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Militares condenados: como foi operação com 257 tiros que resultou na morte de músico e catador

Evaldo Rosa dos Santos estava levando família para chá de bebé quando carro foi atingido por disparos; Luciano Macedo, que prestou socorro, também foi alvejado e morreu 11 dias depois, no hospital.

14 out 2021 - 11h54
(atualizado às 11h58)
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O músico Evaldo Rosa dos Santos estava levando sua família para um chá de bebê. No carro estavam ele, seu sogro, sua mulher, seu filho de sete anos e uma amiga da família. Era domingo, 7 de abril de 2019.

Por volta de 14h, uma rajada de tiros atingiu o automóvel da família em Guadalupe, bairro de classe média baixa na zona norte do Rio de Janeiro. Os tiros vinham de militares.

Luciano Macedo, um catador de material reciclável que tentou socorrer a família, também morreu, atingido por três tiros nas costas, 11 dias depois, no hospital. Sua viúva estava grávida de cinco meses e viu a cena.

Foto: BBC News Brasil

Foram ao todo 257 tiros de pistola e fuzil, dos quais 62 atingiram o carro da família, um Ford Ka branco. Nove disparos atingiram o músico.

Dois anos depois e ao fim de mais de 15 horas de um julgamento adiado por duas vezes, a Justiça chegou a um veredito sobre o caso.

O Tribunal de Justiça Militar condenou na madrugada desta quinta-feira (15/10) oito dos 12 militares do Exército envolvidos pelas mortes. Foram distribuídas sentenças que variam de 28 a 31 anos de prisão.

Outros quatro oficiais que não dispararam suas armas foram absolvidos.

Os condenados são: Fabio Henrique Souza Braz da Silva, Gabriel Christian Honorato, Gabriel da Silva de Barros Lins, Ítalo da Silva Nunes Romualdo, João Lucas da Costa Gonçalo, Leonardo de Oliveira de Souza, Marlon Conceição da Silva e Matheus Santanna Claudino.

Eles serão expulsos da corporação por culpabilidade comprovada. Todos os 12 militares foram absolvidos da acusação de omissão de socorro.

Os militares condenados ainda podem apelar ao Superior Tribunal Militar e devem permanecer em liberdade até a decisão final da corte.

'Calma, amor, é o Exército'

Em 2019, ao jornal Folha de S.Paulo, a mulher de Evaldo contou que, antes dos tiros, disse ao marido: "Calma, amor, é o Exército".

Segundo o Ministério Público Militar, não foram encontradas armas ou outros objetos de crime com as vítimas.

A versão do Exército era de que o carro havia sido confundido com o de um bandido.

Nove dos militares ficaram presos preventivamente por um mês e meio, mas foram soltos por maioria de votos no Superior Tribunal Militar no dia 23 de maio.

Seis dias depois do caso, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Exército não havia matado ninguém e que o caso era um "incidente".

"O Exército não matou ninguém. O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de assassino. Houve um incidente. Houve uma morte. Lamentamos ser um cidadão trabalhador, honesto", afirmou, na época.

O Ministério Público Militar havia oferecido denúncia contra 12 militares por "terem causado a morte de Evaldo Rosa dos Santos e Luciano Macedo e atentado contra a vida de Sergio Gonçalves de Araújo, expondo a população local a perigo, bem como por terem deixado de prestar socorro às vítimas".

Ou seja, os 12 foram denunciados pelos crimes de homicídio qualificado (duas acusações, com pena prevista de 12 a 30 anos de prisão), uma tentativa de homicídio (dependendo da gravidade, pode chegar a pena semelhante) e por não terem prestado assistência (de um a seis meses ou multa).

Segundo a denúncia do Ministério Público, "a ação injustificada dos militares, além de ter causado a morte de dois civis e atentar contra a vida de outro, expôs a perigo a população local de área densamente povoada"

Em dezembro do ano passado, a primeira instância da Justiça Militar da União, no Rio de Janeiro, ouviu os 12 militares acusados das mortes de Evaldo e Luciano Macedo. Testemunhas também foram ouvidas.

O julgamento estava previsto para acontecer em 7 de abril deste ano, data em que o crime completaria dois anos, mas acabou adiado duas vezes.

Julgamento

Após mais de 15 horas, o julgamento chegou ao fim com um placar de três votos a dois.

Dos cinco integrantes do Conselho Especial de Justiça — formado por uma juíza federal e quatro juízes militares sorteados —, a juíza e mais dois militares votaram pela condenação por homicídio, uma outra integrante votou pela condenação culposa (sem intenção de matar) e outro pela absolvição dos militares.

O tenente Ítalo da Silva Nunes Romualdo recebeu a maior condenação: 31 anos e seis meses de prisão em regime fechado. Os outros sete foram condenados a penas de 28 anos de prisão em regime fechado por duplo homicídio e tentativa de homicídio — o sogro de Evaldo ficou ferido na ação.

Durante o julgamento, a defesa dos militares recorreu a argumentações polêmicas e acusações sem provas, revoltando as viúvas das vítimas.

Inicialmente, o defensor Paulo Henrique Mello chegou a dizer que os militares foram atacados por traficantes e que Macedo, o catador de materiais recicláveis que prestou socorro a Santos e a sua família, seria olheiro do tráfico.

No final das alegações, ele acusou Macedo de ter atirado no músico e atacado a tropa.

"Depois que ele cai, os tiros cessam. Só seria homicídio doloso se os tiros continuassem, mas não foi o caso. O carro foi um artefato para Luciano fugir. Eu duvido que, se ele estivesse levantado os braços para se render", disse.

Já a acusação argumentou que os militares não agiram dentro das normas nem dos limites da legalidade e que só deveriam empregar força e munição real como último recurso.

Reação

As viúvas das duas vítimas comemoraram a sentença. Segundo elas, o sentimento é de alívio e dever cumprido.

"É uma sensação muito grande de dever cumprido, por poder estar honrando o nome do meu esposo. Como é satisfatório poder chegar em casa e dar essa notícia para o meu filho. Sou muito grata a Deus, foi Ele que me sustentou desde aquele momento até o dia de hoje", disse Luciana Nogueira, mulher de Evaldo, ao site de notícias Uol.

"Estou muito satisfeita, aliviada. Achei muito justa a decisão da juíza, mas meu sentimento agora é alívio e tristeza, de ficar lembrando de tudo isso", acrescentou Dayana Fernandes, acompanhada da filha, hoje com dois anos, que o catador Macedo não chegou a conhecer.

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