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Surdo de nascença, Gui faz vaquinha e dá ippon nas barreiras pelo sonho olímpico

Judoca de 20 anos, que coleciona medalhas e encara dura rotina de treinos, precisou comprar quimonos com o selo da Federação Internacional após entrar para o grupo da seleção brasileira

22 abr 2022 - 05h10
(atualizado às 10h30)
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O sol nem bem nasceu na Vila Romana, zona oeste de São Paulo, e Guilherme Cardoso Nobilo, o Gui para os familiares e amigos, já está de pé esbanjando disposição para iniciar sua longa e desgastante rotina diária. Antes da alvorada, entre 5h e 5h30, o jovem judoca de 20 anos toma um café balanceado para encarar entre 17 e 18 horas de estudos e treinos para se formar em Fisioterapia e "ganhar" uma medalha olímpica no judô nas 24° Surdolimpíadas, em Caxias do Sul, entre 1° e 15 de maio. Nos planos do atleta da categoria dos meio médios (73 quilos) ainda está subir no pódio do Mundial de Judô do Japão, em 2024.

Determinação, coragem, disciplina, força, foco e superação são virtudes que caminham lado a lado com o mais novo integrante da seleção brasileira de judocas surdos. Nobilo (apesar de o nome não ter acento esta é a pronúncia correta), como é chamado nas competições, garantiu sua classificação para a equipe nacional em seletiva no dias 18 e 19 de março, no Rio de Janeiro. Apenas o vencedor se garantia e Guilherme ganhou todas as quatro lutas. A classificação veio com um ippon com o cronômetro zerando.

Como prêmio, a classificação para participar da Surdolimpíada, com atletas de todo o mundo em competição que será realizada primeira vez na América Latina. Em meio à felicidade por mais um triunfo, iniciou-se mais uma corrida contra o tempo. Na seleção, os atletas são obrigados a utilizarem quatro uniformes oficiais por competição, com quimonos e a faixa preta com selo oficial da Federação Internacional de Judô (IJG). Um gasto que não estava no orçamento de R$ 8 mil.

"O protocolo para ir à Olimpíada não é tão simples e, devido ao elevado preço, resolvemos fazer uma vaquinha virtual, como todo atleta faz", revela Joyce Cardoso Nobilo, mãe e grande incentivadora. "É maravilhoso ir, mas ninguém sabe o custo do processo. Conseguimos o objetivo de arrecadar R$ 6 mil (receberam um pouco mais), graças aos amigos e com o pessoal do judô colaborando", agradece. Os uniformes foram encomendados e estão vindo da Holanda, com G. Nobilo nas costas e estarão no País antes do embarque para Caxias do Sul, dia 28 de abril.

Único atleta surdo registrado pela Federação Paulista de Judô, Guilherme é um fenômeno na modalidade. São mais de 70 medalhas na carreira, que começou aos seis anos graças a um encontro inusitado entre o pai, Mário, e o campeão olímpico de 1988, Aurélio Miguel.

Guilherme nasceu surdo por causa de um problema de Joyce na gestação. A mãe contraiu rubéola e a doença acabou atingindo-o de maneira congênita. Apesar da deficiência auditiva, sempre foi uma criança hiperativa e essa característica acabou determinante para ir ao judô. Ele chegou a tomar medicação, ganhou peso e não conseguia dormir. Para acalmá-lo, o pai fazia caminhadas no Butantã com o pequeno Gui e certo dia se depararam com Aurélio Miguel. Solicito, o ex-judoca disse que o menino poderia se tornar um judoca e indicou a academia de Massao Shinohara, da qual também foi aluno, na Vila Sônia. "Leve o menino na Vila Sônia, eu treinei lá, ele tem perfil de judoca", ouviu Mário Nobilo. Confiou nas palavras sinceras que ouviu e deu início à mudança de vida da família.

