardíaca e o diagnóstico de edema pulmonar, permanecendo internado sob cuidado intensivo e cardiológico". Segundo o hospital, ele morreu "após nova descompensação da arritmia cardíaca, seguida de parada cardiorrespiratória.".

Nascido em Urupês (interior de SP), Ticão chegou à capital nos anos 1970, após apoiar greves de bóias-frias e de professores na região de Araraquara (SP). Na década de 1980, ao apoiar movimentos por moradia que cobravam do então governador Franco Montoro a construção de conjuntos habitacionais, participou da invasão à Secretaria de Estado da Habitação.

Professor Waldir conta que Ticão sempre teve preocupação grande com os mais carentes, mais pobres, atuando para levar mais moradia, saúde e educação para a população. "Em 2020, na Pastoral da Moradia, completamos 35 mil moradias construídas. Ele trabalhou para que fosse construído o Hospital de Ermelino Matarazzo e unidades básicas de saúde. Até a USP Leste veio para cá graças a um trabalho dele", disse ao Estadão.

Nos anos 90 e início dos 2000 ele se tornou próximo de Mario Covas (1930-2001), então governador do Estado, o que ajudou nesse movimento que culminou com a chegada da universidade à região em 2005. Seu sucessor, Geraldo Alckmin, e seu secretariado costumavam prestigiar eventos feitos por Ticão, como nos 20 anos da Pastoral da Moradia, e o religioso retribuiu organizando orações pelo político quando ele adoeceu.

Alckmin, que estava em Pindamonhangaba, disse que voltou para São Paulo para ir ao velório. "Penso que há alguns homens e mulheres que não perecem morrer. O Padre Ticão era um desses. Um evangelizador, um homem que falava ao coração das pessoas e que conquistava pelo exemplo e um lutador pelos mais humildes. Um cristão por excelência, homem da justiça social, lutando pelos idosos, pelas pessoas com deficiência e pela moradia das população na Zona Leste, pela Escola de Jovens e Adultos, pela saúde da região, pelo ensino gratuitos: Etecs, Fatecs, USP Leste...", disse Alckmin ao Estadão.

"O que a gente olhar, tem a luta do Padre Ticão. Um franciscano que deu a vida para levar a palavra de Deus e trabalhar para os mais humildes. É uma grande perda e a gente viu no velório o carinho impressionante das pessoas da região. Ficou o seu grande exemplo", complementou o ex-governador, que disse ter conhecido o religioso quando era vice de Covas e que se tornou próximo dele. "Com frequência, ia à missa dele, na Igreja de São Francisco de Assis. E meu pai era franciscano, da Ordem Terceira de São Francisco", declarou.

"Padre Ticão era um líder religioso, um líder social, um homem que viveu cuidando dos mais vulneráveis. Tive a honra de desenvolver muitos projetos com ele, principalmente, na área da educação. Em um mundo tão carente de empatia, de amor, vai fazer falta", afirmou, também no velório, Gabriel Chalita, ex-secretário Estadual de Educação.

Os impactos de Ticão na Zona Leste não foram poucos. "Ele significou mudança no modo de pensar, representou apoio e encorajamento às pessoas, representou formação político-cidadã, e representou a verdadeira igreja de Jesus Cristo na opção preferencial pelos pobres. Ele sempre viveu no coração o lema que aprendeu com D. Paulo Evaristo Arns, que era de coragem, de esperança em esperança. Assim ele nos ensinou", afirmou professor Waldir.

Uma de suas marcas na região foi a criação da Escola da Cidadania, espaço para discussão sobre temas sociais e políticos, nos moldes da Escola de Governo, da USP. O sociólogo Rudá Ricci, presidente do Instituto Cultiva, contou nas redes sociais que conheceu Ticão nessa escola. "Era uma escola de formação de lideranças sociais na zona leste de São Paulo. Acabei sendo convidado para dar uma palestra para esta escola. Lembro que quando cheguei, fui recebido por um padre alto e corpulento com um sorriso contido no rosto", escreveu no Twitter.

"Trocamos algumas palavras e fui conduzido para um enorme salão paroquial, no subsolo da igreja. Ali começava o primeiro impacto: seiscentas pessoas aguardavam o início da atividade, numa sexta-feira à noite, sentadas em cadeiras brancas, dessas de plástico. O debate correu solto e muito animado. Para um educador popular, esta é uma das utopias que motivam nosso engajamento: seiscentas pessoas discutindo o Brasil."

Defesa da cannabis

Nos últimos anos, ele se engajou na defesa do uso medicinal da cannabis. "Há 5 ou 6 anos começamos a nos preocupar com os problemas do SUS. Por muitos anos o foco foi mais na construção de unidades básicas de saúde e menos em como deveria funcionar. Aí começamos a pesquisar sobre saúde preventiva, integrativa, mais natural e descobrimos a cannabis. Conversamos com o professor Carlini (Elisaldo Carlini, da Unifesp, um dos principais defensores do uso medicinal da substância no Brasil, morto em 2020) e vimos que tinha um monte de propriedades que vinham ao encontro do que procurávamos", contou Waldir.

Em entrevista em 2019 à revista Carta Capital, onde os dois assinavam artigos, Ticão falou: "Não vou dizer que Deus é maconheiro, eu realmente não sei. Mas com certeza ele é canabista".

Segundo Waldir, Ticão começou a realizar cursos sobre a substância em parceria com a Unifesp. O primeiro reuniu cerca de 330 pessoas e o quarto, e mais recente, já tinha atraído 4.500 pessoas. "Foi chamado de maconheiro, de defensor de uso de drogas, mas ele não desistiu. E nós vamos continuar a seguir sua bandeira", disse.

Em 2015, Ticão e professor Waldir lançaram o livro Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns - Pastor das Periferias, dos Pobres e da Justiça, lançado em comemoração aos 94 anos do arcebispo (morto em dezembro de 2016). Coletânea de artigos de 55 pessoas e ilustrado com 160 fotos, o livro foi publicado pelas Associação Casa da Terceira Idade Teresa Bugolin, com apoio da Imprensa Oficial, do governo do Estado.

"Gostaria de repetir as palavras do Dom Angélico e dizer que pessoas como ele não morrem. Ele estará sempre presente como exemplo a ser seguido. Precisamos manter vivo os ideais dele. Todos somos filhos de Deus, todos somos iguais, todos temos direitos iguais. Todos temos que combater a desigualdade social que divide o mundo entre pobres e ricos", disse ao Estadão Antonio Carlos Fester, conselheiro da Comissão Justiça e Paz. Ele conhecia Padre Ticão há 32 anos e também colaborou com a coletânea sobre Dom Paulo.

O velório foi realizado na manhã deste sábado, na Igreja São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo. E o enterro ocorreu às 15h no Cemitério do Carmo I, em Itaquera.

Estadão
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