Brasil endurece tom com Trump: por que deportações são 1ª crise do novo governo dos EUA com América Latina
Brasil convoca representante da embaixada dos EUA para explicações, enquanto Colômbia recua após ameaças de sanções americanas.
A política de deportações em massa de Donald Trump abriu a primeira crise diplomática dos Estados Unidos com a América Latina.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, afirmou nesta terça-feira (28/01), em entrevista coletiva, que o país quer discutir com as autoridades americanas para que as deportações de brasileiros "sejam feitas atendendo os requisitos mínimos de dignidade" e de "respeito aos direitos humanos".
Vieira participou de uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para abordar as deportações.
A reação brasileira ocorre depois que 88 brasileiros deportados chegaram algemados a Manaus na sexta-feira (24), em um voo organizado pelos EUA.
Na segunda-feira (27/01), o Itamaraty realizou uma reunião com o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Gabriel Escobar, que foi convocado para prestar esclarecimentos sobre o voo.
O encarregado de negócios é, no momento, a mais alta autoridade da embaixada americana em Brasília — enquanto um novo representante para chefiar a missão não é designado oficialmente pelo governo de Donald Trump e confirmado pelo Brasil.
Na conversa, a secretária de Assuntos Consulares do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Márcia Loureiro, pediu informações sobre o tratamento dado aos cidadãos brasileiros.
Uma fonte da diplomacia brasileira ouvida pela BBC News Brasil disse que o foco da conversa com Escobar foi "evitar que se repita o que aconteceu em Manaus na sexta, revolta dos passageiros por maus tratos e voo cheio de problemas".
A situação na região levou a presidente de Honduras, Xiomara Castro, que também lidera a Comunidade de Países Latino-americanos e Caribenhos (Celac), a anunciar no domingo (26/01) a convocação de uma reunião emergencial para discutir uma resposta à política migratória de Trump.
O encontro será nesta quinta-feira (30/01). A Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo brasileiro afirmou que participação virtual do presidente Lula na cúpula emergencial ainda "está em análise".
"Em princípio, essa cúpula emergencial não substitui a cúpula ordinária da CELAC prevista para março (data a definir), também em Honduras, na qual há previsão de participação presencial do presidente", informou a Secom em nota.
Segundo estimativas, vivem hoje irregularmente nos Estados Unidos cerca de 11 milhões de migrantes, sendo 7 milhões deles latinos — um dos maiores alvos do republicano.
A promessa de Trump de realizar "a maior deportação da história da América" foi colocada em prática logo na primeira semana de seu governo, afetando diretamente cidadãos brasileiros, colombianos e mexicanos, entre outras nacionalidades da região, que viviam nos Estados Unidos.
Crise com brasileiros deportados
O avião que chegou a Manaus na sexta-feira foi o primeiro com deportados brasileiros enviado durante o novo governo Trump, que assumiu a Casa Branca em 20 de janeiro.
Os deportados desta viagem já haviam sido presos durante o governo de Joe Biden.
O Itamaraty classificou a operação como "degradante".
"O uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos de acordo com os Estados Unidos, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados", diz nota do Itamaraty de domingo (26).
O governo brasileiro também afirmou considerar "inaceitável" que as condições acordadas entre os dois países para a realização de voos de deportações desde 2018 não sejam respeitadas.
Brasileiros que estavam no voo relataram que foram agredidos por agentes americanos e que o avião em que vieram dos EUA estava em mau estado e com ar condicionado quebrado. Inicialmente, o voo tinha como destino Belo Horizonte.
A aeronave teria precisado parar no Panamá e em Manaus devido a problemas técnicos.
Diante dos relatos de violações, as autoridades brasileiras não autorizaram o seguimento do voo para Belo Horizonte. O grupo pernoitou em Manaus e embarcou no dia seguinte em voo da Força Aérea Brasileira (FAB) até a capital mineira.
Os mais de 2 milhões de brasileiros que vivem nos Estados Unidos atualmente representam a maior comunidade fora do Brasil. Desses, ao menos 230 mil estão vivendo sem documentos, segundo o Instituto Pew Research Center.
Ameaças à Colômbia
A maior escalada da crise migratória na região foi com a Colômbia, embora a situação tenha arrefecido depois do fim de semana.
O presidente Gustavo Petro não autorizou o pouso de dois voos militares americanos que levavam migrantes ao território colombiano e exigiu que as deportações fossem feitas em "aeronaves civis". Ele cobrou um "protocolo digno" e que os imigrantes não fossem tratados como "criminosos".
