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O que leva um atleta ao alcoolismo e como se livrar dele sem estragar a carreira?

Depoimentos de jogadores e ex-jogadores revelam o drama vivenciado em diferentes momentos da vida e suas consequências

9 mar 2020 - 04h40
(atualizado às 07h37)
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O que leva um atleta ao alcoolismo? O que impede que um jogador de futebol que consome álcool em excesso, sem ser ainda alcoólatra, desenvolva o vício? A julgar pelos históricos de personagens com certa milhagem em mesas de bar, as companhias podem detonar uma carreira, assim como bons conselhos e orientações têm o condão de devolvê-la aos trilhos. Jô, um dos grandes responsáveis pela conquista do último título do Brasileirão pelo Corinthians, em 2017, chegou a ter a imagem chamuscada por ser bom de copo.

A facilidade para marcar gols diminuiu, e ele correu o risco de ficar fora da Copa do Mundo de 2014, mesmo tendo feito boa figura na Copa das Confederações do ano anterior. "Não era considerado um alcoólatra, até porque não bebia todos os dias. A bebida prejudica o desempenho nos treinos. Não tinha o comprometimento máximo, e os treinadores sempre avaliam isso num jogador", disse o atacante, que hoje defende o Nagoya, do Japão.

Para superar aquele momento, Jô contou com ajuda, muita ajuda. "Sem minha família, não teria conseguido. Minha mulher esteve ao meu lado e não permitiu que eu me entregasse. Também tive força de vontade para largar", conta o goleador, que abraçou a fé evangélica.

A tendência ao alcoolismo pode se tornar mais forte quando o jogador não é acompanhado por uma mulher dedicada, como no caso de Jô, mas por figuras incapazes de oferecer conselhos úteis, como boa parte dos chamados "parças", um tipo de amigo mais comumente encontrável nos melhores momentos. "A turma que leva ao divertimento hoje é maior. Com os salários que se pagam aos jogadores destacados, eles podem pagar a conta do bar de uns 20. Imagine a quantidade de 'amigos' entrando em contato, chamando para a noite a todo momento", pontua Marco Aurélio Cunha, ex-médico do São Paulo.

Careca, campeão brasileiro pelo Guarani e pelo São Paulo e companheiro de Maradona no Napole, vê nas gerações mais recentes de atletas uma preferência por bebidas alcoólicas mais danosas. "A segunda-feira era o nosso domingo. No pós-jogo, já íamos para um boteco. Mas ficávamos mais na cerveja. Hoje não tenho contato com a molecada que está jogando, mas vejo nos bares muitos jovens bebendo destilados. É uma loucura essa coisa de tomar vodka com energético. Imagino que os jogadores atuais também tenham esse tipo de preferência. O destilado causa um efeito mais prejudicial, o corpo demora mais para se recuperar. Já a cerveja tem um grau alcoólico menor. Você vai urinando e eliminando aquilo."

Quanto aos requisitos físicos, o grande parceiro de Maradona reconhece que hoje é necessário ter um preparo atlético mais aprimorado. "O futebol atual é muito competitivo fisicamente. É força bruta ao longo de 90 minutos. Hoje, o cara talentoso dribla o marcador uma vez, mas o cara se recupera e volta. Esse cara que joga melhor tem de ter também um poder de arrancada para se desvencilhar do adversário."

A adulação e os elogios fáceis que muitos pretensos craques recebem graças a um punhado de boas partidas criam autoimagens distorcidas. Essa é uma armadilha que compromete muitas carreiras, no olhar do médico Joaquim Grava. "Se o cara estiver no auge, ele acha que se garante sempre, bebendo ou não. Quando a vaidade supera a inteligência, o homem se perde", ensina.

Zé Roberto, lateral, volante e meia que defendeu Palmeiras, Santos, Portuguesa, Real Madrid e Bayern de Munique, entre outros, confessa que a atratividade da noite e do copo sempre cheio chegou a tirá-lo do prumo em duas ocasiões: bem no início da carreira, quando ainda jogava pela Lusa, e nos tempos em que viveu em Madri, Espanha. "Eu morava com a minha mãe em São Miguel Paulista, mas a Portuguesa passou a pagar o aluguel de um imóvel para mim no Cangaíba, um bairro por ali mesmo. Comprei nessa época meu primeiro carro, um Fusca 73 que equipei todinho. Às vezes saía à noite com os companheiros de equipe e só voltava ao amanhecer".

Uma bronca do treinador Cassiá fez o jogador refletir sobre as noitadas. "Ele me disse que, no treino, eu subia para apoiar e voltava de táxi. Como sempre tive grandes objetivos no futebol, percebi que poderia ficar no meio do caminho se não mudasse minha atitude", diz o jogador, que se aposentou e hoje exerce o cargo de embaixador, divulgando a marca Palmeiras em eventos e campanhas institucionais.

Em 97, o então lateral novamente tomou decisões que o prejudicaram. "Quando fui para o Real Madrid, eu me deslumbrei. Só queria sair e me divertir. Quando a gente passa a noite curtindo e bebendo, perde o foco. O descanso é importante para o atleta". Antes de assumir o cargo de embaixador do Palmeiras, Zé Roberto foi assessor técnico no mesmo clube, fazendo a ponte entre jogadores, comissão técnica e diretoria. Naquele período, pôde orientar garotos da base. "A pedagoga do clube chegou a me pedir para orientar um atleta da base que estava em situação difícil, abusando da bebida. E é claro que podemos ajudar. Os garotos sempre me perguntam como fiz para jogar por 14 anos na Europa, como pude atuar em alto nível até os 43 anos. Com uma resenha, uma palavra, fui capaz de mostrar ao rapaz que devemos colocar o profissionalismo em primeiro lugar." Cicinho tenta fazer o mesmo com seu depoimento.

Outro ex-atleta que se empenha para orientar jovens jogadores é Silas, que proferiu uma palestra no CT da base do São Paulo, em Cotia, bastante elogiada pelo psicólogo que lá atua, Gabriel Puopolo de Almeida. O tema foi pertinente. "A rapaziada de hoje idealiza muito o que é uma carreira no futebol, e acaba se frustrando. Nem todos vão virar um Kaká, um Ronaldinho Gaúcho, um Ronaldo Fenômeno. Quando se frustram, muitos acabam apelando para a bebida", diz o ex- jogador, que teve passagem marcante pelo São Paulo e foi convocado para duas Copas do Mundo (1986 e 1990).

Dono da Amplia Consulting, Silas tem conversado com a Federação Paulista de Futebol (FPF) para levar suas palestras a clubes do interior, nos quais os problemas com álcool, suspeita ele, são ainda mais recorrentes. "As frustrações desses atletas são maiores. Grande parte dos jogadores dessas equipes está sujeita a um calendário de jogos de apenas três meses. Ficam nove meses sem trabalhar. E a primeira coisa que fazem é filho. Com esses problemas, muitos deles acabam apelando para o álcool".

Estadão
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