"As pessoas têm que parar de colocar sapatão pra sofrer", diz DJ e produtora Lela Gomes
Mulheres do mercado compartilham vivências, refletem sobre memória e dividem inspirações
Em 1998, a novela 'Torre de Babel', da TV Globo, reunia milhares de brasileiros em frente às telas. Dirigida por Silvio de Abreu, a produção era a sensação da época, mas começou a incomodar alguns telespectadores quando colocou a lesbianidade em pauta. O casal Leila e Rafaela, interpretado pelas atrizes Silvia Pfeiffer e Christiane Torloni, causou repugnância nacional. Anos 1990 e duas mulheres de romance na televisão? Um delirante absurdo. A imprensa fortaleceu a narrativa, e as cenas, que sequer eram íntimas e mantinham um tom quase conservador, gerou perturbação. O desconforto foi tanto que a emissora percebeu que era momento de agir, ou uma crise de audiência estaria por vir. A solução? O assassinato das personagens. No dia 12 de julho do mesmo ano, Leila e Rafaela morreram em uma explosão. O público celebrou, e parece ter decidido se ancorar nesses escombros. O tempo passou, o milênio virou, mas o apagamento de mulheres lésbicas ainda é uma realidade. E pior: muito longe de ser transformada.
"Foi a primeira vez que vi algo que me deixou chocada, e eu era só uma criança, nem sabia o que era lésbica, sequer me dava esse nome. Lembro da torre desabando com as duas dentro, e isso me atravessou", relembra Ana Claudino, Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos (UFRJ) e criadora da plataforma Sapatão Amiga, que aborda diversas pautas urgentes da comunidade.
A memória resgatada por Ana traz à tona a gravidade da ausência de narrativas lésbicas. Era assim no passado, e após tantas evoluções em diversas áreas socioculturais, o olhar voltado para mulheres que amam exclusivamente outras mulheres ainda é nebuloso, para não dizer escasso. Tem uma coisa aqui, outra ali - mas, em geral, o que se percebe é uma má vontade visceral da indústria cultural de mergulhar nessas histórias. Compreensível, afinal, a realidade é ainda mais grave se analisada de perto: se conta nos dedos as mulheres assumidamente lésbicas que são conhecidas nacionalmente no mundo das artes e do entretenimento. Aqui, ainda é preciso lidar com os equívocos. A cantora Ana Carolina, por exemplo, é considerada por alguns como um patrimônio nacional sapatão, mas já declarou incontáveis vezes que é bissexual. Porém, quando se trata de relações entre mulheres, tudo parece ser jogado no mesmo balaio.
"O recorte é fundamental, precisamos de olhares interseccionais sobre as lesbianidades. A identidade lésbica é plural, depende como você se identifica. É preciso refletir sobre questões de raça, de gênero. Os enfrentamentos de uma lésbica branca nunca serão os mesmos de uma lésbica negra, ou indígena. O mesmo vale para a questão territorial. Quem mora em uma área nobre da cidade, não tem as mesmas vivências de quem mora nas periferias. A maioria das produções atuais falam de uma lesbianidade branca, sudestina, de classe social mais alta. Os corpos são sempre magros, também", analisa Ana.
O limbo das referências
Tanto apagamento, para além das consequências na fomentação da cultura, recai em um lugar ainda mais íntimo e violento: a falta de referências, que afeta lésbicas de todas as gerações. Com o silenciamento, a lesbianidade acabou sendo colocada em um lugar fantasioso, mítico, quase irreal. E sem ninguém reconhecendo plenamente essa existência, seja na televisão, nos rádios, no cinema ou nos livros, ela foi se deformando na consciência social. Virou senso comum que sapatão é dramática, infeliz, amargurada. Se entendeu que, se uma mulher ama outra, ela vai sofrer, automaticamente. Daí, essa coisa de se falar até hoje dos relacionamentos lésbicos de um lugar sofrido, sempre de dor, e quase nunca de felicidade. É de esperar que muitas dessas mulheres começaram a acreditar, de fato, que não merecem ser felizes.
"As produções lésbicas são pouco divulgadas por conta da invisibilidade lésbica. Existe um apagamento social das lesbianidades, ainda não é uma narrativa tão popular quanto a de homens gays, por exemplo. Também é de se pensar quem são as produtoras audiovisuais, quem são as empresas que estão por trás da produção cultural no geral, nos streamings, nos cinemas. Se você não dá chances para lésbicas ocuparem cargos de liderança, o interesse de produzir algo sobre lésbicas vai ser menor ainda. O machismo impede que relações lésbicas sejam levadas à sério", reflete Ana.
A artista e ilustradora lésbica Jenifer Prince sabe bem o que é isso. Nascida em Guaxupé, Minas Gerais, Jenifer constrói "narrativas sáficas com estética vintage", e soma mais de 300 mil seguidores, só no Instagram. A ideia do caminho criativo surgiu exatamente da falta de referências que acompanharam a artista ao longo dos anos. É como se ela recriasse a linha do tempo, estreitando as fronteiras entre passado, presente e futuro.
"Com certeza falta um interesse em investir para que histórias lésbicas sejam contadas, assim como, sem dúvidas, falta um cuidado em ter lésbicas envolvidas nessas produções. O que não falta é público e lésbicas que querem contar nossas histórias", acredita Jenifer.
Sobre as produções que a emocionaram ao longo da vida, quase todas vieram do exterior, como o filme "Imagine Me & You" e a série "The L Word". Ela, que maratona os dois ao mesmo tempo, relembra a emoção inédita de se sentir vista.
"Tanto o filme quanto TLW me tocaram muito. No caso do filme, foi uma sensação incrível ver uma história com um final feliz, coisa que era rara, ainda mais num formato de clichê que eu só tinha visto com casais heterossexuais. Infelizmente, vejo a produção e o consumo sendo mais intensos no exterior. No Brasil, o incentivo financeiro para que essas histórias sejam produzidas e divulgadas ainda é muito pequeno, mas existem autoras independentes fazendo trabalhos incríveis", analisa a artista.
Falando sobre audiovisual, especificamente, os avanços são relevantes, mas ainda rasteiros. Prova disso é o cancelamento de diversas séries com protagonismo lésbico ou bissexual, como 'Killing Eve', 'Primeira Morte', 'Mãe Só Tem Duas' e 'Supergirl'. Sobre isso, a DJ e produtora cultural Lela Gomes traz um ponto importante. Criadora da Boleia Produções e da Lambe Lambe, a maior festa sapatão da capital carioca, ela acredita que a humanização virá através da noção de que a felicidade é possível.
"As pessoas têm que parar de colocar sapatão para sofrer. É muito raro vermos um filme lésbico com um final feliz, é sempre aquela tristeza, aquela lamúria. Falta olharem para nós com cuidado, investir nessas mulheres. Por outro lado, é legal falar sobre as produções independentes das webséries lésbicas no Brasil, que são muito pouco divulgadas e muito interessantes", comenta, indicando as séries 'Esconderijo', 'Septo', 'Red' e 'Stupid Wife - todas disponíveis na plataforma Youtube.
Há exatos 26 anos, a sociedade brasileira celebrava em frente à TV o assassinato simbólico das mulheres lésbicas. Quase três décadas depois, o sofrimento sapatão ainda parece ser o objeto favorito de contemplação da indústria. Eles esquecem, porém, que no caminho da dor existe também fortalecimento. A escritora norte-americana Cheryl Clarke, autora do livro 'Vivendo como uma lésbica', escreveu: "A mulher que faz uma mulher amante vive perigosamente no patriarcado". Estamos vivas. E somos muitas.