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Vale se torna empresa 'sem dono', mas fundos ainda mantêm poder de voto

Efeito mais imediato da extinção formal do bloco de controle é a liberação para venda de 20,26% das ações dos principais acionistas, o equivalente a R$ 67,6 bilhões; mudança deve deixar conselho de administração gradualmente mais independente

9 nov 2020 - 11h10
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RIO - Agora é oficial: nesta segunda-feira, 9, a Vale se torna uma companhia sem dono. Ao menos no papel. A data marca o fim do acordo que concentrava o poder de decisão da mineradora nas mãos de poucos acionistas. A extinção formal do bloco de controle, porém, é vista como mais uma etapa no processo de evolução da governança da Vale. A primeira prova de fogo para saber se a empresa caminha para ser uma corporation - jargão do mercado para definir companhias de capital pulverizado - de fato será a eleição do conselho, na assembleia de acionistas de 2021.

Oriundo da privatização da Vale, em 1997, o bloco de controle que se desfaz nesta segunda era formado por Litel/Litela - que reúne os fundos de pensão estatais, sendo a Previ de participação mais relevante -, Bradespar, Mitsui e o BNDESPar, braço de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Do ponto de vista da governança, a expectativa é que, em empresas sem um grupo controlador atuando de forma articulada, haja menos assentos carimbados e um conselho indicado de forma mais independente. Na Vale, o primeiro teste será em abril, quando haverá eleição para as 13 vagas do colegiado - das quais uma é indicada pelos empregados - com mandato até 2023. Atualmente, a maior parte dos conselheiros tem ligação com o bloco de controle e há apenas três nomes independentes.

Para auxiliar a renovação, a companhia criou em julho um comitê de nomeação, liderado pelo ex-presidente da Petrobrás e presidente do conselho da BRF, Pedro Parente, e Alexandre Gonçalves Silva, presidente do Conselho de Administração da Embraer. O comitê tem entrevistado investidores e os atuais membros do colegiado. A ideia é que o órgão recomende as competências, perfis e potenciais candidatos ao conselho. Se aprovados, os nomes serão submetidos à Assembleia-Geral Ordinária.

A temperatura da reunião de acionistas de abril vai depender da receptividade em torno da chapa indicada. Se a lista desagradar, investidores podem acionar o mecanismo chamado de voto múltiplo. Ele atribui a cada ação tantos votos quantos sejam os assentos no conselho. Esses votos podem ser concentrados num só candidato, aumentando as chances de acionistas menores elegerem um candidato.

Poder dos fundos ainda será grande

A despeito do fim do acordo, enquanto não venderem participação relevante, Previ, BNDES, Bradespar e Mitsui ainda terão poder de voto expressivo. Diante disso, a expectativa de fontes ouvidas pelo Estadão/Broadcast é de um aumento gradual na independência do conselho. No médio prazo, a tendência é de formação de blocos de acionistas com posições comuns para deliberar sobre matérias diversas.

O efeito mais imediato da perda de validade do acordo da Vale é a liberação de 20,26% das ações detidas pelos acionistas do bloco de controle, cuja venda estava bloqueada. A fatia é equivalente a R$ 67,6 bilhões, com base no preço das ações na última sexta-feira, 6, de R$ 63,19.

Participante das negociações para o fim do acordo em 2017 - quando foi assinado o documento transitório que vence nesta segunda -, a ex-diretora da BNDESPar Eliane Lustosa diz que estava em jogo o desejo dos controladores de dar liquidez a seus papéis, em especial o BNDES e a Previ, mas também a Bradespar. A japonesa Mitsui, um sócio estratégico, nunca escondeu o desejo de ter participação maior na Vale.

A par disso, havia a percepção de que era preciso aprimorar as práticas de governança da companhia e afastar o fantasma da interferência estatal. Isso se refletiu em maior diversidade no conselho e na busca de um CEO no mercado, com a contratação de Fabio Schvartsman - afastado após a tragédia de Brumadinho (MG), em janeiro de 2019 - e a eleição de Sandra Guerra e Isabella Saboya, primeiras conselheiras independentes da Vale, indicadas pela gestora Aberdeen.