COMEÇO INUSITADO

Pai, mãe e futuro campeão se dirigiram até a academia em uma terça-feira de Carnaval. Encontraram o local fechado. Como a família Shinohara morava ali, o sobrinho Marcelo acabou os atendendo. O sensei pediu que voltassem no dia seguinte à tarde. "Mas ele é surdo", revelaram. "Não tem problema, a gente coloca ele no tatame", ouviram. Retornaram e ficaram lá com muito medo de como a criança de seis anos iria entender e reagir. Como o judô não tem o falar, só o visual, com regras montadas, a adaptação não seria difícil.

Mas para surpresa da família e hoje motivos de diversão, qual era a reação de Gui na época? "No início ele não parava no tatame, corria, não parava lá. Eu não podia sair da arquibancada, que ele saia correndo do tatame. Até ter essa disciplina, tranquilidade, levou tempo", lembra Joyce. Foram seis meses de treinos que transformaram o menino inquieto em uma criatura tranquila, disciplinada, como enfatiza a orgulhosa mãe.

"O judô nos serve de lição para a vida, o Guilherme é apaixonado, ele usa para estudos, nas relações, foi transformador na vida dele como na nossa. Eu também fui fazer judô, sou faixa roxa. Parei por falta de tempo e o pai também é. Pelo trabalho acabou parando."

Guilherme motivou a família e virou um fenômeno dos tatames. Desde a primeira vez que foi para um campeonato, sempre ganhou. Já foi campeão paulista, da concorrida Copa São Paulo, com adversários que vêm de todos os lugares... Presença constante em pódios, começou a experimentar as derrotas quando começou a lutar no sub-18, com atletas maiores. Usou os ensinamentos do clã Shinohara para absorver os resultados negativos e buscar a volta por cima.

Hoje treinando com Kum Shinohara, Gui sempre se destacou em cima do dojô e seu talento fez seus mestres se adaptarem a seu problema auditivo. O que se tornou não apenas uma maneira de comunicação, mas uma vantagem contra os adversários, como revela sua mãe.

"Os técnicos desenvolveram maneiras de se comunicar com gestos. Faziam sinais e os outros não sabiam o golpe que ele daria. Outra vantagem boa nos campeonatos era na questão da espera. O falar é estressante e ele se mantinha na dele. O adversário não sabia que está pensando, pois não demonstrava nervosismo", afirma Joyce. Ela sabia que a tensão também afligia o filho, porém sem transparecer.

PIOR MOMENTO

Nem tudo foi felicidade na carreira do menino que estudava pela manhã, fazia reforço de português e matemática à tarde, além da fonoaudiologia, antes de ir para os treinos. Apenas no retorno para casa, já bem tarde, ele ainda fazia os trabalhos de escola. As noites de sono não iam além de quatro horas. A dedicação para se tornar um campeão sofreu um baque quando rompeu os ligamentos em 2017. Os pais estavam desempregados e ele não contava com assistência médica.

"Ele é o menisco e precisava fazer cirurgia. Era fim de 2017, ele ficou afastado, foi muito complicado, chorava muito, escondido. Com certeza o pior momento do Guilherme", lembra Joyce. "Ele teve de se afastar de tudo, com os pais sem emprego e não tínhamos convênio. Dependíamos do SUS e lá diziam que não era nada", continua. O desespero era geral com a possibilidade de interrupção de uma grande história de vida.

Eis que surgiu outro anjo da guarda na vida de Guilherme. O personal Fernando Ribeiro, então trabalhando com a família Gracie, disse que conversaria com um amigo especialista. Tratava-se de Caio D'elia, do São Paulo e responsável pelo Instituto Vita. O profissional pediu uma nova ressonância à família, que diagnosticou a necessidade de cirurgia. O gasto seria de R$ 60 mil, o que deixou todos emocionalmente abalados, sobretudo o lutador então com 16 anos.

Caio D'elia surpreendeu a família ao realizar o procedimento sem cobrar nada, pela ONG do São Paulo. Guilherme ainda realizou um ano de fisioterapia no Instituto Vita. A lesão acabou superada, assim como manifestações de buylling que acabou presenciando na Internet. As conversas com a família e grupos de amigos acabou na expulsão do agressor das redes sociais, além de uma retratação. Apesar do temor de um abalado psicológico dos pais e até possibilidade de suicídio, o bem resolvido e independente Gui tirou de letra o episódio.