Em resposta, Trump reagiu acusando o governo colombiano de "violar suas obrigações legais quanto a aceitar os criminosos que eles mandaram à força aos Estados Unidos".
O presidente americano anunciou "medidas retaliatórias urgentes e decisivas" em uma publicação em sua plataforma de mídia social Truth Social — incluindo tarifas, bloqueio a vistos de membros do governo e inspeções intensificadas em colombianos na fronteira.
Entretanto, depois das trocas de acusações e ameaças, o governo da Colômbia informou que superou o impasse com o governo dos Estados Unidos e recuou sobre a decisão de não receber os aviões.
Bogotá passou a aceitar os voos com migrantes deportados, e Gustavo Petro ofereceu até mesmo o avião presidencial colombiano para voos do tipo.
O episódio, que durou um fim de semana, reforçou o discurso nacionalista de Trump. A Casa Branca se declarou vitoriosa e emitiu uma nota dizendo que "os eventos deixam claro para o mundo que a América é respeitada novamente".
Diante da tensão, o ministro da Justiça brasileiro, Ricardo Lewandowski, afirmou que a reação do Brasil diante das deportações foi "sóbria".
"Tivemos uma reação muito sóbria. Não queremos provocar o governo americano, até porque a deportação está prevista em tratado, mas obviamente essa deportação tem que ser feita com respeito aos direitos fundamentais das pessoas, sobretudo daqueles que não são criminosos", afirmou ele em um evento em São Paulo.
Entretanto, o ministro considerou a conduta do governo americano "inadmissível".
"Os americanos exigiram que os brasileiros, já em território nacional, sob a custódia do Estado brasileiro, permanecessem acorrentados e ingressassem em outro avião que estava vindo dos Estados Unidos. Isso é absolutamente inadmissível. Eles não tinham nenhuma acusação do ponto de vista criminal", declarou Lewandowski.
Novas deportações de mexicanos
Em meio às crises diplomáticas na região, a presidente do México, Claudia Sheinbaum, afirmou na segunda-feira que, na primeira semana do governo Trump, 4.094 pessoas foram deportadas dos EUA para o México — "a grande maioria mexicanos e mexicanas".
A presidente afirmou, no entanto, que o número é dentro do normal para o país: "Não houve um incremento substancial".
"Isso não é novo para o México. O México tem uma história de repatriação muito significativa", disse Sheinbaum.
A presidente destacou que o país tem o programa México te Abraça, que acolhe deportados na fronteira e nos aeroportos do México.
"Queremos que saibam que estamos preparados, que estamos prontos para apoiar os nossos concidadãos. Temos a certeza de que chegaremos a acordos com o governo do presidente Trump assim que os canais apropriados forem estabelecidos", disse Sheinbaum.
Para tal, o México anunciou o reforço das suas redes consulares nos Estados Unidos, onde conta com 53 escritórios.
O país também promoveu um aplicativo para celular, o ConsulApp, para informar os migrantes sobre seus direitos e que também possui um botão de alerta para avisar em caso de deportação iminente.
Nova aproximação com El Salvador
A posição do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tem sido diferente de outros líderes da região.
Embora em julho passado Trump tenha dito a Bukele que seu país estava "enviando seus assassinos para os Estados Unidos" e que o salvadorenho não estava fazendo um "trabalho maravilhoso" como afirmava, na semana passada os dois presidentes se aproximaram.
Trump telefonou ao seu homólogo para falar sobre a luta contra a imigração irregular e contra gangues criminosas como o Tren de Aragua, segundo a Casa Branca.
"O presidente Trump também elogiou a liderança do presidente Bukele na região e o exemplo que ele dá a outras nações do Hemisfério Ocidental", afirmou em um comunicado.
Guatemala prepara plano
O governo da Guatemala anunciou um plano para receber deportados, com a criação de abrigos e programas de reintegração profissional, entre outras ações.
Danilo Rivera, diretor do Instituto Guatemalteco de Migrações (IGM), afirmou nesta segunda-feira que, entre 1 e 24 de janeiro, quase 3.300 guatemaltecos retornaram de avião dos Estados Unidos e do México.
Sob o novo governo Trump, os voos começaram em 24 de janeiro, quando um total de 265 pessoas foram deportadas em três voos — dois operados em aeronaves militares e um fretado.
Nesses três voos viajavam 154 homens, 105 mulheres, um adolescente e cinco menores, segundo o balanço do Instituto Guatemalteco de Migrações.