Privatizada em 1997, a Vale teve a independência de sua gestão questionada em diversas ocasiões nesses 23 anos, graças à presença de entes estatais no controle e da golden share - ação que dá poder de veto ao governo em matérias como mudança de sede e que será mantida. Um dos episódios mais conhecidos envolveu a pressão do governo Lula para que a empresa investisse em siderurgia, na gestão de Roger Agnelli (1959-2016). "Foi um processo conduzido com grande desejo dos representantes dos acionistas de privatizar a empresa de fato", diz Eliane.

Agora, está aberto o caminho para a saída de Previ e BNDES. O banco de fomento já deixou clara sua intenção de vender papéis da mineradora, ao se desfazer de cerca de R$ 8 bilhões de ações recentemente, e organiza a venda de debêntures participativas na companhia. O fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil atua de forma mais discreta, sem abrir seus planos.

Eliane não enxerga no fim do acordo um gatilho para a venda massiva de ações por Previ e BNDES. "Tudo vai depender do preço de mercado versus expectativa de valorização da ação", diz, lembrando que tanto a Previ (com 4,98% das ações) quanto o banco (3,57%) já detinham papéis desvinculados do acordo.

O analista do Itaú BBA, Daniel Sasson, concorda e acrescenta que a retomada do pagamento de dividendos pela Vale pode ajudar adiar a decisão de saída desses acionistas. "No curtíssimo prazo, muda muito pouca coisa", diz.

Para reduzir a vulnerabilidade a ofertas hostis na nova estrutura de capital disperso, o Estatuto Social da Vale prevê que, caso algum acionista adquira 25% ou mais do total das ações ordinárias ou do capital social da empresa, terá de realizar uma oferta pública de aquisição de ações, mecanismo de proteção aos demais investidores

Nem melhor, nem pior

Mas afinal, o modelo de corporation é tão melhor que o de controle definido? Segundo especialistas, há prós e contras e o sucesso depende da criação de uma estrutura robusta de governança.

Há quem argumente que o "olho do dono" engorda a companhia. Nesse caso, o problema é evitar que os interesses do controlador se sobreponham aos da empresa. Na estrutura de controle definido, o embate ocorre entre controlador e acionistas minoritários. Quando o capital é disperso, cabe ao Conselho de Administração mediar mais os conflitos entre acionistas e exercer uma fiscalização mais eficaz sobre os atos da diretoria.

"Na corporation, a empresa sai do controle de um acionista para o controle gerencial. A gestão toma grande parte do poder de decisão antes dado ao controlador", diz Viviane Muller Prado, professora da FGV Direito SP. Carlos Augusto Junqueira, sócio do Cescon Barrieu Advogados, afirma que na corporation cresce o protagonismo do conselho e também a responsabilidade dos investidores.

No caso da Vale, a tendência é que a empresa tenha de prestar mais contas acerca de questões ESG (ambientais, sociais e de governança), para atrair o capital de um universo pulverizado (e cada vez mais globalizado) de investidores. Hoje, seus papéis são negociados com grande desconto frente às concorrentes australianas, sob o efeito do rompimento da barragem em Brumadinho. A mineradora vem se preparando para esse cenário e privilegiando a comunicação dessa agenda socioambiental.

Outro ponto de atenção, diz Junqueira, passa a ser a definição da remuneração dos administradores. Nos Estados Unidos, a falta de controle sobre os pacotes de remuneração gerou casos emblemáticos de manobras contábeis vinculadas aos ganhos de executivos, como na WorldCom e na Enron. Por aqui, um estudo concluído pelo Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead) em 2012 mostrou que um diretor presidente de empresas "sem dono" chegava a receber o dobro de seus pares em corporações com controlador definido.

Estadão
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