DESEJO CURIOSO

Guilherme sempre recebeu muito apoio dos pais, presentes em tempo integral em sua vida. Mário chegou a trabalhar em alguns torneios apenas para estar próximo do filho. Quando conseguia se credenciar, estava lá na concentração ao lado de seu menino prodígio. "Um dia eu entrei e não tinha dado conta que só haviam homens e eu na fila. Passou um pelado, daí veio meu marido perguntando o que estava fazendo ali e eu saí", se diverte Joyce, com a situação constrangedora. "Nem todo lugar a gente pode ir, mas aonde é permitido estamos auxiliando. Até trabalhei como ajudante pegando carteirinhas para estar junto do Guilherme", revela Mário.

Todo esse apego ao menino gerou um pedido bem anormal de Guilherme. Ele não queria ser filho único e pediu uma irmãzinha. Mas a caçula também teria de ser surda. Os pais explicaram que aquela missão eles não poderiam realizar e, com o tempo, convenceram o judoca.

O problema auditivo, por sinal, jamais foi um empecilho para Guilherme. Além da paixão pelo judô, o jovem que completará 21 anos no dia 26 de março, dois dias antes de embarcar para a Olimpíada, seu presente antecipado de aniversário, é bastante dinâmico e adora curtir a vida. Quando tem tempo, gosta de passear. Vai ao teatro, shopping e restaurantes, sobretudo japonês. Adora culinária e, generoso com o carinho recebido desde o nascimento, sempre procura agradar os pais e também os familiares mais próximos preparando um aprovado e suculento prato francês.

Guilherme ousa na arte culinária e é um mestre cuca de primeira quando prepara um tartiflette para seus progenitores. A especiaria francesa à base de batatas, queijo, bacon e creme de leite fresco faz sucesso no recanto dos Cardoso Nobilo.

"O judô ocupa parte importante da vida dele, outra os estudos, que tem como algo fundamental para a vida. Ele diz: é minha profissão", revela a mãe, um tanto babona com tanto amor envolvido. "Ele adora fazer um almoço para o pai. Trouxe para os tios e avós experimentarem e passou para a turma da faculdade. Fez o tartiflette até para o Natal. Fora da temporada de lutas", disse Joyce. Nas festas, um pouco de exagero é permitido. Na época dos campeonatos, os pais procuram levar uma dieta que não prejudique o filho para que fique brigando com o peso.

Guilherme ainda fez parte de um projeto social. Era auxiliar para incentivar jovens da comunidade a buscarem seus objetivos no esporte ao lado da amiga e professora Larissa Thabyyba, única técnica do judô que sabe se comunicar por libras e essencial em sua caminhada pela faixa preta. A ação deu uma parada por causa da pandemia, mas ambos ainda sonham com o retorno.

Por falar em sonhos, o jovem lutador é determinado e tem metas de vida a serem realizadas até 2024, ano olímpico e também de Mundial de Judô. Ele quer conhecer a França (berço da comunicação surda, onde começaram os movimentos para essa comunicação) e o Japão, subir no pódio da Olimpíada de Judô e também no Mundial que ocorrerá no país asiático daqui dois anos.

"Eu tenho certeza que vou", garante Gui à família. Traçar metas é um dos mantras seguidos graças aos preciosos ensinamentos do mestre Massao Shinohara, falecido em 2020. "Se tem vontade, imagine você realizando e acredite, que acontece", cresceu sobre tais regras. O sensei sempre usou discursos motivacionais que cativaram Guilherme.

"Coloca isso na mente, que vai conseguir. Se imagine lá. No tatame vai vencer aquele que desejar mais. Nunca entre com medo, entre querendo vencer", faz parte dos 15 anos dedicados ao judô e move este vencedor jovem que adora um desafio e não se cansa de dar lições de superação.

Estadão
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