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Cidades

Em Roraima, a fronteira que quase não existia na prática

Antes de crise, Pacaraima (Brasil) e Santa Elena (Venezuela) eram como cidades-irmãs

23 ago 2018 - 03h12
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PACARAIMA (RR) - Alvo de pedidos de fechamento na Justiça, a fronteira com a Venezuela é, na prática, uma rodovia de duas faixas, por onde não só refugiados atravessam todos os dias. De Pacaraima, em Roraima, para Santa Elena de Uairén, no país vizinho, o trânsito de carros e de pedestres é livre na BR-174 e os moradores das duas cidades costumam cruzar o limite para fazer compras ou buscar atendimento médico. O grupo inclui até crianças venezuelanas matriculadas em escolas públicas do Brasil.

Nesta quarta-feira, 22, o Estado cruzou a fronteira entre os municípios e foi parado três vezes. Na aduaneira de Santa Elena, guardas pediram para abrir o porta-malas do carro. Eles repetiram o procedimento na volta. No retorno ao Brasil, agentes da Polícia Rodoviária Federal fizeram a mesma inspeção e também revistaram as mochilas no veículo. Em nenhuma ocasião, os agentes pediram documentos.

Em uma região de serra, com muitas áreas de demarcação indígena e forte atividade de garimpo de diamantes, Santa Elena se parece muito com Pacaraima, não fossem os comércios que fecharam as portas com a crise. Lá, moram centenas de brasileiros. "Aqui todo mundo me trata como um venezuelano", conta Raimundo França, de 70 anos, natural de Pinheiro, no Maranhão. Ele vive no país vizinho desde de 1978.

Criado em roça de coco, França foi para Roraima na década de 1970, trabalhar como pedreiro. Ao cruzar a fronteira, juntou dinheiro com garimpo irregular, construiu a própria casa e outros oito imóveis. Lá, casou com uma venezuelana e teve quatro filhos. Hoje, em situação regular, vive da renda dos aluguéis. "A fome não me apertou. Vivo feito sapo: se a cobra atacar, pulo na lagoa." Ou seja, volta para o Brasil. "A fronteira não pode fechar porque tanto brasileiros quanto venezuelanos convivem e se entendem bem. Tem pilantras, sim, mas mais de 90% são pessoas decentes que estão pagando por todos."

A dona de casa Dilia Salena, de 50 anos, casada com o brasileiro, vai todas as semanas a Pacaraima comprar arroz, feijão, fubá e produtos de limpeza. "Foi uma tristeza muito grande o que aconteceu", comenta. Nascida na Venezuela, a caçula Adriana França, de 16, faz planos de prestar vestibular no Brasil. "Aqui, a gente tem muita falta de professor", diz.

Filha de brasileira, a comerciante Karen Teixeira, de 22 anos, mantém na cidade uma venda de frutas e legumes. Banana, mamão, cebola são plantados e colhidos na região. Já sal, açúcar, feijão, arroz e artigos de limpeza são comprados no Brasil para revenda. "Muita gente mora aqui e trabalha lá ou mora lá e tem comércio aqui", afirma.

Na frente do comércio, também passam dois ônibus da prefeitura de Pacaraima, às 5 horas e ao meio-dia, para levar crianças venezuelanas ao colégio no Brasil. Só na Escola Municipal Casemiro de Abreu, 211 dos 681 alunos matriculados são de Santa Elena. "Se fechar a fronteira, como essas crianças vão à escola?", indaga o vice-prefeito de Pacaraima, Rodolfo Fernandes do Nascimento (sem partido). Segundo ele, há alunos de Santa Elena matriculados desde a creche à Educação de Jovens e Adultos. "A minha filha também estuda espanhol lá. Sempre tivemos uma convivência harmoniosa, todos têm amigos e familiares em Santa Elena."

Queixa. Karen afirma compreender os motivos da revolta em Roraima. "São cidades-irmãs, as comunidades se conhecem. Depois do ocorrido, muitos estão apáticos e reclamam de brasileiros também, mas não é assim", diz. "Para lá, foram venezuelanos de outras regiões, que nem nós queremos aqui."

'Para fechar acesso, teria de construir um Muro de Berlim'

Uma unidade da Polícia Federal e uma tenda do Exército para acolher imigrantes ficam lado a lado na parte brasileira. Poucos metros abaixo, ainda há um posto com agentes armados da Polícia Rodoviária Federal, cujas cancelas são mantidas abertas a maior parte do dia. Já na área da Venezuela integrantes da Guarda Nacional, com uniformes verdes e munidos de escopetas, observam os veículos. Os portões fecham às 22 horas, mas não para pedestres.

"Não adiantaria: quem está a pé passa por todos os lados, não só pelos portões. Temos as comunidades Tauraparu, Kaue, Bananal. Todas dão acesso à Venezuela", descreve o vice-prefeito de Pacaraima, Rodolfo Fernandes do Nascimento (sem partido). "Para fechar a fronteira, teria de ser no marco todinho. Ou seja, construir um Muro de Berlim, o que é inviável."

Às margens na rodovia, um monumento com as bandeiras dos dois países e bustos de D. Pedro I e Simón Bolívar, talhados em metal, marca a fronteira. Dezenas de pessoas vendem água, refrigerante, comida e praticam câmbio irregular do outro lado da pista.

Em Pacaraima, taxistas com placas do Brasil ou da Venezuela cobram R$ 12 para levar o passageiro até Santa Elena. Para os brasileiros, no entanto, o maior interesse é na gasolina venezuelana, vendida pela metade do preço - motivo pelo qual não há postos de combustível no município. "Se fechar, a gente teria de abastecer mais barato em Boa Vista (a 213 quilômetros de distância)", diz Nascimento. A energia elétrica também é fornecida pela Venezuela.

A vendedora brasileira Dejacy Lima, de 38 anos, conta que há dois anos passa pelo marco com frequência para fazer tratamento ortodôntico. "No Brasil, a manutenção do aparelho custa entre R$ 80 e 100. Lá, sai por R$ 30", conta ela.

"Exceto gasolina, brasileiro só vai comprar plástico, cadeira, maquiagem", diz o taxista venezuelano Carlos Marin, que, segundo os próprios cálculos, atravessa a fronteira, em média, seis vezes por dia. Na opinião dele, a fiscalização dos dois lados está "mais rigorosa" há um mês, antes mesmo do protesto de Pacaraima do sábado.

Com os ataques de sábado, porém, o clima entre as cidades chegou a pesar. No dia, a regente Bruna Souto Maior, de 32 anos, estava hospedada em Santa Elena, onde deveria buscar um piano recém-comprado. "Começou a chegar mensagem dizendo que, se a gente cruzasse de volta, iam queimar o carro." Ela precisou ser escoltada até a fronteira com mais 30 brasileiros. "Foi muito tenso."

Estadão
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