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'Fusão entre Fiat e Peugeot tem como objetivo evitar fechamento de fábricas', diz CEO da Stellantis

Em sua primeira entrevista exclusiva no País à frente da quarta maior montadora do mundo, o português Carlos Tavares diz que é preciso unir forças para fazer frente aos investimentos exigidos pela transição tecnológica da indústria automotiva

20 jan 2021 - 01h21
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Desde domingo, após o casamento sacramentado na véspera, Stellantis é o nome oficial do quarto maior grupo de automóveis do mundo, resultado da fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e a Peugeot S.A. (PSA). A operação reuniu 14 marcas sob uma única organização, com vendas de cerca de 8 milhões de unidades e faturamento (antes de sinergias) de 167 bilhões de euros.

Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën são os nomes mais conhecidos do consumidor do Brasil, onde o grupo reúne três fábricas de carros - em Betim (MG), Goiana (PE) e Porto Real (RJ) -, além de uma unidade dedicada à produção de motores em Campo Largo (PR).

Na primeira entrevista exclusiva do principal executivo da nova empresa a um veículo de imprensa do Brasil, o português Carlos Tavares, CEO da Stellantis, falou sobre o motivo principal por trás da fusão: a necessidade de unir forças para fazer frente aos pesados investimentos exigidos pela transição tecnológica da indústria automotiva, que, na opinião do executivo, vive o seu maior desafio de reinvenção desde os trabalhos de reconstrução do pós-Segunda Guerra.

Após processos que transcorreram em plena pandemia, a Stellantis surge num momento de excesso de capacidade da indústria automotiva global, mas seu presidente executivo sustenta que a ideia da união é assegurar a sustentabilidade do negócio para evitar fechamento de fábricas. "A fusão entre a FCA e a PSA tem como um dos seus objetivos evitar a situação triste que você citou", afirmou Tavares ao responder uma pergunta que menciona o fim da produção da Ford no Brasil.

Carlos Tavares, CEO da Stellantis, diz que fusão quer fazer frente aos investimentos exigidos pela indústria automotiva.
Carlos Tavares, CEO da Stellantis, diz que fusão quer fazer frente aos investimentos exigidos pela indústria automotiva.
Foto: Stellantis/Divulgação / Estadão

Tavares defende ainda metas de emissões, estabelecidas em regulamentações, coerentes com a capacidade da indústria em reduzir os custos do carro elétrico, de modo a não impedir, durante a transição tecnológica, o acesso da classe média à "liberdade de movimento".

Também deixou aberta a possibilidade de a rede de revendas da Fiat ser usada para alavancar as vendas da Peugeot e da Citroën após sucessivos anos de perda de mercado das marcas francesas no Brasil. "Dentro da Stellantis, a mentalidade é de que cada marca pode usar a força e todas as coisas boas das demais marcas [do grupo] para ser bem-sucedida no mercado", disse Tavares.

Após passar por órgãos que regulam a concorrência, incluindo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), e ser aprovada, no início deste mês, por sócios dos dois grupos, a fusão entre FCA e PSA foi concluída no sábado e teve sua estreia na bolsa de Nova York nesta terça-feira, 19.

É o desfecho de uma história que começou a ser construída em dezembro de 2018, quando Tavares, na época presidente da PSA, entrou em contato com o CEO da FCA, Michael Manley, para agendar a reunião em que, três meses depois, começaria a ser discutida a combinação dos negócios. "Pela experiência do passado, em que as duas empresas passaram por momentos muito difíceis de reestruturação, percebemos que, para isso não acontecer novamente, podemos juntos ser mais fortes para enfrentar os desafios do futuro", diz o agora presidente da Stellantis. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Começamos o ano com o anúncio de que a Ford não vai mais produzir no Brasil. Podemos também assistir na união dos grupos FCA e PSA a uma reorganização de manufatura, com compartilhamento, por exemplo, de fábricas?

