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300 anos de Minas Gerais: Heloisa Starling conta como o Estado foi criado

Da Guerra dos Emboabas à Revolta de Vila Rica: em entrevista ao 'Estadão', a pesquisadora Heloisa Starling explica a história por trás da criação de Minas Gerais

2 dez 2020 - 12h56
(atualizado em 7/12/2020 às 19h23)
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Se "sonhos não envelhecem", como diria um famoso verso de Clube da Esquina N° 2, música eternizada nas vozes de Milton Nascimento e Lô Borges, o mesmo não se pode dizer sobre Minas Gerais. Em meio a rios de asfalto e gente e viagens de ventania, como cantado em outros trechos da obra, o Estado completa 300 anos nesta quarta-feira, 2.

Isso quer dizer que em 2 de dezembro de 1720, há exatamente três séculos, ocorreu o desmembramento da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro pela Coroa portuguesa, o que culminou na criação da Capitania de Minas Gerais. A data marca o início da existência administrativa do território mineiro e, portanto, é reconhecida como o surgimento do Estado.

O que não significa que Minas tenha sido ocupada só a partir de então, destaca a historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloisa Starling. A pesquisadora concedeu entrevista ao Estadão para falar sobre a história, ou as histórias, por trás da criação do quarto maior Estado do País.

Como o território mineiro era ocupado e governado antes de 1720? O que tem de história, ou de histórias, antes desse marco?

Esse é um ponto que vale a pena deixar claro: Minas Gerais é um território ocupado bem antes dos portugueses. Há 11 mil anos atrás, já havia um agrupamento humano na região de Lagoa Santa, onde a Luzia foi descoberta, e depois ainda há alguns povos originários que chegam aqui. Então, quando falamos dos 300 anos de Minas, estamos falando de Minas do período colonial, quando se teve uma descoberta importante de ouro.

Dito isso, é fundamental entender que a Coroa portuguesa está atrás do ouro desde que ocupa a área colonial brasileira. E não acha. É só no final do século 17, quando Minas ainda é um território desconhecido pelos portugueses, que bandeirantes paulistas vão à região onde posteriormente seria fundada Vila Rica (hoje, Ouro Preto) e descobrem pepitas de ouro, mais ou menos do tamanho de ervilhas, brilhando no fundo de um rio. A partir de então, no início dos anos 1700, uma série de disputas ocorrem.

Quando a notícia do ouro chega a Salvador, que era a sede do governo geral na época, começa um verdadeiro 'Deus nos acuda', já que as autoridades portuguesas passam a querer fechar a região. Com a descoberta, muitos saem de Portugal em busca do ouro, despovoam-se as regiões de Rio de Janeiro e São Paulo… Vão todos para os arredores de Vila Rica (fundada em 1711). A sede pelo ouro é um negócio tão alucinado que muita gente morre de fome, mesmo com as mãos cheias de ouro. Deixa-se de plantar pela sede de conseguir mais minerais.

Em meio à disputa pelo ouro, como foi fundada Minas Gerais? Qual foi a importância da Guerra dos Emboabas e da Revolta de Vila Rica nesse momento?

A partir da descoberta do ouro, como pudemos ver, começa-se a ter duas coisas: por um lado, a intenção da Corte portuguesa de fechar as minas, e por outro, uma série de contrabandos, motins, levantes… Então, a partir de 1710, a Coroa decide fazer uma repartição, já que anos antes tinha ocorrido o primeiro grande conflito de Minas, que foi a Guerra dos Emboabas (1707-1709). Com isso, para não deixar a região solta, a Coroa cria a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro e envia um primeiro governador à região, que é Antônio de Albuquerque. É nesse momento que são criadas as primeiras vilas: Sabará, Vila Rica (Ouro Preto) e Vila do Carmo (Mariana). Mas essa é uma tentativa de controle que não funciona. Minas é fundada na rebeldia.

E é aí que vem uma revolta que talvez tenha sido a mais importante antes da Conjuração Mineira, que é a Revolta de Vila Rica (1720), ou de Felipe dos Santos. Essa é uma revolta para valer, porque quem se revolta é a elite de Vila Rica. E aí o 'pau quebra'. Tem-se uma disputa de poder pela primeira vez, uma reação contra o Conde de Assumar e uma recusa ao pagamento do quinto, que foi o imposto que deveria ser pago sobre o ouro… Só então cai a ficha do rei de Portugal (D. João V) e ele entende que as medidas tomadas não bastam.