Rivera esclareceu que esta dinâmica vai continuar, pelo que se espera que haja uma negociação para coordenar o regresso destas pessoas.
Honduras nega a chegada de deportados que iriam para Colômbia
Durante a disputa entre Petro e Trump, inicialmente foi informado que os aviões com deportados que tinham como destino a Colômbia seriam enviados a Honduras, após a recusa do presidente colombiano de receber os voos.
No entanto, o governo hondurenho negou esta informação, segundo o jornal local El Heraldo.
"Falso. Digo isso com propriedade e depois de ter checado", afirmou o vice-chanceler de Assuntos Consulares, Antonio García, ao jornal.
O diretor do Instituto Nacional de Migrações (INM), Wilson Paz, afirmou que só foram recebidos voos com hondurenhos.
A Agência Hondurenha de Aeronáutica Civil emitiu um comunicado no qual informou que não houve voos de "aeronaves militares dos Estados Unidos com deportados de nacionalidade colombiana" e que a agência "se manterá informada sobre qualquer evento relacionado à deportação de imigrantes de qualquer nacionalidade, atendendo às regulamentações nacionais e internacionais".
Trump: Brasil entre 'países que querem mal' aos EUA
As políticas agressivas contra imigrantes começaram a avançar ainda enquanto Trump discursava no Capitólio durante a posse.
Naquele momento, saiu do ar o CPB One, aplicativo do governo americano que organizava as solicitações de migrantes que desejavam entrar legalmente nos EUA.
Todos os agendamentos foram cancelados assim que o aplicativo saiu do ar.
Na fronteira com México, migrantes foram vistos chorando, lamentando o fim do aplicativo.
Enquanto isso, Trump assinava uma ordem executiva determinando o fim do direito à cidadania automática a filhos de estrangeiros nascidos nos EUA. A medida, porém, envolve mudar a Constituição americana e por isso já está no meio de um imbróglio jurídico que só deve ser decidido pelas mãos da Suprema Corte.
O republicano também anunciou a retomada do programa "Fique no México", que obriga pessoas que solicitaram asilo aos Estados Unidos e não são mexicanas a aguardarem por uma resposta no México.
O programa foi lançado por Trump em 2019, em seu primeiro mandato. A ofensiva contra imigrantes também fez parte das primeiras políticas instituídas pelo republicano naquela época.
Logo que assumiu, ainda em janeiro de 2017, Trump assinou um decreto instituindo a construção de um imenso muro na fronteira com o México, uma de suas promessas de campanha.
Em meio a uma briga sobre quem deveria financiar o muro — os Estados Unidos ou, como defendia Trump, o México —, a construção só teve início, de fato, em 2019.
Assim que assumiu a Casa Branca em 2021, o democrata Joe Biden determinou pela suspensão da obra.
No pacote anti-imigração anunciado nos últimos dias, Trump prometeu também retomar a construção do muro.
Por ordem de Trump, o Departamento de Defesa americano passou a ceder aviões militares com o objetivo imediato de deportar mais de 5 mil migrantes não documentados detidos na fronteira do México com os Estados Unidos.
Esses voos militares se somam aos frequentes voos civis para deportar migrantes que já eram operados desde os governos anteriores pelo Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos EUA (ICE, na sigla em inglês) — e que continuam a ocorrer.
No entanto, Trump estabeleceu uma meta para acelerar essas deportações, chegando a 1 milhão de deportações por ano.
O número é mais que o dobro do máximo de deportações realizadas em um único ano nas últimas décadas, segundo dados do Departamento de Segurança e do ICE.
Em discurso feito a congressistas republicanos no início da noite de segunda-feira, Trump incluiu o Brasil em um grupo que classificou como de "países que nos querem mal".
Mais uma vez, ele também afirmou que colocará tarifas sobre produtos brasileiros.
"Vamos impor tarifas a países estrangeiros e pessoas externas que realmente nos querem mal. Eles nos querem mal, mas basicamente querem tornar seu país bom. Veja o que os outros fazem. A China é um grande criador de tarifas. Índia, Brasil, tantos, tantos países. Então, não vamos deixar isso acontecer mais, porque vamos colocar a América em primeiro lugar", afirmou Trump, sem citar percentuais ou datas para o suposto início da taxação.
A declaração é semelhante ao que o próprio Trump afirmou semanas atrás, também tendo como alvo Índia e Brasil, sobre suas supostas taxas pesadas e a necessidade de aplicar a reciprocidade.