Temos na indústria do automóvel desafios importantes em termos de emissões, conectividade e condução autônoma. Todos esses desafios exigem muito investimento em tecnologia e engenharia. A melhor forma de evitar situações de prejuízo é ter uma base de volume de vendas que seja suficientemente grande para diluir todos esses custos suplementares, protegendo a rentabilidade de cada carro vendido. A fusão entre a FCA e a PSA tem como um dos seus objetivos evitar a situação triste que você citou, protegendo a nossa rentabilidade com a diluição dessas despesas numa base de vendas muito maior.

Existe uma necessidade de ajuste de capacidade na indústria global diante das perspectivas para o pós-pandemia?

Se a liberdade de movimento dos cidadãos não for protegida, poderemos ter uma situação em que os automóveis com alto conteúdo tecnológico e em ambientes de regulamentação muito exigente ficarão extremamente caros para uma parte da população. Obviamente, a classe média, nesta situação, não vai mais poder comprar carros novos e, se isso acontecer, haverá menos carros a serem produzidos. Se houver menos carros para produzir, obviamente precisaremos de menos fábricas, levando a situações tristes como a que você descreveu. Temos um problema a ser debatido pela sociedade a respeito da liberdade de movimento dos cidadãos, o que envolve o acesso das classes médias à compra de um veículo cujo preço pode ser muito alto se houver excesso de regulamentação. Obviamente, isso vai se traduzir em aumento do custo do automóvel.

Como vai acontecer a transição de tecnologia na Stellantis? O grupo vai buscar uma meta de 100% de eletrificação?

Vamos, claro, construir essa meta ao longo dos anos. Até o fim deste ano, teremos mais dez veículos eletrificados à venda (já há 29 disponíveis atualmente), e nos comprometemos a ter, até 2025, 100% de nossos modelos com, pelo menos, uma versão eletrificada. Isso está avançando bem. Temos a PSA na liderança em termos de disrupção de emissões de CO2 (dióxido de carbono) no mercado europeu, que é o mais exigente do mundo em relação à redução de emissões. A Stellantis vai ter, então, uma base tecnológica de motores elétricos e de baterias que já existe (da PSA) para todas suas marcas usarem nos mercados em que isso for demandado. Do ponto de vista dos veículos autônomos, temos do lado da FCA uma parceria com a Waymo (empresa do mesmo grupo do Google desenvolvedora da tecnologia de condução autônoma) que vai nos dar capacidade de avançar rapidamente em matéria de software de carros autônomos para aplicar também em várias marcas. Portanto, temos essa parceria para avançar de forma importante em direção à tecnologia do carro autônomo e, do outro lado, todos os componentes de eletrificação necessários para que as 14 marcas da Stellantis possam evoluir muito rapidamente a uma mobilidade de zero emissão.

A indústria ainda vai conviver por muitas décadas com uma situação em que mercados mais desenvolvidos ou competitivos vão desenvolver e produzir carros elétricos e autônomos, enquanto carros de motor convencional a combustão interna continuarão sendo produzidos em mercados menos maduros e competitivos?

Os carros elétricos ou híbridos estão à venda. No que diz respeito ao desenvolvimento da tecnologia, ela já está disponível, ainda que o desenvolvimento continue na densidade energética das baterias e na eficiência dos motores. O problema essencial que temos à frente é tornar essa tecnologia barata, fazer com que o custo seja reduzido para que a mobilidade de zero emissão não seja restrita a uma elite com poder de compra. Se a gente quiser provocar um impacto ambiental forte, teremos que trabalhar para reduzir custos e tornar essa tecnologia acessível a um grande número de consumidores.

Como o governo pode atuar para a tecnologia ser mais acessível?