Em 1720, portanto, a capitania que havia sido criada em 1710 é desmembrada e instala-se todo o aparato do Estado em Minas Gerais. Desde o administrativo até os chamados dragões, que eram as tropas. Aí então se dá a criação da Capitania de Minas Gerais e passa-se a coibir de perto o contrabando do ouro e principalmente os levantes. Mas mesmo com a criação da Capitania, as rebeliões continuam acontecendo em sequência. "Minas é habitável por gente intratável", chegou a dizer o Conde de Assumar. O que fica mais marcado dessa época é a Conjuração Mineira (1789), que é o mais importante movimento de ideias do período colonial.

Quais são as principais heranças dessa época? Como as histórias de 300 anos atrás ajudam a explicar Minas Gerais de hoje?

Como diria Guimarães Rosa, as Minas são muitas. E os Gerais correm em volta. Já o historiador José Murilo de Carvalho diz que a gente pode pensar duas Minas. Eu acho que a gente pode pensar até em mais. Mas ele chama atenção primeiro para essa Minas do Ouro, que vai aparecer no Império. Essa Minas rebelde, que posteriormente influencia figuras como Teófilo Otoni, personagem que chama essa herança da Minas republicana. E por outro lado ressalta também a Minas conservadora, dos grandes proprietários de terra, dos fazendeiros… Aí seria um lado mais oligárquico, preso à terra, que controla o projeto de poder da primeira República. Guimarães Rosa vai dizer que ainda tem outra Minas, que é a do sertão. Mas enfim, desde o surgimento de Minas Gerais vê-se duas heranças muito fortes: uma libertária, republicana, e outra conservadora, oligárquica. São os dois legados principais, que dialogam com o País, com a política nacional e por aí vai.

Posteriormente, na história de Minas, o ouro cede lugar ao ferro e mudanças vão ocorrendo. A Minas de Teófilo Otoni já é a Minas do ferro, por exemplo. Essa Minas libertária projeta e produz primeiro a Conjuração Mineira, produz o barroco mineiro, que está aí até hoje para a gente ver, e por aí vai... Carlos Drummond de Andrade, quando olhava para os profetas de Congonhas, dizia: olha lá a conjuração dos profetas. Porque são coisas que dialogam. Quer algo que evoque mais o barroco do que o Clube da Esquina, do que Milton Nascimento? Comemorar os 300 anos de Minas significa chamar tudo isso de volta ao coração, rememorando inclusive manifestações artísticas.

Por fim, uma pergunta um tanto mais lúdica: da sua perspectiva, qual é a característica que melhor define Minas Gerais?

Ao meu ver, Minas tem uma característica de combinar trocas. É como se fosse um lugar provinciano, cercado de montanhas, mas que ao mesmo tempo recebe ideias que vêm de fora. E tudo isso é misturado aqui dentro. O barroco tem um pouco disso. De receber um conjunto de manifestações que estão na Europa, em outros lugares... Talvez Minas seja isso, essa combinação entre o que está aqui e como nós recriamos isso por nossas experiências. Tem uma recriação aqui que é importante e talvez seja essa a característica mais definidora de Minas. Uma espécie de cosmopolitismo do pobre.

Há milhares de anos, os povos originários de Minas estabeleceram contato uns com os outros, trocaram ideias, arte, ciência e tecnologia. Por força desse intercâmbio deram início à produção de significados e valores que permitiram amadurecer ao longo do tempo o sentimento de pertença a uma comunidade, as Minas Gerais, dotando-a de um sentido próprio de localização no País e no mundo. "Sou do mundo, sou Minas Gerais", diz o verso de Fernando Brant em parceria com os irmãos Lô e Márcio Borges.

Galeria de fotos e depoimentos sobre os 300 anos de Minas Gerais

Como parte das ações da celebração ao tricentenário de Minas Gerais, a Assembleia Legislativa do Estado (ALMG) criou um hotsite reunindo, entre outras informações, uma galeria de fotos históricas. Já o Governo do Estado lançou o site Minas 300 Anos e ouviu uma série de convidados sobre a relação que possuem com Minas Gerais. Veja dois desses depoimentos abaixo:

Humberto Werneck

Fernando Gabeira

Estadão
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