Licenciamentos municipais: gargalo regulatório
Licenciamento não pode ser moeda de troca política nem fonte alternativa de financiamento público
A morosidade e a complexidade dos processos de licenciamentos urbanos é fato notório no Brasil. É inegável que os municípios têm competência legal para disciplinar o uso do solo urbano e ampla margem de avaliação quanto aos impactos de empreendimentos em seu território. O problema reside na forma como essa competência é frequentemente exercida: em desconexão com os limites constitucionais e instrumentos básicos de direito público.
Um dos exemplos mais notórios é a persistência de legislações municipais que estabelecem, de maneira abstrata, porcentuais mínimos de investimento como condição para a concessão de licenças. O Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário (RE) 872.676/SP, reconheceu a inconstitucionalidade dessa prática, fixando que a adequação das medidas deve ser verificada caso a caso. Apesar disso, muitos municípios insistem em exigir "pisos" de contrapartidas, transformando o licenciamento em mecanismo arrecadatório.
Outro problema é a insuficiência de fundamentação dos atos municipais. Diversas prefeituras limitam-se a listar genericamente potenciais impactos urbanos e ambientais para impor encargos. Contudo, o STF já assentou que não basta elencar danos em tese: é necessário demonstrar por que a contrapartida escolhida é a mais adequada e proporcional para mitigar os danos causados pelo empreendimento. Sem esse rigor, cria-se a possibilidade de encargos desproporcionais, obrigando o empreendedor a financiar obras públicas sem relação efetiva com sua atividade.
Isso sem falar no uso arbitrário da discricionariedade em contextos de alternância política. Administrações recém-empossadas revisam, ou ameaçam revisar, licenças concedidas por gestões anteriores, em violação à vedação de que se invalidem situações jurídicas plenamente constituídas pela simples mudança de orientação administrativa, conforme o art. 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Os municípios têm legitimidade para avaliar impactos urbanísticos, mas também o dever de exercer esse poder dentro de balizas regulatórias claras, respeitando princípios como razoabilidade, proporcionalidade, motivação e segurança jurídica. O licenciamento não se pode converter em moeda de troca política nem em fonte alternativa de financiamento público.
Theófilo Miguel de Aquino é advogado, doutor em Direito pela FGV Direito SP e bacharel pela USP