Qualquer governo pode decidir hoje que a partir de amanhã não se vende mais carro com motor a combustão interna. Na Europa, já há países que anunciaram que a partir de 2030 não será autorizada a venda de carros a combustão interna. Quando formos comercializar esses produtos, vamos fazer a um preço que proteja a sustentabilidade da empresa, com uma certa margem [de lucro] a cada venda. Isso pode se traduzir em carros mais caros, inacessíveis à classe média, o que pode ter impacto forte nos volumes. É preciso coordenação entre os governos, que querem incluir rapidamente a tecnologia, e a capacidade das montadoras em reduzir custos da tecnologia de eletrificação, que é muito mais elevado do que os custos da tecnologia tradicional. A situação vai variar de país a país. O que vai acontecer no Brasil pode ser diferente de outro país da América Latina, que pode ser diferente dos Estados Unidos, da Europa ou da China. Temos aí um problema de sociedade, que demanda coordenação entre a regulamentação dos governos e o trabalho das montadoras para reduzir os custos da tecnologia.

A Stellantis nasce como o quarto maior grupo automotivo do mundo, mas qual será a posição da empresa no ranking dessa indústria do futuro? Seguirá no pelotão de frente?

Se olharmos para a história, as empresas que adotaram a estratégia de simplesmente atingir certo tamanho geralmente fracassaram. O fato de ser uma empresa grande em si não tem valor para o consumidor. O que faz uma empresa ser sustentável é sua capacidade em satisfazer os clientes com produtos e serviços. O foco para nós não é o tamanho, embora, como eu disse, tamanho seja útil em diluir custos de engenharia. Só que do ponto de vista do consumidor, o que interessa é a capacidade da empresa em entregar mobilidade segura, limpa e acessível. Se fizermos um bom trabalho, obviamente a empresa continuará crescendo e o tamanho será uma consequência. Não entramos nesse mundo com objetivo de atingir um certo tamanho.

Considerando as transformações tecnológicas em curso na indústria e as novas soluções de mobilidade trazidas pelos aplicativos de transporte, seria exagero dizer que as montadoras enfrentam o seu maior desafio de reinvenção desde o início da produção em série?

Se a gente tomar a perspectiva de um século, talvez seja exagerado dizer isso. A Peugeot, por exemplo, foi praticamente toda destruída na Segunda Guerra. As fábricas tinham sido bombardeadas, não havia concessionárias e tudo teve que ser reconstruído. Mas certamente nos últimos 20 ou 30 anos é o maior desafio da indústria do automóvel. Se considerarmos o período seguinte à Segunda Guerra Mundial, podemos dizer, com alguma segurança, que estamos enfrentando o maior desafio.

Como deve ser o padrão de retomada da indústria após a pandemia?

Quando a situação sanitária estiver normalizada e as pessoas estiverem protegidas, a primeira necessidade será garantir a saúde das pessoas por meio da saúde do planeta. Portanto, depois da saída da crise sanitária virá a questão sobre como vamos proteger o meio ambiente e lidar com o aquecimento global. Para a nossa indústria, isso significa acelerar a venda de veículos eletrificados, ou reduzir a venda de não eletrificados. É a tendência que eu acho que vai se acelerar na saída da pandemia.

A fusão vai permitir o acesso a novos mercados para as marcas do grupo?

Temos 14 marcas que podem ser perfeitamente utilizadas no mundo inteiro. Obviamente, temos uma presença muito forte nas Américas vinda, essencialmente, da FCA, e uma presença forte na Europa do lado da PSA. Isso nos dá uma cobertura de mercado estupenda na Europa e nas Américas. Temos também uma grande oportunidade na Ásia e podemos construir qualquer coisa a partir praticamente do zero no mercado chinês, que representa um upside [potencial de crescimento] para nós. Temos capacidade econômica para investir nessas marcas. A PSA e a FCA estão robustas do ponto de vista financeiro, têm excelentes marcas, têm negócios que funcionam e, portanto, não estamos numa situação de crise. A FCA não está em dificuldade. A PSA também não está em dificuldade. Pela experiência do passado, em que as duas empresas passaram por momentos muito difíceis de reestruturação, percebemos que, para isso não acontecer novamente, podemos juntos ser mais fortes para enfrentar os desafios do futuro.

Existe, de fato, a possibilidade de as marcas francesas serem comercializadas no Brasil pela rede de concessionárias da Fiat?

