Uma década de avanços e tropeços na luta por um futebol antirracista
Perseguição a Vini Jr. e racismo crônico na Libertadores reforçam necessidade de medidas mais radicais no enfrentamento ao preconceito
“Me desculpe, você é preto.” Essa era a desculpa que o pernambucano Lula Pereira, treinador com passagens por Flamengo, Bahia e Ceará, cansou de ouvir de empresários ao ser descartado por clubes de futebol. Dirigentes até gostavam de seu perfil, reconheciam os méritos de seu currículo, mas hesitavam em contratá-lo por causa da cor de sua pele. Apesar de toda a experiência, Lula, que morreu em 2021, amargou um longo ostracismo na profissão, assim como Andrade, que conduziu o rubro-negro ao título brasileiro em 2009, mas não conseguiu deslanchar como treinador.
A entrevista que Lula Pereira me concedeu em protesto contra a discriminação racial no meio foi publicada em 2013, na revista Placar. Naquela época, só havia um técnico negro entre os 40 clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro. Dez anos depois, a realidade permanece praticamente inalterada. Apenas o português Pepa (Cruzeiro) e Vanderlei Luxemburgo (Corinthians), além do interino Cláudio Caçapa (Botafogo) ocupam cargos na elite nacional.
Dez anos atrás, porém, a percepção do racismo no esporte era bem diferente de hoje. Em linhas gerais, o que se via e lia sobre o tema eram repercussões pontuais de ofensas racistas praticadas por atletas e torcedores, contribuindo para a perpetuação de um imaginário que resume a questão racial no contexto esportivo a “casos isolados” de discriminação.
Ainda que a luta antirracista esteja longe do fim, é possível notar, sob um viés mais otimista, avanços no combate ao preconceito e à desigualdade racial num terreno historicamente permissivo com o racismo. Ao contrário de dez anos atrás, as pessoas começam a se questionar por que, assim como treinadores, há tão poucos executivos negros em posições de comando nas entidades esportivas. Atletas, que antes se apressavam em conter colegas indignados diante de um ato discriminatório, agora tentam se esforçar para ouvir um companheiro de profissão que denuncia práticas do gênero. Torcedores, ainda que a duras penas, passam a entender que não deve existir – embora ainda exista – licença para ser racista dentro dos estádios.
Tivemos marcos notórios, como o surgimento do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que desenvolve estudos e monitora casos de racismo no esporte, a inédita eliminação de um time por causa de atos racistas de sua torcida – o Grêmio, em 2014, após ofensas ao goleiro Aranha –, uma cobertura mais crítica da imprensa, que antes se limitava a registrar incidentes racistas de maneira pontual, além da sensibilidade maior ao tema por parte da CBF, que, pela primeira vez em sua história, tem um presidente negro, Ednaldo Rodrigues.
Em 2019, o Maracanã também abrigou um dos acontecimentos mais emblemáticos do futebol brasileiro na luta antirracista. O aperto de mão entre Roger Machado e Marcão, até então os dois únicos treinadores negros daquela edição do Campeonato Brasileiro, foi simbólico por evidenciar como os ex-técnicos de Bahia e Fluminense faziam parte da exceção.
No palco onde os negros Barbosa, Bigode e Juvenal foram crucificados pela derrota na Copa de 1950, o técnico do Bahia proferiu um discurso antológico sobre o racismo estrutural que atravessa toda a sociedade — a modalidade esportiva mais popular do país apenas contribui para torná-lo mais visível. Após o jogo, Roger questionou o mito da democracia racial no Brasil, que, por muitos anos, se apoiou na suposta diversidade refletida pelos campos de futebol. “O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando vou ao restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Mas, mesmo assim, quando a gente fala isso, ainda tentam dizer: ‘Não há racismo, está vendo? Você está aqui’. Não, eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.”
A fala histórica de Roger Machado, que está sem clube desde que deixou o comando do Grêmio, em setembro do ano passado, permanece atual e necessária. Pois, embora tenhamos celebrado conquistas na última década, também sofremos com retrocessos e frustrações pelo caminho. A Copa Libertadores, por exemplo, continua sendo território fértil para o racismo. Mesmo depois de a Conmebol endurecer as multas ao clubes, foram nove denúncias de ofensas racistas proferidas por torcedores apenas durante as fases iniciais da competição.
Para completar, a confederação sul-americana anunciou esta semana a suspensão de Bruno Tabáta, do Palmeiras, simplesmente por denunciar gestos racistas da torcida do Cerro Porteño. Muda-se o discurso, mas se mantém a velha prática conveniente de punir a vítima, não o infrator.
Em campo, atletas negros seguem expostos ao racismo de torcedores e até mesmo de companheiros de profissão. Principal jogador brasileiro da atualidade, Vinicius Jr. tem sofrido com a perseguição implacável de racistas na Espanha. Apesar dos recorrentes casos de violência racial contra o atacante no país, a CBF achou uma boa ideia realizar amistoso em Barcelona sob o mote “com racismo, não tem jogo”. Resultado: teve racismo. Um amigo de Vini denunciou abordagem racista de um segurança ao entrar no estádio.
Se há dez anos Daniel Alves e Neymar entendiam que o combate ao racismo acabaria ao tratar ofensas como piada, comer banana atirada por torcedores racistas no campo, transformar a cena em ação de marketing e postar hashtag #SomosTodosMacacos, hoje temos um Vini Jr, muito mais consciente de seu papel tanto na resistência quanto na luta antirracista, se transformando em grande referência mundial para a causa. Um alento em meio a passos para trás.
Sua luta não deve ser solitária, e mostra que, diante da escassez de técnicos e dirigentes negros e da impunidade certa para a discriminação nos estádios, precisamos urgentemente de medidas mais radicais no enfrentamento ao racismo estrutural no futebol. Seja pela previsão em regulamentos de punição esportiva aos clubes que abrigam racistas, seja pela adoção de ações afirmativas por mais diversidade em cargos de comando.
Não precisamos esperar mais uma década para virar o jogo. Não precisamos desperdiçar o talento e a energia transformadora de profissionais como Vini Jr, Roger Machado e Lula Pereira numa batalha exaustiva pelo direito básico de trabalhar e competir em condições de igualdade.
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Esta coluna, que estreia hoje no Terra, vai tratar de muito campo-bola, mas sem perder de vista a intermediária em que o esporte se cruza com temas políticos, sociais, econômicos e culturais. Seja bem-vindo e boa leitura!