As organizações internacionais de ajuda humanitária passam o pires: a crise após os cortes dos Estados Unidos
Segundo a ONU, a queda nos repasses para organismos vinculados à pasta entre 2024 e 2025 foi superior a 70% - uma retração abrupta e sem precedentes recentes
Passado quase um ano desde que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) suspendeu e, posteriormente, encerrou suas atividades no exterior, as organizações internacionais perderam o principal pilar financeiro que sustentava grande parte de suas operações. O Serviço de Rastreamento de Financiamento do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) reporta uma queda superior a 70% nos repasses para organismos vinculados à pasta entre 2024 e 2025 — uma retração abrupta, sem precedentes recentes.
À época do anúncio, diversas organizações descreveram o cenário como "terra arrasada". O Brasil, apesar de não figurar entre os maiores recipientes da USAID no mundo, ainda sofreu impacto significativo: recebeu apenas 30 dos US$ 56 milhões prometidos para 2024. Parte desse montante financiaria operações de agências como a Organização Internacional para as Migrações (OIM), que mais tarde anunciou um déficit de US$ 5 milhões apenas em suas atividades no país — caso ao qual retornarei mais adiante.
Para compreender a profundidade da crise de 2024-2025, é fundamental retomar o papel histórico dos Estados Unidos na arquitetura da assistência internacional. Desde o pós-Segunda Guerra Mundial, a ajuda externa norte-americana foi muito mais que um gesto humanitário: tratou-se de um instrumento de soft power, estabilização geopolítica e liderança normativa. A USAID e o Escritório de Assistência Humanitária (BHA) operaram como a espinha dorsal financeira que permitiu ao Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) e à OIM planejar operações globais com previsibilidade e escala.
A retração dos EUA, em tese, poderia abrir espaço para novos atores internacionais preencherem o vácuo. Embora o presidente Donald Trump veja a China como seu maior competidor estratégico, a redução da presença americana no exterior cria oportunidade para que outros países assumam áreas nas quais a USAID acumulava ampla experiência — assistência alimentar em emergências, resposta a desastres, combate ao HIV/AIDS e programas de empreendedorismo. Em tese. Na prática, esse espaço não tem sido ocupado na mesma proporção.
A China, por exemplo, não costuma impor condicionalidades políticas explícitas, mas seu histórico de pouca transparência gerou críticas recorrentes, incluindo acusações de "armadilha da dívida". Nos últimos anos, Pequim tem avançado em direção a práticas mais alinhadas às diretrizes da OCDE, com empréstimos mais claros e menor opacidade. Ainda assim, mesmo com o maior engajamento chinês, países tradicionalmente generosos — Japão, Noruega, Alemanha e Reino Unido — mantiveram ou reduziram suas contribuições, agravando o cenário global de escassez.
O Brasil como laboratório da crise
No biênio 2024-2025, o Brasil tornou-se um laboratório vivo das consequências dessa crise internacional. Embora o país se orgulhe de sua tradição diplomática de acolhimento, sua capacidade interna foi testada pelo recuo abrupto dos recursos externos que sustentavam, de forma pouco visível, grande parte de sua infraestrutura humanitária.
A Operação Acolhida — resposta do governo federal ao fluxo migratório venezuelano em Roraima — é frequentemente citada como um exemplo de cooperação civil-militar bem-sucedida. Contudo, sua arquitetura financeira sempre foi híbrida e frágil. Enquanto as Forças Armadas brasileiras assumem a logística pesada, a "inteligência humanitária" — gestão de abrigos, proteção legal, registro biométrico e interiorização — depende fortemente das agências da ONU, especialmente OIM e ACNUR, financiadas majoritariamente pelos Estados Unidos. O recuo da USAID expôs esse modelo com clareza inédita.
A privatização da resposta a desastres
É nesse contexto de incerteza e reinvenção forçada que algumas organizações passaram a buscar alternativas domésticas e não convencionais. No caso da OIM, a estratégia envolveu a aproximação com atores que historicamente não financiavam assistência humanitária. Diante da falta de recursos — já evidente na própria Operação Acolhida — a organização buscou apoio no setor privado brasileiro durante as enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024.
A solução encontrada foi inédita: a construção de Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs) financiados majoritariamente pelo Sistema Fecomércio-RS. Os quase US$ 11 milhões destinados em um único aporte constituem o maior financiamento privado da história da OIM no Brasil.
Esse modelo, no qual uma federação empresarial financia diretamente uma agência da ONU para executar serviços humanitários, é um exemplo claro do que a literatura contemporânea descreve como "neoliberalismo humanitário" ou "privatização da ajuda". Aqui, o Estado — nacional ou internacional — recua ou se revela incapaz de responder integralmente a uma crise com a agilidade necessária. O setor privado, então, emerge não apenas como doador filantrópico, mas como financiador estrutural.
Essa dinâmica levanta dilemas importantes: a dependência crescente de recursos privados torna a ação humanitária vulnerável à saúde financeira e aos interesses do empresariado local, deslocando parte da responsabilidade pública para a lógica corporativa.
Durante as mesmas enchentes, a participação de Elon Musk, via Starlink, foi celebrada e criticada na mesma intensidade. O episódio ilustra como a ajuda privada se torna rapidamente parte da disputa política e do debate público. Da mesma forma, embora o aporte da Fecomércio tenha sido central para a resposta emergencial, ele insere a assistência humanitária no universo dos stakeholders, onde prioridades podem refletir visibilidade, reputação e interesses econômicos.
O desafio é evidente: a privatização da ajuda tende a privilegiar crises agudas, altamente visíveis e com impacto direto no território das empresas doadoras. Crises crônicas, silenciosas ou geograficamente distantes — como a recepção de refugiados em Roraima — dificilmente atrairiam mobilizações privadas de igual magnitude. A desigualdade de atenção e recursos entre populações vulneráveis, portanto, tende a se aprofundar.
Matheus Felten Fröhlich recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) entre 2021-2024 e do Canadian Bureau for International Education (CBIE) em 2022.