O negócio da FCA na América Latina, especialmente no Brasil, é extremamente saudável. Já o negócio da PSA na América Latina tem passado por altos e baixos, sucessos e dificuldades. Muitas dessas dificuldades podem ser afastadas através de uma colaboração dentro da família Stellantis. Podemos usar o sucesso das marcas FCA na América Latina para ajudar as marcas da PSA a ter mais sucesso na região. Nossa primeira reação é sempre de proteger as marcas e dar mais dinâmica ao que estamos fazendo. Em certos casos, o fato de a PSA ser pequena na América Latina é um fator de limitação de nossas ambições, e pode ser um ônus em certos tipos de custos. Obviamente, dentro da família Stellantis, cada vez que for possível usar a força de uma marca para ajudar outra, nós vamos fazer. Mas a linha de conduta é sempre a mesma: proteger as marcas e fazer com que a colaboração dentro do grupo se traduza em competitividade de cada uma das marcas frente à concorrência. Dentro da Stellantis, a mentalidade é de que cada marca pode usar a força e todas as coisas boas das demais marcas [do grupo] para ser bem-sucedida no mercado.

A América Latina vai ocupar uma posição de destaque entre os maiores mercados do grupo?

Com certeza. Temos uma presença importante e coroada de sucesso na região. Vamos dar a autonomia e a liberdade que a operação precisa para responder às expectativas do consumidor da América Latina. Vai haver muita atenção dedicada à região.

Os movimentos de fusões entre montadoras são inevitáveis diante dos desafios e custos trazidos pelas novas tecnologias? Devemos assistir a mais movimentos de consolidação entre grandes grupos automotivos nos próximos anos?

É uma hipótese perfeitamente provável porque as regulamentações crescem rapidamente e nem sempre são discutidas com as montadoras. Essas regulamentações podem ter impactos financeiros expressivos e ameaçar a sustentabilidade das empresas. Uma maneira de elas se protegerem é estabelecendo parceria ou fusão com outra empresa. É perfeitamente factível que haja mais consolidação como consequência do impacto econômico das novas regulamentações.

Qual papel a América Latina, em especial o Brasil, vai desempenhar em meio a essas transformações da indústria global?

A sociedade tem que decidir se ela quer proteger ou não a liberdade de movimento individual através do automóvel. O trabalho das montadoras é fazer com que esse automóvel seja acessível, seguro e limpo. E as regulamentações vão, em paralelo, indicar para onde a indústria deve ir. Cada vez que os países tiverem regulamentações próprias, eles vão, de certa maneira, penalizar a mobilidade, porque todos os investimentos necessários para atender a regulamentação do país podem se traduzir em mobilidade muito mais cara do que era no passado. Por isso, consideramos que as regulamentações deveriam ser idênticas no mundo inteiro, de maneira que todos os cidadãos possam se beneficiar da mesma segurança, da mesma limpeza de emissões, das mesmas tecnologias. O triângulo entre legislação, consumidor e montadora deveria ser estável, mas nem sempre isso acontece.

E o que deve acontecer se não houver sintonia entre indústria e governo?

As montadoras, com ou sem dor, vão se adaptar. Mas, depois de nos adaptarmos, vai haver a questão do custo da mobilidade e do acesso da classe média ao automóvel. É uma questão a ser decidida pela sociedade. Quanto mais antecipação nos derem, mais tempo teremos para trabalhar. Se nos derem muita antecipação, como, por exemplo, 20 anos, vamos colocar muita energia para reduzir o custo do carro elétrico. Se nos disserem 'amanhã só se pode vender carros elétricos', obviamente o carro elétrico terá um preço que poucas pessoas poderão pagar. Tudo deve ser baseado num diálogo entre governos, consumidores e montadoras. Quanto mais tempo nos derem de adaptação, melhor será a solução que poderemos oferecer. Quanto menos tempo nos derem, mais difíceis serão essas soluções, que podem ser elitistas, incompletas e que, ao fim, não resolvem o problema completamente.

Estadão
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